Roteiros homiléticos

Publicado em novembro-dezembro de 2020 - ano 61 - número 336

TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS – 2 de novembro

Por Ir. Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

“O Senhor é minha luz e salvação” (Sl 26,1)

I. Introdução geral

Na liturgia deste dia, intercedemos por todos os fiéis defuntos. A verdadeira intercessão não significa tanto fazer petições ou mesmo proferir palavras, mas consiste simplesmente em estar com Deus e pôr aqueles que amamos diante do seu coração amoroso. Nossa atitude é a esperança de que sejam acolhidos nas muitas moradas da casa do Pai (Jo 14,2).

Ao orarmos por todos os que partiram, para que alcancem a salvação e a paz, lembremo-nos também de nós, que ainda estamos aqui, e do modo como levamos nossa existência, considerando se estamos ou não a serviço de Deus e do próximo. Se nos desviamos desse propósito de alguma forma ou por diversas razões, talvez seja hora de reavaliar nossa caminhada e nosso foco.

Lembremos que a vida que temos agora a recebemos do Senhor, nosso Deus, o qual deu a cada um as condições e oportunidades para realizar uma existência verdadeiramente cristã. Não devemos ser complacentes com nossos próprios erros, mas esforçar-nos para fazer o melhor possível, sendo cristãos comprometidos.

Principalmente, enquanto celebramos o dia de Finados, reconheçamos que a morte não é o fim e recordemos a grande esperança que temos na ressurreição.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. Evangelho (Jo 6,37-40)

Tudo que Cristo faz é obra do Pai. Embora o papel de Cristo seja central para a salvação da humanidade, não devemos esquecer o papel de Deus Pai. Jesus enfatiza a importância de aceitá-lo como enviado do Pai que traz a salvação para o mundo. Para chegarmos até o Cristo, é necessário sermos atraídos pelo Pai, e Cristo não rejeitará no seu Reino aqueles que correspondem a essa graça – eles a possuirão por toda a eternidade na ressurreição.

Jesus afirma que veio para fazer a vontade do Pai, e o âmago da vontade do Pai é que todo aquele que crê em Cristo não pereça, mas tenha a vida eterna, e o mundo seja salvo por seu divino Filho (Jo 3,16-17). Quem realmente acredita que Cristo foi enviado por Deus terá fé nele e fará o que ele disser, não importa quão difícil isso possa parecer. Cumpre esclarecer, no entanto, que fé, para a Bíblia, não é a aceitação de um conceito, e sim total e completo compromisso com Deus.

Cristo se compromete conosco e não nos decepcionará. A morte não terá a última palavra, o fim de tudo é a ressurreição. Devemos confiar no amor de Cristo. Ele sofreu a paixão por nossa causa, para nos resgatar do pecado. Pensemos nisso quando orarmos por nossos entes queridos que partiram desta vida. Jesus nos assegura que não precisamos temer nossa sorte final.

Quando celebramos Todos os Fiéis Defuntos, mais do que a saudade que sentimos, devemos ter como foco a vida eterna e o amor de Deus. Nossos falecidos estão em Deus, foram atraídos por seu amor, e Cristo não deixará que nenhum se perca. Essas são algumas das mais belas palavras do Senhor, confiemos nelas. Na realidade, tais palavras se referem também a nós que estamos aqui. São direcionadas principalmente a quem se sente distanciado de Cristo ou da Igreja. A vontade e o desejo do Pai é que todos aqueles que se achegaram a Cristo sejam ressuscitados, ou seja, tenham a vida transformada, antes que chegue a ressurreição final. Seu convite é para que voltemos ao seu convívio, a fim de sermos membros efetivos da Igreja. A vida eterna começa aqui e agora e significa um relacionamento com Deus que vai se aprofundando passo a passo.

2. I leitura (Jó 19,1.23-27a)

Esta reflexão é favorecida com o destaque de uma das figuras mais conhecidas da Bíblia, Jó. Homem bem familiarizado com o sofrimento, ele conheceu o luto e era bastante ciente da própria fraqueza e mortalidade. Antes rico, saudável e bem-sucedido, com muitos filhos, havia perdido tudo em uma série de eventos devastadores: perdera seus recursos, sua saúde e sua família.

Jó sente que está prestes a falecer e parece planejar seu epitáfio. Ele quer que suas palavras sejam preservadas para a posteridade em um rolo ou, melhor ainda, inscritas em chumbo ou gravadas em pedra. Quer que algo de sua vida resista ao tempo, quer algum tipo de legado que perdure além de sua morte.

Nós nos identificamos fortemente com o sofrimento de Jó e com seus anseios. Ansiamos por um legado duradouro para nós mesmos e valorizamos concretamente a memória daqueles que amamos e perdemos. Apegamo-nos a coisas que mantenham viva a memória de nossos falecidos. Preservamos o que irá honrá-los mesmo depois de terem partido.

Jó tem muito para nos ensinar. No meio de seu luto e sofrimento, permaneceu esperançoso em relação ao futuro. Sua esperança foi sustentada pela fé em Deus, foi alimentada pela confiança no poder e na bondade divina. Sabemos disso porque, nesta leitura, em meio ao sofrimento, Jó dá grande declaração de fé. Faz uma proclamação de esperança pessoal diante da morte – esperança da qual todo cristão pode compartilhar. Ele sabe que seu “Redentor vive”. Em outras palavras, tem fé na realidade de Deus. Acredita em um Deus sempre vivo, fonte e origem da vida.

A fé manifestada por Jó significa que ele prevê um futuro além do túmulo. Esse homem tem certeza de que um dia desfrutará pessoalmente do incrível privilégio de ver Deus face a face. Seu testemunho é significativo. Ele tem a certeza de que, no instante supremo da morte, seu Redentor se levantará, disposto a intervir e corresponder à esperança dele. Por isso caminha para a morte com coragem e esperança.

Um homem como Jó clamar por um Redentor é algo curioso. Sua família inteira está morta. Não há pessoa terrena para advogar por ele. Portanto, Jó está chamando por Deus mesmo. Está seguro de que Deus virá em seu auxílio. Para nós, cristãos, o Redentor é Cristo, e nossa esperança está alicerçada em sua ressurreição. Cristo é o Redentor final, o protetor, o consolador para o fiel enlutado.

3. II leitura (Rm 5,5-11)

o Espírito Santo é a fonte de um modo especial de amar, do amor ágape, ou seja, do amor incondicional, não meritório. Esse tipo de amor é um dom que vem a nós quando o Espírito nos é dado. Por isso, Paulo afirma que o amor foi derramado nos corações pelo Espírito Santo, cuja obra não é apenas nos motivar a amar sem medidas, mas nos dar garantias do amor de Deus por nós.

A certeza do amor de Deus nos dá a esperança que não nos decepciona, porque o Espírito Santo, a presença divina em nós, é garantia da plena presença de Deus que vamos experimentar nos últimos dias. Agora nós provamos em parte; naquele dia, seremos plenificados.

Antes que tivéssemos qualquer engajamento na obra de Deus ou tivéssemos buscado Deus para nossa vida, quando estávamos sem esperança e sem rumo, fracos para resistir ao pecado, quando estávamos em nosso pior momento, Jesus morreu por nós. Ele não morreu por nós porque éramos virtuosos ou até relativamente bons, pelo contrário! Aqui estão as boas notícias e o ponto principal que Paulo quer enfatizar: Jesus morreu pelos nossos pecados quando ainda não buscávamos Deus. Agora que estamos agindo melhor, ele não está disposto a nos descartar como indignos.

Deus foi além do limite do esperado. Porque nos ama, permitiu que seu Filho fosse para a cruz. Deus conhece nossos pecados, mas a cruz é a prova do seu amor por nós. Não há pecado maior que esse amor.

Agora há acesso livre à presença de Deus. Agora há “paz com Deus através de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5,1). Nossa redenção do pecado foi resolvida por sua morte na cruz e por sua ressurreição. A vida de Cristo, mediante o poder do Espírito Santo, opera a redenção em nós agora.

Então, em vez de ter medo da presença de Deus, nós nos alegramos nele por causa da reconciliação que experimentamos. Em vez de nos preocuparmos com a salvação, firmamos nossa esperança na reconciliação. Essa é a alegria da vida que temos em Cristo.

III. Pistas para reflexão

Depois de tantas mortes, no mundo inteiro, por causa da pandemia, é momento de enfatizar a esperança e a confiança no amor de Deus. O sofrimento e a morte são mistérios. Não sabemos por que certas coisas acontecem com uns e não com outros.

A homilia deve enfatizar a esperança na ressurreição, e não em tentar explicar aquilo para o que não temos explicações. A virtude de que mais precisamos, quando a morte leva pessoas de nossa família ou amigos, é a esperança. É ela que nos ajuda seguir em frente. A homilia deve consolar os enlutados, levando-os a experimentar o amor de Deus. O amor incondicional de Deus por nós é a razão pela qual podemos ter certeza de que somos perdoados; de que, mesmo em face da própria morte, somos herdeiros da vida eterna.

De maneira especial, também é oportunidade de refletir sobre nossa jornada cristã em direção à casa do Pai. Como está nossa vida atual: levamo-la como uma vida com sentido? Fazemos dela um tédio ou um vazio existencial? Cuidamos do outro enquanto estamos a caminho? Cuidamos de nós mesmos, reservando um tempo para refletir sobre o caminho percorrido?

Essa e outras perguntas podem ser feitas na homilia para ajudar as pessoas a refletir sobre a própria vida. Obviamente a assembleia não precisa responder, são perguntas que levam a pensar. Algumas perguntas são muito mais úteis do que tecer comentários abstratos sobre a morte.

Ir. Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

graduada em Filosofia e em Teologia, cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. E-mail: [email protected]