Celebramos a oitava de Natal, a solenidade da Santa Mãe de Deus. Até a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, era chamada festa da Circuncisão de Nosso Senhor. O evangelho relata que Jesus recebeu a circuncisão acompanhada da imposição do nome, como prescreve a tradição de Israel. Esse rito significava a integração do “nascido de mulher” na comunidade judaica, como ressalta a segunda leitura. A inserção de Jesus na humanidade e no povo passa pelo útero de Maria. Jesus nasce de mãe judia e submetido à Lei judaica.
Como, no século IV, foi escolhido o dia 25 de dezembro para celebrar o Natal, a oitava coincide com o ano-novo romano, fixado em 1º de janeiro por Júlio César. Assim, a festa de hoje coincide com o início do ano civil, atualmente celebrado como dia da paz mundial. Neste contexto, cabe bem a primeira leitura, que evoca a bênção do ano-novo israelita (Nm 6,27), reforçada pelo salmo responsorial. Aliás, o próprio nome que Jesus recebe sugere que ele é a bênção: yeshua, “o Senhor salva”. Maria deu Jesus à humanidade como um presente de Deus (cf. 4º domingo do Advento), e Deus faz “brilhar sua face” sobre o povo e sobre a humanidade no nome de Jesus. (No dia 3 de janeiro há uma celebração própria do Santíssimo Nome de Jesus.)
A solenidade de hoje foi posta sob o patrocínio de Maria, “Mãe de Deus”, lembrando o título de Theotokos, “Genitora (Mãe) de Deus”, que lhe foi dado pelo Concílio de Éfeso em 431 d.C. Decerto Deus não tem mãe, mas escolheu Maria como mãe para o Filho que em tudo realiza a obra de Deus. Santificou em Maria a maternidade quando o Filho assumiu a humanidade. A maternidade é, como a humanidade, capax Dei, capaz de receber Deus. Deus é tão grande, que conhece também o mistério da maternidade, e por dentro! Para captar isso, talvez tenhamos de modificar um pouco nosso conceito de Deus.
Deus não ama em geral, abstratamente, mas por meio de pessoas e comunidades concretas. Só aquilo que é concreto pode ser realidade. Assim como Maria foi, no seio do povo de Israel, o caminho concreto para o Salvador, comunidades concretas serão portadoras de Cristo, salvação de Deus para o mundo atual. Por isso, Maria é protótipo da Igreja e das comunidades eclesiais.
II. Comentários aos textos bíblicos- I leitura: Nm 6,22-27
A 1ª leitura é a bênção do sacerdote de Israel sobre o povo. Na manhã da criação, Deus abençoou os seres humanos e os animais, dando-lhes alimento e força de vida (Gn 1,28-30). A bênção de Deus é um augúrio de paz para a natureza e o ser humano. Para quem se coloca diante dessa bênção, Deus deixa brilhar “a luz de sua face”, sua graciosa presença. Só Deus pode realmente abençoar, benzer, “dizer bem”; os humanos abençoam invocando o nome de Deus. Em continuidade com esse pensamento, o salmo responsorial expressa um pedido de bênção (Sl 67[66],2-3.5-6.8).
- Evangelho: Lc 2,16-21
O evangelho de hoje menciona dois temas: a adoração dos pastores junto ao presépio de Belém e a circuncisão de Jesus no oitavo dia, acompanhada da imposição de seu nome. O primeiro tema já foi focalizado no evangelho da missa da aurora no Natal, e na mesma linha podemos destacar, na festa da Mãe de Deus, que “Maria guardava todos estes fatos e meditava sobre eles no seu coração”.
Nossa atenção, porém, vai para o segundo tema, a circuncisão com a imposição do nome, que se harmoniza com o da 2ª leitura. Jesus sujeita-se à antiga Lei (cf. 2ª leitura) e recebe o nome dado pelo anjo, ou seja, por Deus mesmo (Lc 1,31-33; Mt 1,21; cf. Hb 1,4-5): “O Senhor salva”. Jesus é o Salvador enviado por Deus à humanidade.
- II leitura: Gl 4,4-7
A 2ª leitura é tomada da carta de Paulo aos Gálatas, a “carta” (no sentido de documento) da liberdade cristã. Cristo veio para nos tornar livres (Gl 5,1). “Nascido de mulher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4), viveu entre nós sob o regime passageiro que vigorava no Antigo Testamento. Vivendo conosco sob o regime da Lei, ensinou-nos a perceber e interpretar a Lei como dom do Pai, e não como escravidão, à diferença dos contemporâneos de Paulo. Estes queriam impô-la como um jugo aos cristãos da Galácia, que nem sequer eram judeus de origem. Já não somos escravos, diz Paulo, mas filhos; portanto, livres. O Filho de Deus tornou-se nosso irmão, nele temos o Espírito que, em nosso coração, ora: “Abba, Pai” (4,6 – provavelmente uma alusão ao pai-nosso rezado nas comunidades, cf. Mt 6,9-13; Lc 11,2-4).
Comemorando a vinda de Cristo, pensamos especialmente na “mulher” que o integrou em nossa comunidade (Gl 4,4). “Nascido de mulher” é uma maneira bíblica para designar o ser humano (cf. Mt 11,11; Lc 7,28).
III. Pistas para reflexão
– O nome e a cidadania de Jesus. Celebramos hoje a “cidadania” de Jesus: seu nome, sua identidade, seu lugar na sociedade humana. A 2ª leitura evoca duas dimensões da inserção de Jesus na sociedade humana: nasceu de mulher, como membro da família humana; e nasceu sujeito à Lei, como cidadão de uma comunidade política e religiosa. Exatamente por assumir a lei de um povo concreto, ele é verdadeiro representante da humanidade. Quem não pertence a nada não representa ninguém. Porque concretamente foi judeu é que Jesus pôde ser o Salvador da humanidade toda. Integrado na comunidade judaica pela circuncisão, no oitavo dia recebe o nome de Jesus, escolhido por Deus mesmo. Muita gente, quando escolhe o nome do filho, projeta nisso uma expectativa. Maria e José não escolheram o nome. Alinharam-se com Deus, que projeta seu próprio plano de salvação no nome de Jesus: “O Senhor salva”. O nome de Jesus assinala a participação pessoal de Deus na história da comunidade humana e política. Por isso, assim como o sacerdote Aarão abençoava os israelitas invocando o nome do Senhor Deus, podemos benzer a nós e a todos com o nome de Jesus (1ª leitura).
Deus respeita a Lei que ele mesmo comunicou ao povo. Seu Filho nasceu sob a Lei e foi circuncidado conforme a Lei. As estruturas políticas e sociais do povo, quando condizentes com a vontade de Deus, são instrumento para Deus se tornar presente em nossa história. Deus mostrou isso em Jesus. E quando as leis e estruturas são manipuladas a ponto de se tornarem injustas, o Filho de Deus as assume para transformá-las no sentido do seu amor. Por isso, Jesus morreu por causa da Lei injustamente aplicada a ele.
– Maria, “porta do céu”. Em Jesus, Deus quis ter uma mãe. A inserção de Deus em nossa história passa pela ternura materna. Sem esta não se pode construir a história conforme o projeto de Deus. Assim, Deus, na “sua” história salvífica, santificou uma dimensão especificamente feminina. Nas ladainhas, chamamos Maria de “Porta do Céu”. Porta para nós subirmos e para Deus descer.
Jesus nasceu de mulher e sob a Lei, de mãe humana e dentro de uma sociedade humana. Foi acolhido na sociedade judaica pela circuncisão e pela imposição do nome, como teria acontecido a qualquer indivíduo do sexo masculino entre nós que tivesse nascido naquela sociedade. Maria é, portanto, mãe do verdadeiro homem e judeu Jesus de Nazaré, mas nós a celebramos hoje como Mãe de Deus. Esse título deve ser entendido como “Genitora (é assim que o Concílio de Éfeso a chama) do Filho de Deus”. Este Filho foi igual a nós em tudo, menos no pecado, e viveu e sofreu na carne de maneira verdadeiramente humana (cf. Hb 4,15; 5,7-8). Duas décadas depois de Éfeso, o Concílio de Calcedônia o chamou “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”. É por ser mãe de Jesus humanamente que Maria é chamada Mãe de Deus, pois a humanidade e a divindade em Jesus não se podem separar. Dando Jesus ao mundo, Maria faz Deus nascer no meio do povo. Ela é o ponto de inserção de Deus na humanidade. Toda mulher-mãe é ponto de inserção de vida nova no meio do povo. Em Maria, essa vida nova é vida divina. Deus se insere no povo por meio da maternidade que ele mesmo criou.
Assim como Maria se tornou “Porta do Céu”, a comunidade humana é chamada a tornar-se acesso de Deus ao mundo e do mundo a Deus. A vida do povo, sua “lei”, suas tradições, cultura e estruturas políticas e sociais devem ser um caminho de Deus e para Deus, não um obstáculo. Por isso é preciso transformar a vida humana e as estruturas da sociedade quando não servem para Deus e não condizem com a dignidade que Deus lhes conferiu pelo nascimento de Jesus de mulher e sob a Lei.
– Jesus de Maria, bênção do povo. Para os cristãos, o novo ano litúrgico já começou no 1o domingo do Advento, mas no dia 1o de janeiro os cristãos participam, como cidadãos, do ano-novo civil com a festa de Maria, Mãe do Deus Salvador, Jesus Cristo. Queremos felicitar de modo especial a Mãe da família dos cristãos – pois, ao visitarmos hoje a casa de nossos amigos, não cumprimentamos primeiro a dona da casa?
A Igreja marcar este dia com a festa de Maria, Mãe de Deus, é um voto de paz e bênção para o mundo! A bênção maior da parte de Deus: o seu Filho, Jesus. Os nossos votos de paz e bênção devem ser a extensão da bênção que é Jesus e que Maria fez chegar até nós. Desejamos paz e bênção aos nossos amigos em Jesus. Então, nossos votos serão profundamente cristãos, não apenas fórmula social. Desejaremos aos nossos semelhantes aquilo que veio até nós em Jesus: o amor de Deus na doação da vida para os irmãos. É isso que se deve desejar neste dia mundial da paz. Somente onde reinam os sentimentos de Jesus pode existir a paz que vem de Deus.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de ExegeseBíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected]