Publicado em janeiro-fevereiro de 2022 - ano 63 - número 343 - pág.: 38-40
SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 1º de janeiro
Por Izabel Patuzzo
O plano divino da salvação
I. INTRODUÇÃO GERAL
No início do ano-novo civil, a Igreja celebra uma solenidade especial: a de Santa Maria, Mãe de Deus. Com ela, a Igreja nos recorda o importante papel de Maria no plano da salvação. Essa festa tão antiga remonta ao Concílio de Éfeso, em 431. No plano da salvação, Maria aceita que, pela ação do Espírito Santo, a Palavra de Deus encarnada habite em seu ventre. Com seu sim a Deus, torna-se morada do Espírito Santo.
O novo ano que se inicia nos oferece também novas oportunidades, novas ideias e novas decisões para fortalecer nossa relação com Deus e com o próximo, tendo Maria como modelo de discípula capaz de dizer ao Senhor: “Faça-se em mim segundo a tua Palavra”. Neste primeiro dia do calendário civil, a liturgia nos convida a rezar pela paz no mundo inteiro. Promover a paz é uma das bem-aventuranças proclamadas por Jesus. As leituras desta solenidade apontam para diversas coordenadas em nossa vida.
A primeira leitura nos fala da presença amorosa de Deus, como fonte contínua de bênção, que nos acompanha e protege em todos os momentos de nossa vida. Na segunda leitura, o apóstolo Paulo nos recorda que Jesus veio a este mundo para nos libertar pelo poder do amor incondicional, a ponto de dar sua vida por nós. O Evangelho nos mostra que a chegada de Jesus a este mundo é motivo de júbilo para aqueles que têm o coração aberto para acolhê-lo, como os pastores de Belém.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Nm 6,22-27)
Um dos motivos para essa leitura ser escolhida para a solenidade é o fato de estarmos no primeiro dia do ano de nosso calendário civil. Dessa forma, esse texto do livro dos Números se apresenta como uma fórmula de bênção para o ano que se inicia. Segundo a tradição judaica, em ocasiões importantes, uma das funções sacerdotais era abençoar o povo. A bênção era sinal de fidelidade à Aliança e a garantia de que a promessa feita por Deus a Abraão – de acordo com a qual todas as gerações futuras seriam abençoadas – de fato se cumpria continuamente na história. As palavras dirigidas por Deus a seu servo Moisés significam que essa bênção passa de geração em geração àqueles que são fiéis na observância da Aliança.
Tal bênção situa-se no contexto das últimas instruções do Senhor Deus a Moisés, antes que o povo escolhido deixasse o monte Sinai. Ela é um dom concedido a toda a comunidade dos fiéis reunidos, para que tenham vida, força e felicidade; todos são agraciados pela bênção divina. Repeti-la por três vezes significa o reconhecimento de que é fruto da generosidade divina; Deus mostra sua face de geração em geração, porque é sempre presente na vida de seu povo. Cada invocação corresponde a um dom especial: bênção, proteção e paz. O autor do texto expressa a fé de Israel, que sempre pede ao Senhor Deus que mostre sua face amiga e conceda a paz. Para aqueles que temem a Deus, essa bênção resume tudo de que precisam para uma vida em plenitude.
2. II leitura (Gl 4,4-7)
Alguns cristãos da Galácia provenientes do judaísmo pregavam que, para alcançar a salvação, os cristãos de origem não judaica deveriam se submeter a certas tradições e costumes judaicos, como a circuncisão e certas regras sanitárias e de purificação dos alimentos. Paulo intervém com muita convicção, afirmando que Jesus Cristo veio para todos e pelo batismo é que todos alcançaram a salvação. Esta não vem pela Lei ou por costumes judaicos, mas pela fé em Jesus Cristo. Sua morte redentora inaugurou nova era para judeus e não judeus. A salvação se estende a todos os que aceitam a proposta do discipulado de Jesus.
O texto apresentado na liturgia de hoje consiste num dos pontos centrais da carta aos Gálatas. Em sua mensagem, o apóstolo Paulo ensina que Cristo veio para libertar todos os que estavam sob o jugo da Lei. Pela sua morte redentora, ele libertou todos os que eram escravos, tornando-os filhos de Deus. A leitura recorda também que Jesus nasceu de uma mulher; implicitamente, lembra-nos Maria, Mãe de Jesus. A centralidade do ensinamento desse texto é a dignidade dos discípulos de Jesus de serem filhos de Deus por adoção. Assim como Jesus, o discípulo pode se dirigir a Deus como filho. Paulo foi fiel ao Evangelho que lhe foi transmitido pelos apóstolos, no qual Jesus se dirige a Deus como Pai. Assim, a palavra “filho” é aplicada a Jesus e a todo cristão batizado.
3. Evangelho (Lc 2,16-21)
A narrativa de Lucas sobre o nascimento de Jesus dá a conhecer que as primeiras pessoas que se alegram, acolhem e visitam o Filho de Deus recém-nascido são os pastores. Eles cuidavam de seus rebanhos quando, durante a noite, os anjos dos céus lhes anunciam a grande notícia, encorajando-os a não ter medo. É precisamente essa a mensagem central da solenidade que celebramos. Iniciamos novo ano sob a proteção de Maria, que trouxe ao mundo o Filho de Deus. A exemplo dos pastores, que se dirigem apressadamente para visitar Jesus, Maria e José junto à manjedoura, nós também somos convidados a contemplar a simplicidade e a pequenez com que o Salvador veio ao mundo.
Os pastores, além de se dirigirem apressadamente para encontrar-se com Jesus, glorificam e louvam a Deus por esse tão grande acontecimento. No nascimento de Jesus, Deus se faz muito próximo desse grupo de pessoas. Jesus também vem como o verdadeiro pastor que, mais tarde, irá dar a vida pelas suas ovelhas. Ele foi acolhido por essa categoria de trabalhadores que passam a noite cuidando de seu rebanho. Simbolicamente, Lucas indica que o anúncio oficial do nascimento de Jesus é feito pelos anjos, criaturas divinas que trazem a boa notícia, em primeiro lugar, aos pastores. A atividade de pastoreio, no Antigo Testamento, era atribuída a Deus. Assim, a presença dos pastores tem um sentido profundo de identificação com a missão de pastorear o povo que Jesus irá desenvolver e que Lucas apresentará em todo o decorrer do terceiro Evangelho.
Assim como os pastores agiram ao ouvir o canto celeste dos anjos, somos convidados a proclamar a glória de Deus, porque o Príncipe da paz vem até nós. Jesus é a luz que brilha na escuridão da noite. A experiência do nascimento é um ato comunicativo em todos os sentidos. Os anjos são comunicadores da Boa Notícia, e os pastores são aqueles que apressadamente acolhem a mensagem e vão ao encontro de Jesus. Maria, por sua vez, ensina-nos que as maravilhas desse grande acontecimento são para serem guardadas no silêncio do coração. É preciso esforço para compreender esse mistério. Lucas nos apresenta Maria como uma pessoa que sabe ouvir a mensagem divina, que a medita e guarda no coração. Desde a visitação, é aquela que acredita na mensagem do Senhor; escuta-a e a põe em prática. Por isso, Deus realiza grandes coisas em seu favor e em favor de seu povo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Lucas descreve Maria como uma pessoa que sabe escutar. A história da salvação apresentada nas Escrituras nos revela que Deus é o primeiro a escutar o clamor de seu povo. Ele não se mantém indiferente às suplicas de seus filhos. Duas palavras-chave caracterizam a ação de Deus em relação à humanidade: escuta e palavra. Depois de escutar seu povo, Deus lhe dirige palavras de orientação. Como discípulos de Jesus, aprendamos de Maria e dos pastores a atitude de escutar o que Deus nos fala.
O papa Francisco nos convida a ser uma Igreja de encontro e de diálogo. A escuta nos educa para sermos atentos às manifestações de Deus em nossa vida, bem como para escutar uns aos outros. Há muitos gritos da humanidade, da criação, que precisam ser escutados. Precisamos ser atentos como Maria, que ouve, contempla, guarda no coração o que Deus lhe comunica, mas se deixa transformar por tudo que ouve.
Os pastores também se puseram nessa atitude de ouvintes dos anjos e depois agiram segundo a mensagem divina. A liturgia deste dia nos apresenta grandes modelos de pessoas que souberam ouvir a voz de Deus e pôr em prática a mensagem recebida do alto. Interroguemo-nos: temos a mesma sensibilidade para estarmos atentos à vida e perceber a presença de Deus, como Maria e os pastores? Somos, a exemplo deles, capazes de deixar que a Palavra de Deus transforme nossa vida? Que a luz desta solenidade possa trazer para nosso novo ano um sonho para nosso bem e do próximo; um sonho-projeto para este ano; uma escolha de amor que nos guie por todo o ano.
Izabel Patuzzo
pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]