Introdução Geral
A Igreja celebra o martírio de Pedro e Paulo na mesma data porque eles estiveram unidos no mesmo propósito: seguir Jesus até a morte. Ambos são alicerces vivos do edifício espiritual que é a Igreja. Pedro evangelizou os judeus; Paulo fez a mensagem de Jesus chegar às demais nações. A incessante pregação de ambos foi fecundada com o martírio. Eles dão provas de até que ponto pode ir o ser humano quando elege o projeto de Deus como opção de vida. Não foram pessoas apenas de palavras, mas testemunhas de que a fé remove as montanhas do egoísmo. O modo como viveram e como morreram questiona o comodismo de nossa fé.
II.Comentário dos textos bíblicos
- Evangelho (Mateus 16,13-19): as portas do inferno não vencerão
No evangelho de hoje, Jesus faz duas perguntas aos discípulos. Na primeira ele quer saber o que as pessoas em geral estão dizendo a respeito dele e, na segunda, o que os discípulos pensam sobre ele.
Com essas perguntas, parece que Jesus está fazendo uma pesquisa de opinião, para ver se a mensagem dele está sendo entendida pelo público. Ele está ocupado em construir, na consciência coletiva, a identidade dele, ou seja, quer estabelecer exata compreensão a respeito do Messias e, além disso, do tipo de Messias que ele é. Jesus faz essas perguntas aos discípulos porque sabe que da correta assimilação da identidade dele depende a correta compreensão de sua mensagem. Se alguém entende de forma errada quem é Jesus, compreenderá erroneamente a sua mensagem e terá uma práxis totalmente diferente da que ele espera.
Nas respostas dos discípulos à primeira pergunta, são explicitadas as diversas esperanças messiânicas de Israel.
Pedro toma a iniciativa de responder à pergunta feita aos discípulos sobre a identidade de Jesus. Mas é a comunidade dos discípulos, representada por Pedro, quem diz corretamente quem é Jesus e qual é sua missão. A resposta da comunidade representada por Pedro é uma profissão de fé no “Cristo, Filho do Deus vivo”.
Essa profissão de fé não é fruto da lógica e do esforço humano, mas é revelação divina, pois quem o revela à comunidade é o próprio Pai, que está no céu. Foi a abertura da comunidade à revelação divina que possibilitou reconhecer e confessar a fé no Cristo. E é sobre a fé confessada no Cristo, Filho do Deus vivo, que a Igreja é edificada. A expressão “esta pedra” refere-se à confissão de fé e é um trocadilho com a palavra “Pedro”, por cujos lábios ela é pronunciada. O fundamento da Igreja é Jesus, pedra angular (Mt 21,42), confessado como Messias/Cristo pela comunidade de seus seguidores (são João Crisóstomo, Homilia XXI,1).
Porque a comunidade dos seguidores confessou a verdadeira identidade de Jesus como Messias/Cristo, pedra angular ou fundamento, ela recebeu “as chaves do Reino” (e não da Igreja). O termo “chaves” significa ter acesso e, nesse caso, remete a Is 22,22. Então, é tarefa da Igreja cuidar da obra divina não como um proprietário, pois o Reino é de Deus, mas como um mordomo ou despenseiro que cuida da casa de seu verdadeiro senhor, ao qual prestará contas de seu serviço. E cuidar do Reino significa fazer que ele cresça neste mundo.
Então a principal tarefa da comunidade dos discípulos de Jesus, a Igreja, é proporcionar o avanço do Reino dos Céus (ou de Deus). Esse avanço significa uma ofensiva a tudo que se constitui em antirreino (representado pelo termo “inferno”). “As portas”, naquela época como hoje, significavam o poder de defesa. Uma cidade (murada) com portas resistentes tinha grande poder de defesa numa batalha. “As portas do inferno não resistirão” significa que a comunidade dos discípulos de Jesus faz o Reino avançar contra o antirreino (o inferno), e por mais fortes que sejam os poderes de defesa (as portas) do inferno, eles não conseguirão resistir por muito tempo ao ataque da Igreja, a qual por fim verá o Reino vencer e ser instaurado plenamente. As portas do antirreino cairão ao final do ataque feito pela Igreja.
Em vista do avanço do Reino, uma das tarefas da Igreja é “ligar ou desligar”, mas isso não diz respeito a uma autoridade soberana do líder da Igreja. O sentido de “ligar ou desligar” refere-se ao âmbito da comunhão entre o fiel e a comunidade, ou melhor, ao sacramento da reconciliação. É precisamente no âmbito do ministério da reconciliação que a Igreja exerce a tarefa de excluir oficialmente um membro da comunhão plena ou de readmiti-lo (reconciliá-lo), uma vez cumpridas certas condições. Desse modo, “ligar ou desligar” significa fundamentalmente a faculdade de perdoar os pecados, reconciliando o pecador com Deus, mediante a visibilidade do sacramento, impondo-lhes condições e obrigações que sejam o sinal da verdadeira conversão.
- I leitura (Atos 12,1-11): Foi lançado na prisão
Na primeira leitura, Pedro é envolvido no mesmo destino de Jesus, primeiramente porque foi preso na festa dos pães sem fermento (a Páscoa). Além disso, o texto começa com a decisão do rei Herodes de tentar destruir a Igreja, prendendo e matando seus líderes. O rei deseja remover os pilares da casa para fazer a construção inteira ruir. A prisão de Pedro não é um fato isolado – na mesma época, Tiago (filho de Zebedeu) foi martirizado. O governante condena pessoas inocentes para garantir a própria popularidade, algo semelhante ao que foi feito a Jesus.
Os detalhes de como Pedro estava sendo guardado pelos soldados romanos apenas asseguram que uma fuga seria impossível. Enquanto Pedro estava preso, a Igreja reunida orava incessantemente, solidarizando-se com a situação dele, pois constituíam um só corpo no Senhor. E ao fervor da oração, Deus respondeu com a libertação. Na noite anterior ao dia em que Herodes apresentaria Pedro ao sinédrio para ser condenado, Deus agiu em resposta à oração da Igreja.
O texto enfatiza que Pedro dormia enquanto esperava o próprio julgamento e condenação. Pedro teve dificuldade de saber se o que estava acontecendo era real; isso significa que ele não esperava uma libertação. E se mesmo assim conseguia dormir, fazia-o porque confiava plenamente em Deus e estava preparado para morrer por sua fé. Enquanto Pedro está sendo libertado, o texto faz questão de mencionar novamente que a prisão era de segurança máxima e, apesar de todas as precauções, Herodes não conseguiu o seu intento de destruir a Igreja.
- II leitura (2Tm 4,6-8.17-18): Terminei minha carreira, guardei a fé
O texto da segunda leitura se refere ao momento em que Paulo estava preso e pensava que seria condenado à morte. Suas palavras não revelam nenhuma amargura, mas a serenidade de quem se abandonou nas mãos de Deus. O apóstolo estava pronto para ser imolado, isto é, estava à disposição para ser morto por causa do evangelho. Além disso, considera que a morte por causa do evangelho é aceita por Deus como verdadeira oferta ou sacrifício.
A vida do cristão é comparada a uma batalha e a um esporte de Olimpíada: “Combati o bom combate, terminei minha carreira” (v. 7), mas em tudo a fé saiu vitoriosa, faltava apenas subir ao pódio e receber a coroa de louros que confirmava a vitória. Isso significa que o apóstolo sabe que Deus não deixará sua morte sem resposta. A última palavra não é a morte, a última palavra é de Deus, que dá vida plena àqueles que nele se abandonam. A ressurreição não significa um prêmio, mas sim que Deus partilha a vida que lhe é própria (eterna) com aqueles que a ele doaram a vida humana e efêmera. A ressurreição é grande dom de Deus, e não simples troca de uma vida por outra. A vida que doamos a Deus em nada se compara à vida eterna que ele gratuitamente nos dá. Por isso não é um prêmio. A coroação de que o apóstolo fala significa que a última ação é de Deus e não do carrasco.
III. Pistas para reflexão
A prisão dos dois apóstolos atesta que somente é verdadeiro discípulo de Cristo quem por ele enfrenta perseguições e martírios, mantendo a fé/fidelidade. Os exemplos de Pedro e de Paulo mostram que a Igreja não é edificada sobre pessoas, mas sobre a confissão de fé no Cristo ressuscitado e ressuscitador. Tal confissão de fé não é apenas um discurso de belas palavras, mas testemunho de vivência na fidelidade a Deus, custe o que custar, mesmo que seja a própria vida. Muitas pessoas se orgulham de que Cristo tenha entregado as chaves do Reino a Pedro e não se lembram de que as chaves significam serviço. Outras pessoas se ufanam de que Pedro tenha recebido a missão de “ligar e desligar” e não sabem que o objetivo disso é manter a Igreja numa fé autêntica e operante no mundo.
É oportuno que o presidente da celebração peça orações pelo Santo Padre e que realce o empenho com que tem destacado a misericórdia do Pai, tão necessária à Igreja e ao mundo de hoje. Também é importante ficar claro que, mesmo quando Pedro é o padroeiro do lugar, a festa é também de São Paulo. Os dois são as colunas principais da Igreja.
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj, é graduada em Filosofia e em Teologia. Cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]