Publicado em novembro-dezembro de 2024 - ano 65 - número 360 - pp. 4-13
Lumen Gentium: luz que nunca se apaga
Por Cônego Sérgio Conrado*
Na celebração dos 60 anos da Lumen Gentium (LG), mais do que recuar no tempo, é importante resgatar o espírito da LG e reconhecer avanços e retrocessos, luzes e trevas, além de promover seu estudo e a adequação aos três pilares do documento: Igreja, povo de Deus; hierarquia e colegialidade; eclesiologia e pastoral.
INTRODUÇÃO
O Concílio Vaticano II, convocado pelo papa São João XXIII, foi o acontecimento maior da Igreja no século XX e, sem dúvida, traçou rumos novos para a caminhada eclesial. Seus dezesseis documentos se tornaram o grande farol norteador para o ser e o agir da Igreja nos tempos atuais e futuros. Seguramente, ainda é preciso usufruir muito mais das correntes bíblico-teológicas e pastorais que, de alguma forma, prepararam a nova primavera eclesial da década de 1960 (LG 1).
A Igreja abria-se, com o Concílio, para o mundo cristão e não cristão. Para que essa nova primavera da Igreja pudesse se concretizar, foram elaborados, no decurso de quatro encontros de outono, entre 1962 e 1965, dezesseis documentos, frutos da inspiração do Espírito Santo, do trabalho árduo dos teólogos, dos bispos e do papa, e do reflexo da realidade de Igreja e de mundo em que se vivia.
Ao celebrarmos os 60 anos do Vaticano II, queremos privilegiar um dos mais importantes e básicos documentos: a Constituição Dogmática Lumen Gentium. É preciso levar em conta a dedicação, o trabalho e a seriedade com que essa constituição foi elaborada. Foi o documento mais demorado de todos os que compuseram a plataforma do Concílio.
Durante o Concílio, houve 168 Congregações Gerais e foram pronunciados, na Aula Conciliar, 2.217 discursos. Só a Lumen Gentium ocupou os padres conciliares durante 33 Congregações Gerais e exigiu 453 discursos. Ela é composta de oito capítulos.
Gostaríamos de mostrar, por um lado, que é muito necessário aprofundar ainda mais os documentos do Concílio, sobretudo a Lumen Gentium, que apresenta a Igreja na sua totalidade, sua constituição e ação no mundo por meio do papa, dos bispos, presbíteros, diáconos, religiosos, religiosas e dos cristãos leigos, que são a maioria dos que a compõem; por outro, que a realidade eclesial atual, à luz da Lumen Gentium e das Conferências Episcopais Latino-americanas, é passível de ajustes e aprofundamento na teologia e na pastoral, para que, de fato, a Igreja responda aos desafios que hoje se levantam no âmbito interno e externo. É o que exigem a Conferência do Celam em Aparecida e a sinodalidade instaurada pelo papa Francisco na Igreja.
Os documentos do Concílio, à luz da Palavra de Deus e de uma nova eclesiologia, revelam algumas mudanças fundamentais: visão positiva do mundo, como criação e manifestação de Deus; respeito às diferentes culturas, à participação dos cristãos leigos na Igreja e na sociedade; diálogo com outras religiões, cristãs e não cristãs, e com pessoas sem religião – ou seja, com toda a humanidade.
Torna-se muito oportuna a comemoração efetiva dos 60 anos da Lumen Gentium, o primeiro e o mais longo dos dezesseis documentos exarados pelo Concílio, a qual carece de um novo estudo no contexto mundial e eclesial atual.
Embora seja um tesouro inesgotável, salientaremos apenas três grandes elementos dessa constituição dogmática, que formariam seu tripé. Num primeiro momento, pretendemos oferecer breve reflexão sobre o povo de Deus como a categoria-síntese do humano e divino na Igreja; em seguida, analisar alguns aspectos da colegialidade no ministério episcopal e, por analogia, a prática do mesmo princípio no presbiterato e no laicato; finalmente, perceber ainda mais que o binômio eclesiologia e pastoral são inseparáveis e imprescindíveis.
Que a comemoração dos 60 anos da Lumen Gentium nos incentive a aprofundar a doutrina e a pastoral no contexto hodierno tão desafiador em que a Igreja vive e atua.
1. Povo de Deus: categoria-síntese do humano e divino na Igreja
Ao inaugurar o Concílio, o papa São João XXIII alertava para a urgência de resgatar a história como lugar teológico. Assim, a categoria “povo de Deus” se mostrava bem mais adequada que a de “corpo de Cristo”, pois, como o próprio papa Bento XVI declarou, “recorreu-se ao conceito de povo de Deus, que, sob este ponto de vista, é muito mais amplo e flexível que as categorias de corpo e de membros” (Ratzinger, 1969, p. 20). Com essa categoria bíblica, a Igreja se entendia comprometida com uma visão dinâmica e evolutiva de história como sujeito histórico. Superando esquemas rígidos e acabados de eclesiologia, o Concílio colocou a Igreja nos caminhos da humanidade, e não nas esferas aéreas.
A Lumen Gentium articulou com maestria a relação entre o divino e o humano na Igreja, concentrando a dimensão divina – não só, mas sobretudo – em seu primeiro capítulo (“O mistério da Igreja”) e a dimensão humana – não só, mas sobretudo – em seus outros sete capítulos.
Portanto, “mistério da Igreja” e “povo de Deus” devem ser lidos e estudados num sentido de unidade e integração, a fim de superar qualquer tentação monofisista de compreender o Cristo como uma só natureza, a divina, tal como advogava a heresia condenada em Calcedônia em 451 d.C. Infelizmente, com tristeza, deparamos com grupos, comunidades e representantes do clero que tomam Jesus Cristo quase só na dimensão divina. Isso tem causado divisões na Igreja. A teologia atual tem insistido na íntima relação entre a realidade divina (LG, cap. I) e a realidade humana da Igreja (LG, cap. II), entre a Igreja terrestre e a Igreja celeste, a assembleia visível e a comunidade espiritual. A LG optou pela analogia da união hipostática (divindade-humanidade) do Verbo de Deus, à maneira de Calcedônia (cf. LG 8). Ao mesmo tempo, apresenta a analogia da Kênosis do Verbo ao encarnar-se, aplicando-a para a Igreja, chamada a se revestir de humildade e abnegação (LG 8).
Em parte, vivemos atualmente na Igreja a luta pelo poder, pelo destaque do clero como instância superior no povo de Deus, e para tanto são usadas linguagens próprias, vestimentas suntuosas, com brocados e lantejoulas, caracterizando, em nome de Cristo, uma Igreja rica, às vezes até sustentada pelos fiéis humildes e pobres. E a união hipostática e a Kênosis, onde ficam? É preciso lembrar que a Igreja tem consciência de que não é uma elite de puros, como alguns grupos chegaram a pensar no decorrer da história – por exemplo, os montanistas, os donatistas e os cátaros. Será que está havendo, em nossos dias, um retorno ao cultivo não da humildade, e sim do triunfalismo, com massas de crentes a idolatrar pregadores que não atinam com a historicidade da Igreja e não se somam à súplica pela vinda do Senhor, mas buscam ter seus próprios redis submissos?
Esse contingente da Igreja, o qual está crescendo e se esquecendo de sua dimensão peregrinante e escatológica, perde seu potencial profético e cede à tentação do poder, promovendo ideologias religiosas eivadas de correntes políticas.
A categoria povo de Deus, no que tange ao aspecto da historicidade, não permite à Igreja concentrar-se exclusivamente em práticas rituais e de culto, o que se vê muito por aí. Antes, o conceito leva a Igreja a concentrar sua prática
no esforço de todos os combatentes pela libertação e pela dignidade dos homens, lá onde se faz presente o sinal do amor de Deus aos homens em Jesus Cristo, não somente nas liturgias de nossas igrejas, por mais autênticas que sejam, mas também onde o ser humano seja vítima do ódio, da exploração, do desprezo, da falta de amor, das discriminações (Congar, 1976, p. 95-96).
O capítulo VII enfatiza a índole escatológica do povo de Deus. Por isso, realçando o dado da peregrinação e da comunhão, a Lumen Gentium (n. 49-51) retoma a questão da relação entre a Igreja terrestre e a Igreja celeste, bem como da veneração e do verdadeiro culto aos irmãos que já estão na glória, os santos. Entre eles, destaca-se a figura da Virgem Maria, cumprimento escatológico da Igreja (cf. LG 63).
Situando os batizados todos em um mesmo nível de dignidade, a Lumen Gentium abriu um caminho importante para a superação dos binômios clero-laicato e religiosos-leigos. À medida que se articula sadia correlação entre substantividade e relatividade, as tensões clero-laicato e religiosos-seculares vão sendo superadas pelas relações ministérios-comunidades e carisma-comunidade, dentro de uma compreensão de Igreja povo de Deus (Velasco, 1996).
No seio da Igreja, o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial ou hierárquico se articulam em benefício da unidade e do crescimento de todo o povo de Deus (LG 10-11). Esse povo o Senhor também educa e conduz conforme sua Palavra e o cumula de carismas, de modo que o povo santo participa também do múnus profético de Cristo (LG 12). Os bispos são ministros chamados a ensinar (LG 25), santificar (LG 26) e governar (LG 27) o povo do Novo Testamento (LG 21). Os presbíteros, cooperadores da ordem episcopal, são também coordenados para o serviço do povo de Deus (LG 28; DAp 199), e os diáconos recebem a imposição das mãos para servirem o povo de Deus no serviço da liturgia, da palavra e da caridade (LG 23; DAp 206). Os cristãos leigos são os fiéis que “pelo batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 3). Os religiosos são aqueles homens e mulheres que, por vocação, representam, no seio do povo de Deus, na forma específica da profissão e prática dos conselhos evangélicos, aquele modo de vida que o Filho de Deus assumiu ao se fazer presente neste mundo (Fuente, 2007, p. 173).
Se os estados de vida distinguem os membros do povo de Deus entre si, a consagração batismal os une na mesma dignidade da inserção em Cristo. Como afirma Paulo, em Cristo e na Igreja, “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (Gl 3,38). Ou seja, a Igreja é povo construído não com base em condições particulares e privilegiadas, mas tão somente sobre o fundamento da fé em Jesus Cristo (LG 32).
A América Latina respondeu prontamente ao conceito conciliar de povo de Deus e, apesar dos ataques, continua muito atuante. A Conferência de Aparecida, a esse respeito, diz: “A Providência de Deus […] nos tem feito membros do corpo de Cristo, povo de Deus peregrino em terras americanas há mais de quinhentos anos” (DAp 127). Diante daqueles que preferem dizer que, mais que povo de Deus, se trata de “comunhão”, o grande valor que paradigmatiza a reflexão eclesiológica conciliar, a Igreja latino-americana soube integrar harmonicamente os dois conceitos eclesiológicos, pois entende que “a comunhão dos fiéis e das Igrejas locais do povo de Deus se sustenta na comunhão com a Trindade” (DAp 155).
O Concílio, ao aprovar e trabalhar eclesiologicamente o conceito de povo de Deus, encontrou na América Latina um espaço propício de explicação e concretização. Na verdade, foi aqui que o apelo de São João XXIII pela emergência de uma Igreja dos pobres foi mais bem ouvido e posto em prática (Comblin, 2011, p. 629-641).
Sem dúvida, houve muitas discussões em âmbito teológico, com destaque para a tentativa de exclusão da teologia da libertação, que fez do povo de Deus sua categoria fundamental de interpretação eclesiológica. Enquanto a teologia europeia tendia a interpretar o conceito de povo de Deus numa perspectiva universal, os teólogos da América Latina mostraram entendê-lo à luz de sua realidade mais imediata. Sustentado pela centralidade dos pobres, assinalada pelo Concílio (LG 8; 38; 41; AG 5; 12; PO 6; GS 1; 63; 66; 69; 88; 90; PC 13) e confirmada por Aparecida (DAp 392), o caminho da Igreja latino-americana foi a compreensão de que o povo de Deus é, em nossa realidade, sobretudo o povo dos pobres (González Faus, 1984, p. 99-125).
Podemos afirmar com Boff:
Na medida em que a Igreja se abre ao povo, ela se faz mais e mais povo de Deus; na medida em que o povo, especialmente dos pobres e oprimidos de nossa sociedade, se reúne em nome de Cristo e na escuta de sua Palavra de salvação e libertação, eles constituem concretamente, no nível da história, a Igreja de Jesus Cristo (Boff, 1994, p. 211).
Somente sendo povo, a Igreja tem condições de ser “o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1), de inserir-se no meio dos mais variados povos do mundo, procurando inculturar o Evangelho sem se fechar em guetos e sem se tornar uma aristocracia espiritual, da qual os pobres, os pecadores, os marginalizados – publicanos e prostitutas de hoje (cf. Mt 21,31) – deveriam ser excluídos.
O estudo eclesiológico da Lumen Gentium deve preocupar grandemente a nós, presbíteros, bispos, estudantes de Teologia, seminaristas ou não, aspirantes ao diaconato e cristãos leigos em geral. Nossa eclesiologia atual necessita de uma releitura à luz da Lumen Gentium nos seus sessenta anos.
2. Hierarquia e colegialidade
A Lumen Gentium, no número 22, capítulo III, afirma: “Assim como, por disposição do Senhor, São Pedro e os outros apóstolos constituem um colégio apostólico, paralelamente o romano pontífice, sucessor de Pedro, e os bispos, sucessores dos apóstolos, estão unidos entre si”. É admirável como Jesus, em sua sabedoria, deixou à Igreja um corpo episcopal, que, porém, não tem autoridade se nele não se considerar, incluído como chefe, o romano pontífice, sucessor de Pedro. Aí está o que tem garantido a existência da Igreja: Cristo como pedra angular e o colégio episcopal, com o romano pontífice, orientando a ação eclesial em todo o mundo.
O Concílio elaborou um decreto, Christus Dominus, especificamente relacionado ao colégio episcopal, às Igrejas particulares e bispos diocesanos, bem como ao relacionamento destes com o clero, os religiosos e os cristãos leigos. Por que tratar do episcopado? Porque, pela plenitude do sacramento da ordem, é dada a cada bispo a graça do Espírito Santo e impresso o caráter sagrado (cf. LG 21). Assim, os bispos agem segundo a tríplice função de ensinamento, santificação e pastoreio, originária da tríplice dimensão do serviço e da missão de Cristo profeta, sacerdote e rei. A colegialidade, por algum tempo, esteve submersa na prática episcopal eclesial, em decorrência da dosagem excessiva do seu aspecto jurídico.Contudo, fundamentada na eclesiologia de comunhão, ela vai além da dimensão jurídica, pois o espírito colegial é inerente ao ser da Igreja e se manifesta em diversos níveis para o fortalecimento da comunhão, o objetivo último de todo o mistério de salvação. Todos os membros do povo de Deus são chamados a desempenhar a missão que lhes foi confiada, dispondo, colegialmente, conforme os níveis e graus, de seus dons e carismas para concretizar a verdadeira comunhão instaurada por Cristo.
Com a doutrina da colegialidade episcopal na Lumen Gentium e na Christus Dominus, o Concílio abriu um caminho novo de perspectivas e realizações. Cabe à própria Igreja acomodar suas instituições multisseculares a modos mais colegiais e criar com audácia formas novas, sobretudo um estilo de governo, em todos os níveis, predominantemente colegial. Essa tarefa não é apenas da hierarquia, mas de todos os batizados. O papa Francisco tem insistido em seus pronunciamentos sobre esta verdade de fé: “Na Igreja todos somos iguais e ninguém é inútil”.
O exercício da autoridade na Igreja como um poder absoluto, isolado e pessoal de quem quer que seja, sem levar em conta o aspecto colegial, o contexto em que é exercido, e sem coordenação participada e corresponsável, torna-se tremendamente nocivo e se iguala aos esquemas da sociedade civil. Essa verdade é ainda mais evidente em nosso tempo, com as diferentes tensões presentes no interior da Igreja, favorecidas também pela imprensa, pela internet, pelas redes sociais e pelas ideologias vigentes no país, que causam sérias divisões no âmbito religioso, social e político. Nisso se incluem diversos bispos, presbíteros, religiosos e cristãos leigos.
Por conseguinte, é bom lembrar que o agir eclesial, qualquer que seja, e a colegialidade não são apenas de natureza organizativa e jurídica, mas também são verdadeira mística impulsionadora, pois toda ação eclesial, incluindo a de governo, deve estar direcionada para o todo, para a edificação do corpo de Cristo e do povo de Deus (cf. Ef 4,12). Esta reflexão sobre a questão hierárquica da Igreja, constituída por todos os batizados, é para que se crie uma consciência mais eclesial neste mundo, marcado pelo pluralismo sadio e pela alteridade, mas também por muitas obscuridades e violência, seja com as guerras, seja de outras formas, como o sectarismo religioso, que chega até a ponto de promover o ódio e o aniquilamento de irmãos.
Concluindo este ponto, não poderíamos não falar da sinodalidade, uma vez que a Igreja toda acabou de finalizar o Sínodo. O papa Francisco afirma, em conformidade com o ensinamento da Lumen Gentium, que a sinodalidade nos oferece a chave interpretativa mais adequada para compreender o próprio ministério hierárquico. Com base na doutrina do sentido da fé dos fiéis (sensus fidei fidelium), ele acentua que todos os membros da Igreja são sujeitos ativos da evangelização.
3. Eclesiologia e pastoral: exigência intrínseca da Lumen Gentium
Com este terceiro e último momento de reflexão, gostaríamos de fechar nosso artigo sobre os 60 anos da Lumen Gentium.
É do conhecimento de todos que o papa São João XXIII, em 11 de outubro de 1962, abriu a primeira sessão do Concílio na basílica de São Pedro. O texto de abertura é de fundamental importância e sabemos como influenciou profundamente a redação de todos os documentos conciliares. Por um lado, muitos teólogos escreveram e pregaram que o Concílio não queria tratar de desgraças e catástrofes, nem associar o mundo moderno a um declínio da humanidade; por outro, o Concílio não apenas promoveu a discussão de um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja, somente repetindo o ensino de padres e teólogos antigos e modernos, mas sobretudo consistiu em uma adesão renovada, serena e tranquila a todo o ensinamento da Igreja, em sua integralidade, desde Trento até o Vaticano I. O papa dizia:
O espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na compreensão doutrinal e na formação das consciências, em correspondências mais perfeitas com a doutrina autêntica; espera também que a doutrina seja estudada e exposta por meio de formas de indagação e formulação literária de acordo com o pensamento moderno. E continuando, uma é a substância da antiga doutrina do “Depositum Fidei”, e outra é a formulação que a reveste (Enchiridion Vaticanum, n. 40-43).
O Vaticano II marcou sua trajetória com o binômio eclesiologia e pastoral, de tal forma que a Constituição Dogmática Lumen Gentium e a Constituição Pastoral Gaudium et Spes se tornaram o eixo do Concílio. Nossa tratativa final pretende mostrar a importância e a necessidade da pastoral como parte constitutiva da Igreja. Atualmente, devido ao exagero de comunidades e grupos voltados para doutrinas que antes do Vaticano II eram válidas e continuam sendo, é urgente uma explanação de conteúdo mais inteligível e apropriada para nosso tempo.
Onde se encontra a pastoral ou, usando um conceito mais antigo, o apostolado dessa gente? Será que, em parte da Igreja, a pastoral tem o sentido de captar pessoas para engrossar o grupo e pensar da mesma maneira? O que isso tem refletido na vida de outras pessoas? Tem ido ao encontro dos grandes desafios de uma “Igreja em saída”, como nos pede o papa Francisco? Vejamos o que o papa São Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, já nos dizia:
A apresentação da mensagem evangélica não é para a Igreja uma contribuição facultativa, é um dever que lhe incumbe, por mandato do Senhor Jesus, a fim de que os homens possam acreditar e ser salvos. Sim, essa mensagem é necessária; ela é única e não poderia ser substituída. Assim, ela não admite indiferença nem sincretismo, nem acomodação. É a salvação dos homens que está em causa; é a beleza da revelação que ela representa; ela comporta uma sabedoria que não é deste mundo.
Assim, afirmamos que a pastoral é inerente ao ser da Igreja. Essa palavra é uma das mais usadas na linguagem teológica atual. Há, na realidade, disputas e pareceres em torno do caráter pastoral dos diferentes tipos de metodologias teológicas. No entanto, o termo “pastoral” está presente não só na teologia, mas também se derrama com facilidade no linguajar eclesial. Para verificar esse fato, basta estarmos familiarizados com a prática eclesial, com suas distintas dimensões e diferentes membros, para utilizar assiduamente tal palavra. Quase toda e qualquer ação se torna pastoral.
O ideal seria percorrermos toda a Escritura, desde o Antigo Testamento, no qual encontramos a ideia e a realidade do pastoreio profundamente arraigadas na cultura de Israel. Não há dúvida de que a profissão mais difundida entre as tribos era a de pastor, caracterizado como chefe e companheiro (Léon-Dufour, 1982). Também na Igreja primitiva, na época patrística, na Idade Média, no século XX e na atualidade, a ideia de pastoral se fez sempre presente.
Vamos nos ater ao Novo Testamento, focando rapidamente a pessoa do pastor Jesus Cristo. Cristo se revela, realizando sua missão no âmbito religioso-cultural de Israel, e também manifesta sua obra, fazendo uso de uma terminologia pastoril (Conrado, 2012, p. 235). Os Evangelhos sinóticos mostram que as profecias messiânicas sobre o pastor se realizam plenamente em Cristo Jesus. Ele é apresentado como o pastor (Mt 15,24; Mc 6,34). Seus discípulos constituem um pequeno rebanho indefeso, exposto a lobos (Mt 10,16) que, travestidos de cordeiros (Mt 7,15), matarão o pastor e dispersarão as ovelhas (Mt 26,3). O pastor, no entanto, ressuscitará e resgatará seu rebanho, graças à sua ação (Mt 25).
As imagens de pastor, pastoreio, ovelhas e rebanho, presentes nos sinóticos, atingem seu ápice na perícope joanina (Jo 10) na qual Jesus se apresenta como o bom pastor anunciado pelos profetas. É de propósito que o evangelista João, em torno do tema do pastor, trabalha com outras imagens e ideias que o esclarecem: por exemplo, Jesus é a porta do redil, caminha à frente do rebanho, está atento às suas necessidades, conhece a todos e, finalmente, dá a vida pelo seu rebanho (Jo 10,13).
Para que sua identificação como bom pastor não se restrinja ao povo judeu, Jesus mostra o universalismo ao seu rebanho (Jo 10,16). Assim como Deus, no Antigo Testamento, escolheu pessoas para que agissem em seu nome, Jesus também o fez. Fica claro que Jesus elege seus discípulos com liberdade e os mantém junto a si durante sua vida, até que, depois da Páscoa, os envia em missão para continuar sua obra (Mt 28,18-20).
As cinco Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano e do Caribe – Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) – demostraram como a Igreja na América Latina, sem dúvida, contextualizou a colegialidade-sinodalidade e a pastoral no continente, não só no nível das conferências gerais e nacionais, mas também no âmbito da Igreja particular, dando feição nova ao ministério episcopal e presbiteral e à ação laical.
Podemos afirmar que a Igreja, na sua missão de proclamar a Boa-nova sem medo e descobrir na vida do povo a presença viva do Espírito de Deus, será sempre chamada a repensar sua prática pastoral, juntamente com todos os seus organismos, para que não se cristalizem.
CONCLUSÃO
Não há dúvida de que a reflexão sobre a eclesiologia da Lumen Gentium e o aprofundamento de seus avanços se mostram hoje extremamente necessários, seja no entendimento da Igreja como povo de Deus, seja na busca de modos de evangelizar. O papa Francisco tem insistido muito em uma Igreja “em saída” (EG). Esse dinamismo de saída aparece com frequência na narrativa bíblica (cf. Gn 12,1-3; Ex 3,10; Ex 3,17; Lc 10,17; At 2,6). Há cinquenta anos, Karl Rahner já fizera profeticamente alusão a essa forma de vida eclesial: “A Igreja do futuro será uma Igreja que se constituirá de baixo para cima, por meio de comunidades de livre iniciativa e associação. Temos de fazer todo o possível para não impedir esse desenvolvimento, mas antes promovê-lo e orientá-lo corretamente” (Rahner, 1974, p. 132).
Para tanto, será necessária apurada sensibilidade eclesial de comunhão, com sua fonte de espiritualidade na Palavra de Deus, sob a orientação dos pastores da Igreja, assegurando a comunhão eclesial (DAp 179). Infelizmente, não se chegou ainda a uma totalidade, pelo contrário: em muitos setores eclesiais, o empenho foi para que a Igreja permanecesse detentora do poder, o que não é condizente com o Evangelho. Essa postura é contrária aos anseios decorrentes da Lumen Gentium quando alude às expressões de Igreja na base, legítimas comunidades locais de fiéis, às vezes pequenas e pobres (cf. LG 26), nas quais a Igreja de Cristo está verdadeiramente presente.
Entre nós, na América Latina, essa tradição já é bem conhecida, desde as Conferências de Medellín (n. 88) e Puebla (DP 629; 630), como comunidades eclesiais de base, agora ampliada por Aparecida com as chamadas pequenas comunidades (DAp 178-180).
O grande mérito da nova eclesiologia do povo de Deus, segundo a releitura latino-americana, é a superação do dualismo entre Igreja mistério e Igreja instituição, tal como aparece no documento de Aparecida, quando os bispos retomam as próprias palavras do papa Bento XVI, ao afirmar que “na Igreja não há contraste ou contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática […], porque ambas são igualmente essenciais para a constituição divina do povo de Deus” (DAp 312).
Estão aí alguns elementos para podermos celebrar condignamente os 60 anos da Constituição Dogmática Lumen Gentium: episcopado, presbiterato, religiosos/religiosas e laicato. É imprescindível que cada um esteja sempre alerta, isto é, com cintos amarrados e com o cajado na mão, em atitude de estar “em saída”.
REFERÊNCIAS BIBLIoGRÁFICAS
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Cônego Sérgio Conrado*
*é doutor em Teologia Pastoral pela Universidade Lateranense de Roma e professor emérito da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção – PUC/São Paulo. Pároco da paróquia São Gabriel (Jardim Paulista), arquidiocese de São Paulo. E-mail: [email protected]