Publicado em julho-agosto de 2022 - ano 63 - número 346 - pág.: 60-62
Solenidade da Assunção da Virgem Maria – 21 de agosto
Por Izabel Patuzzo*
Bem-aventurada aquela que acreditou
I. INTRODUÇÃO GERAL
Para a fé católica, o papel de Maria na história da salvação é o de serva que se dispõe a colaborar com Deus. Ela não é a salvadora, mas sim a Mãe do Salvador, e por isso admiramos sua atitude de acolher em si a ação do Espírito Santo, dizendo sim a Deus. A fé é a marca da vida de Maria; ela é, essencialmente, uma mulher de fé. Tal vivência se confirma quando, ao ouvir a mensagem do anjo Gabriel, imediatamente se dispôs a colaborar com o projeto de Deus. Certamente, apoiada por sua fé e tendo como base as tradições de seu povo, também ela esperava pela vinda do Messias. Maria aceitou o grande desafio de gerar Jesus. A fé na tradição e na história do povo possivelmente impulsionou Maria a arriscar-se, na certeza de que Deus é fiel. Ela não apenas escuta o anjo Gabriel, mas também sabe dialogar.
Olhando para Maria, aprendemos a descobrir, como em um espelho, o próprio Cristo. O serviço evangelizador e doméstico da Mãe de Jesus é modelo para nós. Ela se coloca em saída, a caminho para encontrar-se com Isabel. E desse encontro brota um diálogo profundo entre as duas futuras mães, que tanto cooperaram para a salvação da humanidade.
Deus, ao entrar na vida de Maria com um projeto inusitado, revira e reordena sua vida. Uma vida assim requer abertura, acolhida, doação, oblação, coragem e força para enfrentar as dores e os sacrifícios. Esse total abandono nas mãos do Pai só é possível com o auxílio da graça divina. Contemplamos na vida de Maria um duplo agir que combina o agir de Deus com a liberdade humana.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ap 11,19a; 12,1.3-6a.10ab)
A primeira leitura nos fala do papel de Maria, como foi entendido por muitos. Provavelmente no nível mais literal de compreensão, a leitura não tem nada a ver com Maria, e sim com todo o povo de Deus e a Igreja primitiva. Nos primeiros comentários bíblicos sobre o livro do Apocalipse, os Santos Padres simbolicamente aplicaram esse texto a Maria como Mãe da Igreja, Mãe de todo o povo de Deus.
As visões cosmológicas descritas pelo autor do Apocalipse fazem uso de uma linguagem simbólica, muito comum naquele tempo. Era nova forma de profetizar, de descrever o indescritível. Revelam que Deus se faz presente na vida de seu povo em todas as circunstâncias; ele arranca seu povo de todas as formas de escravidão. A visão da mulher que enfrenta o dragão foi muitas vezes, ao longo da história do cristianismo, aplicada a Maria, no sentido de que seu Filho foi perseguido pelo poder opressor das autoridades judaicas e romanas.
O Apocalipse de São João foi escrito em um contexto de muita hostilidade às comunidades cristãs da Ásia Menor. Os cristãos não eram acolhidos nem pelas sinagogas judaicas nem pelas autoridades romanas, e sentiam-se ameaçados, por serem uma minoria que professava a fé em Jesus Cristo. Eles caminhavam na contramão, pois o culto ao imperador romano era propagado em todo o império. Em tom profético, o autor evoca essa realidade desafiante para os cristãos, fazendo uso da linguagem própria dos grupos de resistência de seu tempo. A mulher pode representar a Igreja ou o novo Israel, simbolizado pelas 12 estrelas, que recordam as 12 tribos de Israel e os 12 apóstolos. O dragão simboliza todo poder opressor que persegue a Igreja. Aplicando o texto a Maria, reconhecemos que ela contribuiu para a nova humanidade inaugurada por seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor.
2. II leitura (1Cor 15,20-27a)
A Igreja distingue o substantivo “ascensão” de “assunção”. Enquanto Jesus ressuscitado ascendeu ao céu, Maria foi assunta, isto é, experimentou uma forma privilegiada de ressurreição. A Ascensão do Senhor tem sua origem na Páscoa de Jesus e manifesta sua obra redentora. Ele é as primícias, a cabeça da Igreja, o novo Adão. Essa passagem da primeira carta aos Coríntios apresenta longa reflexão teológica acerca da ressurreição. Proclamada nesta solenidade da Assunção, a leitura apresenta uma espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de participação nesse grande mistério.
Nossa ressurreição tem origem na ressurreição de Cristo. Ele é o primeiro, o princípio da nova humanidade. Por isso o apóstolo Paulo lhe atribui o título de novo Adão, distinto do primeiro Adão, que se deixou corromper pelo pecado e, como consequência, trouxe a morte à humanidade. O novo Adão veio para conduzir a todos os que o seguem à luz da vida eterna. Maria, como primeira discípula de seu Filho, recebeu, na tradição da Igreja, um lugar especial na celebração de sua ressurreição.
3. Evangelho (Lc 1-39-56)
A visita de Maria à sua prima Isabel nos é relatada como algo que ela fez apressadamente. A essa altura, Maria já sabe que Isabel está no sexto mês de gestação, porque o anjo Gabriel lhe disse. A saudação de Maria provoca uma agitação no seio de Isabel: é a prefiguração da chegada do Messias, que vem trazer alegria. A maternidade das duas mães é um sinal visível da ação de Deus. João Batista, desde o seio materno, reconhece os sinais da chegada do Messias. Por estar repleta do Espírito Santo, Isabel reconhece que Maria carrega o Senhor. É importante perceber que Isabel saúda Maria como Mãe do Senhor e por isso a chama de bem-aventurada, porque acreditou.
A saudação de Isabel a Maria recorda o cântico da profetisa Débora, que proclama um louvor a Jael, mulher que ajudou Israel a vencer a batalha contra o inimigo. Foi o Senhor Deus que lhe concedeu a vitória (Jz 5,24). Também a matriarca Judite foi chamada de bem-aventurada quando intercedeu por seu povo (Jt 13,18). A proclamação de Isabel faz memória a outras mães que exerceram importantes papéis na história do povo de Deus como intercessoras.
Depois de ouvir o cântico de Isabel, Maria também proclama o seu, como reação à saudação que recebe. Ela proclama o Magnificat, que também se inspira em outra matriarca importante do Antigo Testamento: Ana, mãe de Samuel. Maria exalta a grandeza do Senhor, falando como autêntica depositária do favor de Deus, apesar de sua pequenez. As gerações futuras a chamarão de bem-aventurada porque o Senhor é grande em poder, santidade e misericórdia para com Israel. Na conclusão do Magnificat, Maria afirma que a salvação futura, prestes a se realizar, é o cumprimento da promessa feita aos seus antepassados. O nascimento e toda a atividade pública de Jesus são a manifestação visível de que o Senhor Deus é fiel à Aliança selada com Israel. Maria acredita que Deus cumpre tudo o que prometeu no passado, e ela foi agraciada com os sinais dessa realização na sua própria pessoa.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A devoção mariana é uma característica da fé católica. Em nossa Igreja, Maria é a grande intercessora. Rezar para ela é pedir-lhe que interceda por nós, como expressamos na oração da ave-maria: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte”. Seu sim a Deus mudou nossa história. Humana como nós, ela pôde ser tão fiel ao Senhor e pode chegar tão perto do divino. Sua intervenção maternal em Caná da Galileia resume muito bem sua intercessão por nós: “Fazei tudo o que ele vos disser”.
Rezar com Maria é confiar que ela está do nosso lado; ela nos ajuda a entrar em um clima de oração, de intimidade com o Senhor, assim como foi capaz de ser tão próxima a ele. Maria foi fiel ao seu compromisso desde a anunciação até a cruz, quando recebeu seu Filho amado em seus braços. A ressurreição de Jesus passa pelo carinho do colo da mãe depois de sua morte. É o primeiro gesto de amor depois de sua entrega na cruz. Quando pedimos sua intercessão, unimo-nos a ela em oração, pois acreditamos que nos guia e nos acompanha em nossa caminhada junto de Deus.
Izabel Patuzzo*
*pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]