Trindade: a dinâmica salutar do amor
I. Introdução geral
Na liturgia deste dia, celebramos a solenidade da Santíssima Trindade. Somos assim convidados a celebrar e contemplar o mistério de nossa fé: Deus uno e trino. Como é habitual, nossa liturgia foi prenunciada ou preparada pela liturgia do domingo anterior, Pentecostes. Na liturgia do domingo passado, contemplamos e celebramos o dom do Espírito, o Consolador, aquele que vem ser nosso auxílio para recordar os ensinamentos dados a nós por Jesus e nos ensinar o que for necessário. É dentro dessa missão do Espírito, de sua ação na vida da Igreja, que podemos confessar um Deus em três pessoas.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. Evangelho (Jo 16,12-15): O Espírito da verdade nos conduzirá à plena verdade
O evangelho traz pequeno trecho de um discurso de Jesus conhecido como “discurso de despedida” (cf. Jo 13-17). Nesse discurso, Jesus instrui os discípulos sobre vários assuntos e sabe que fala de coisas que os discípulos ainda não são capazes de entender. Por isso, aponta para um tempo futuro, no qual o Espírito, aqui qualificado como “Espírito da verdade”, irá conduzi-los à plena verdade. O texto de João vai ainda mais longe e diz que o Espírito “não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido” (v. 13).
Como vimos nas liturgias dos domingos anteriores, o Espírito é um dom primeiramente do Pai, porque foi quem o prometeu, mas, na liturgia de Pentecostes, vemos que o Espírito é “soprado”, concedido pelo Ressuscitado; portanto, é enviado também pelo Filho. Essa relação estreita entre Pai, Filho e Espírito é reafirmada no último versículo: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso disse que o que ele receberá e vos anunciará é meu” (v. 15). Assim, tudo o que o Espírito nos anuncia vem do Pai e do Filho. Esse trecho é claramente trinitário!
2. I leitura (Pr 8,22-31): Cristo, sabedoria de Deus
A primeira leitura, tirada do livro dos Provérbios, traz o importante tema da personificação da sabedoria. À sabedoria foram aplicadas qualidades humanas, de modo que ela passa a ser percebida como uma pessoa. Essa sabedoria personificada foi interpretada pelos cristãos como protótipo da pessoa de Cristo. Tal releitura cristã é justificada pelos atributos da sabedoria: existente desde o início, junto de Deus na obra da criação etc. Essas qualificações tornaram possível a identificação da sabedoria com aquele que estava junto de Deus, o Verbo, por meio de quem tudo foi feito e fora do qual nada foi feito (cf. Jo 1,1-3; Cl 1,16).
A leitura nos ajuda a perceber que a ação criadora e salvífica de Deus é contínua. Isso significa que não há uma separação radical entre as ações de Deus em favor dos seres humanos no Antigo e no Novo Testamento, mas uma continuidade diferenciada. O Deus de Israel é o mesmo Deus de Jesus Cristo que, desde sempre, tomou a decisão de salvar a sua criação e o faz se manifestando, comunicando-se com a humanidade, desejando participar da vida do ser humano e, assim, partilhar de suas dores, sofrimentos, alegrias, vitórias e derrotas.
3. II leitura (Rm 5,1-5): Fé, esperança e amor, transbordamento do amor divino
A segunda leitura, tirada da carta aos Romanos, fala-nos da justificação pela fé, que se dá pela mediação em Jesus Cristo, e dos benefícios recebidos por esse acesso ao Pai: a reconciliação e a paz (cf. v. 1). O texto de Romanos ainda joga com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade (amor). As virtudes, principalmente o amor de Deus, foram derramadas nos corações humanos pelo Espírito que nos foi dado (cf. v. 5).
A missão do Cristo é dupla: revelar o Deus uno e trino e conduzir a humanidade à salvação, ou seja, ao próprio Deus Trindade. Em Cristo e por ele, temos acesso à Trindade e participamos também da missão dele de revelá-la, porque o Espírito está em nós e nos transforma em cooperadores dessa missão do Filho, Jesus Cristo.
III. Pistas para reflexão
Como é possível ter acesso ao mistério da Santíssima Trindade, o qual nos parece tão impenetrável? O evangelho nos informa que a experiência da Trindade passa pela ação do Espírito Santo em nós. Somente pela docilidade ao Espírito compreenderemos a relação íntima e profunda entre o Pai, o Filho e o Espírito. A vida e a missão de Jesus revelam a decisão de Deus Pai de caminhar com a humanidade desde o antigo Israel, com os patriarcas Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, os profetas, os reis e todo o povo. Jesus escolhe os doze e se revela como Salvador, mas o pleno entendimento só acontecerá quando a comunidade experimentar a ação do Espírito em seu meio. “Tudo que o Pai possui é meu”, afirma Jesus no evangelho (v. 15). O Espírito foi encarregado de nos revelar tudo sobre o Pai, de nos dar toda a compreensão dessa relação de amor.
Em Jo 14,9 Jesus nos diz: “Quem me vê, vê o Pai”. Aproximamo-nos de Jesus pela força do Espírito; somos conduzidos a adentrar nessa fonte de vida que passa do Pai para o Filho e do Filho para o Pai por meio do Espírito, derramado abundantemente nos corações. Podemos afirmar que a Trindade é amor. Então, é esse mesmo amor que deve conduzir nossa existência. Mas que amor é esse? Como fazer o amor ser verbo de ação em nossa vida? A conscientização de que, em Cristo, somos inseridos na Trindade nos compromete a decidir aceitar o desafio de usufruir desse transbordamento íntimo de amor e de nos pormos a caminho com nossos irmãos e irmãs, partilhando suas dores e alegrias.
Rita Gomes
Ir. Rita Maria Gomes, nj, é natural do Ceará, onde fez seus estudos em Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde lecionou Sagrada Escritura. Atualmente é professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]