Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 62-64
São Pedro e São Paulo – 28 de junho
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Testemunhas do evangelho, guardiões da fé
I. Introdução geral
O coração desta liturgia é a memória dos apóstolos Pedro e Paulo, as duas testemunhas mais marcantes do cristianismo das origens, cujos legados se estendem pelos séculos afora. Um pescador galileu transformado em pescador de seres humanos; um fariseu fanático e perseguidor de cristãos que se tornou apóstolo das nações. Ambos assumiram um protagonismo incomparável nas primeiras décadas do cristianismo, a ponto de aventarmos que o livro dos Atos dos Apóstolos poderia tranquilamente ser chamado de Atos de Pedro e Paulo. Com caminhos e métodos diferentes – como eram tão diferentes em personalidade e história de vida –, tiveram em comum a paixão por Jesus Cristo e o zelo pelo seu evangelho, recebendo, como prêmio, a coroa do martírio.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: At 12,1-11
Embora forneça o melhor panorama da vida da Igreja em suas origens, o livro dos Atos dos Apóstolos não é um livro de crônicas, mas uma obra teológica e catequética na qual, por meio de narrativas, o autor Lucas quer mostrar que nenhuma força consegue impedir a expansão da Palavra de Deus. É nessa perspectiva que devemos ler todo o livro e, especialmente, o texto indicado pela liturgia deste dia como primeira leitura. Trata-se de um dos textos mais vivos e animados de todo o livro. É também a última cena que tem Pedro como protagonista, pois, no capítulo seguinte, entra em cena o protagonismo de Paulo.
O texto se inicia com um dado que retrata um momento crítico na vida da comunidade cristã de Jerusalém: a perseguição encabeçada por Herodes, com prisão, tortura e até a morte de um dos doze primeiros apóstolos chamados pessoalmente por Jesus, Tiago (cf. vv. 1-2). Aos poucos, o autor vai mostrando que há uma conformação dos discípulos à vida de Jesus; assim como o Mestre, eles são alvo de um conluio entre o poder romano e as autoridades judaicas (cf. vv. 3-4). A prisão de Pedro nos “dias dos Pães Ázimos”, ou seja, no período da Páscoa, é o principal indício da intenção do autor de mostrar que há correspondência entre o destino dos discípulos e o de Jesus.
A oração da Igreja por Pedro, enquanto estava na prisão (cf. v. 5), evidencia a estima que a comunidade de Jerusalém tinha por ele e a confiança dela no Senhor. Como, no evangelho, Lucas já tinha destacado o apreço de Jesus pela oração, em Atos ele mostra que a Igreja é continuadora também dessa prática, e isso é um sinal de fidelidade ao que o Mestre havia ensinado. A descrição da libertação miraculosa de Pedro (cf. vv. 6-11) é construída com o uso de diversas imagens, cujo objetivo é mostrar que Deus é o verdadeiro protagonista e Senhor da história, propondo três ensinamentos fundamentais para a comunidade cristã: a) a eficácia da oração comunitária; b) a proteção de Deus sobre as pessoas que ele chama para o seu serviço; c) nenhuma força ou poder humano é capaz de impedir a realização do projeto libertador de Deus. A expressão “anjo do Senhor” (vv. 7.11) significa o próprio Deus; é ele quem liberta o ser humano de todo mal, e a salvação é obra sua.
2. II leitura: 2Tm 4,6-8.17-18
A segunda carta a Timóteo é uma espécie de testamento autobiográfico atribuído a Paulo. É quase unanimidade entre os estudiosos que seu autor real não foi o apóstolo, mas alguém que o conhecia muito bem e quis documentar elementos importantes do seu legado, já que nas cartas autênticas ele fala muito pouco de si. É provável, até, que essa carta tenha sido escrita no final do primeiro século ou mesmo no início do segundo. O importante, no entanto, é que nela está o retrato de Paulo, também pelo tom pessoal e intimista.
O escrito retrata a fase final da vida do apóstolo, destacando a consciência tranquila de quem soube dedicar a vida à causa do evangelho (cf. v. 6). Com muita serenidade, empregando uma linguagem altamente simbólica, ele relata a sua apaixonante experiência de vida cristã. Sua tranquilidade de consciência deriva da certeza de ter guardado a fé (cf. v. 7). Com isso, quer dizer que anunciou o evangelho de modo integral, sem nenhuma distorção (cf. v. 17); foi totalmente fiel ao Senhor. O zelo pela fé que guardou e defendeu é tão grande, a ponto de praticamente não conseguir expressá-lo. Por isso, recorre à linguagem do culto (cf. v. 6), o que significa a consciência do martírio que se aproxima e a certeza de ter feito da vida um culto agradável a Deus. Há ainda imagens do mundo militar e esportivo: “combati o bom combate, completei a corrida” (v. 7).
Enfim, a vida de Paulo foi uma aventura de amor na qual ele fez tudo o que foi possível para o evangelho ser anunciado, podendo contar com a proteção do Senhor em todas as circunstâncias da vida, até a morte. Por isso, a conclusão da carta e da vida é feita com um hino de louvor a Deus, como deve ser a vida de todos os cristãos.
3. Evangelho: Mt 16,13-19
O texto evangélico indicado para esta liturgia relata um episódio central no Evangelho de Mateus: a confissão de fé feita por Pedro, reconhecendo Jesus como “o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Embora se trate de um episódio comum aos três sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), a versão de Mateus apresenta algumas particularidades importantes, o que fez a Igreja valorizá-la mais ao longo da história. A cena transcorre na região de Cesareia de Filipe (cf. v. 13), no extremo norte da Galileia; como o próprio nome indica, trata-se de uma cidade imperial, onde o culto ao imperador romano era praticamente imposto. Logo, a confissão da messianidade de Jesus ali era uma denúncia e desmascaramento da religião imperial.
A pergunta de Jesus sobre o que dizem dele (cf. v. 13b), ou seja, do Filho do homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, e sim com a eficácia do anúncio feito pelos seus seguidores. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais no meio do povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que ele trazia; uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para se aproveitarem dos sinais realizados.
A opinião do povo, conforme a resposta dos discípulos, revela a falta de clareza existente sobre a identidade de Jesus, mas também mostra que ele estava bem-conceituado, pois era reconhecido como um grande profeta (cf. v. 14). De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que acenderam a esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando. A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, o que Jesus mais queria saber era o que os discípulos pensavam da sua pessoa. Por isso, pediu também a opinião deles (cf. v. 15). O texto diz que Pedro respondeu, afirmando: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Na verdade, essa é a resposta de todo o grupo dos discípulos.
A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho do Deus vivo. É muito significativo que seja reconhecido como o Messias esperado, ou seja, como o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de Messias entre o povo, principalmente a de um Messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância. Além de definir a qualidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.
Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado (cf. v. 17), pois percebe que está aberto aos propósitos do Pai, que é quem revela tudo. É isso que torna o apóstolo apto a participar da construção da sua comunidade, a Igreja (cf. v. 18). Ao contrário da antiga religião judaica, que precisava de um templo de pedras, na construção da Igreja são necessárias pedras vivas. E Pedro é a primeira. Jesus declara que as hostilidades e perseguições – ou seja, o “poder do inferno” – não conseguirão destruir a sua Igreja, edificada com pedras vivas e seguras como Pedro.
No final, temos a mais significativa declaração de Jesus a Pedro e à comunidade (cf. v. 19), o que não é propriamente uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus”, porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida, expresso nas bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-2), tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, imagem da responsabilidade. Se alguém ficar fora do Reino, a causa pode ser a omissão da comunidade. Isso significa que, quando a comunidade cristã vive profundamente o que Jesus ensinou, acontece a comunhão perfeita entre o céu e a terra.
III. Pistas para reflexão
Esta é uma festa que deve imprimir alegria e confiança em todas as comunidades cristãs. É importante explicar bem as leituras e não utilizar o texto de Mateus para alimentar saudosismos e pretensões triunfalistas.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).