Publicado em novembro-dezembro de 2021 - ano 62 - número 342 - pág.: 62-64
SAGRADA FAMÍLIA – 26 de dezembro
Por Izabel Patuzzo
Igreja doméstica
I. Introdução geral
A festa da Sagrada Família nos leva a rezar por todas as famílias, a refletir e meditar sobre sua condição, numa perspectiva de fé bíblica. O mandamento do amor a Deus e ao próximo deve ser posto em prática primeiramente junto àqueles e àquelas com os quais partilhamos nossa vida mais de perto: a família.
Na primeira leitura, o livro do Eclesiástico aponta, de forma muito prática, algumas atitudes que devem ser cultivadas na família. Os filhos devem acolher a autoridade dos pais com atitude amorosa, de respeito, de reconhecimento pelos cuidados e orientações recebidas para a vida. A relação de reciprocidade entre pais e filhos deve ser baseada no amor, no respeito, no testemunho diante da comunidade, preservando os valores morais e éticos como contribuição à construção de uma sociedade equilibrada.
A segunda leitura destaca atitudes que o cristão deve cultivar em suas relações fraternas: revestir-se de sentimentos de bondade, amabilidade, mansidão e paciência. Essas expressões de amor devem atingir a todos aqueles que partilham de nossa vida familiar e comunitária.
O Evangelho nos fala sobre a infância de Jesus e sua convivência na família. O relato deixa claro que o amor de Deus sempre esteve presente na família de Nazaré. Entre os membros da Sagrada Família, há profundo respeito pelo projeto de Deus para cada um deles.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. I leitura (Eclo 3,3-7.14-17a)
O livro do Eclesiástico pertence à literatura sapiencial das Escrituras. Para as comunidades de fé do povo escolhido, o princípio da sabedoria está em buscar respostas para a vida, fundamentadas na tradição religiosa. É a Lei a fonte inspiradora para as questões práticas de convivência. O livro foi escrito por volta do século II a.C., quando Israel foi desafiado pela imposição cultural e religiosa helenista. A dominação estrangeira foi além do aspecto político; impôs-se com outros valores éticos, religiosos e culturais. O fiel israelita foi desafiado a buscar, na sua tradição, os valores importantes para manter sua identidade de povo de Deus.
O texto desta liturgia apresenta orientações sobre a vida em família. Os Dez Mandamentos sempre foram a base para Israel. A leitura se fundamenta no Decálogo, sobretudo no quarto mandamento: honrar pai e mãe. A atitude de honrar, nessa leitura, significa dar a devida importância; reconhecer que os pais são instrumentos pelos quais alcançamos a bênção divina, pois por meio deles é que o Senhor nos concede a vida.
O reconhecimento de que os pais são a fonte por meio da qual Deus nos deu a vida deve suscitar em nosso coração os sentimentos de gratidão e, sobretudo, de cuidado atencioso, quando, na velhice, os pais necessitarem da ajuda dos filhos. O reconhecimento e o respeito aos pais não são atitudes que devemos assumir apenas enquanto cuidam de nós, mas sempre, também quando eles, por questões de idade e saúde, passarem a depender de nós. O sentimento de gratidão deve permanecer no coração dos filhos em todas as etapas da vida.
2. II leitura (Cl 3,12-21)
A carta aos Colossenses provavelmente foi escrita quando Paulo estava na prisão em Roma, por volta do ano 63 d.C. O apóstolo precisou cuidar pastoralmente da comunidade a distância. Ele sente a necessidade de fortalecer a fé e o conhecimento da doutrina cristã, sobretudo porque circulavam em Colossas doutrinas advindas de outras crenças religiosas do mundo greco-romano.
Sem atacar ou criticar as diversas doutrinas pagãs, Paulo recorda à comunidade que a fé em Jesus Cristo deve orientar toda a vida do cristão. A íntima relação com Jesus Cristo deve ser traduzida em gestos concretos em sintonia com o Evangelho, o que, na linguagem do apóstolo, significa revestir-se do homem novo – isto é, cultivar um conjunto de virtudes que resultam da união com Cristo e se expressam por meio da caridade fraterna, da misericórdia, da bondade, da mansidão e do perdão.
A leitura ressalta que o ideal cristão implica viver em conformidade com Cristo, viver como ele viveu. No contexto cultural e religioso em que se encontravam os cristãos de Colossas, a prática da fé cristã era exigente, pois implicava uma vida de virtudes que contrastavam com os valores morais da sociedade. Tal prática tinha incidência também nas relações familiares, uma vez que a família é o primeiro espaço em que o cristão deve testemunhar seu amor; a partir dela, é chamado a construir relações construtivas, dignas e amorosas com todas as pessoas.
3. Evangelho (Lc 2,41-52)
O texto do Evangelho narra os últimos acontecimentos da infância de Jesus. O evangelista Lucas tem como objetivo oferecer uma instrução catequética sobre as peregrinações religiosas que os judeus piedosos faziam a Jerusalém. Jesus pertencia a uma família piedosa, que preservava a tradição de visitar a cidade santa e o templo sagrado. José e Maria, como pais tementes a Deus, cumprem as tradições religiosas e levam Jesus a Jerusalém para celebrar a Páscoa. É nesse contexto que Jesus pronuncia as primeiras palavras acerca de sua missão divina.
O centro do diálogo de Jesus com seus pais é a pergunta: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai?” (v. 49). Aqui o evangelista claramente anuncia para a comunidade a verdadeira identidade de Jesus. Ele é o Filho de Deus, embora, como homem, tenha pertencido a uma família humana. No Evangelho segundo Lucas, a partir desse episódio, Jesus se dedica inteiramente à obra do Pai. A missão recebida exigirá uma dedicação exclusiva que o levará a deixar os familiares e mesmo a ser incompreendido por eles. Cuidadosamente, Lucas relata a passagem da infância de Jesus para sua missão pública durante a grande festa da Páscoa, no templo sagrado e entre as autoridades religiosas de seu tempo.
Esse texto apresenta importante chave de interpretação para entender, no Evangelho inteiro, quem é Jesus. Para o evangelista, é importante professar a fé em Jesus como o Messias enviado. Ele não é simplesmente o filho de José e Maria, mas é o Filho de Deus enviado. Por isso percorrerá os caminhos que o Pai lhe designou. Veio a este mundo para cumprir sua missão redentora. Assim como seus pais tiveram dificuldade de compreender sua missão, Jesus, ao longo de sua vida, sofrerá muitas outras incompreensões, mas Lucas deixa claro que tudo o que ele realizou foi para cumprir a vontade do Pai. Jesus assume livremente sua missão e, para se fiel ao plano do Pai, não se deixou desviar do caminho, nem mesmo pela opinião de seus entes queridos.
III. Pistas para reflexão
Jesus assume como prioridade central de sua vida fazer a vontade do Pai, comprometer-se com sua missão de forma radical. Ele amava seus pais, mas nos ensina que é preciso fazer escolhas quando o plano que Deus tem para cada um de nós entra em choque com nossa família. O que deve prevalecer? A resposta exige discernimento, decisão, coragem.
Maria e José se deixaram conduzir pelo amor, pela escuta e pelo diálogo com o filho, por mais que não conseguissem entender tudo. Não fizeram cena, tentaram compreender. Aceitaram que o filho não lhes pertencia totalmente, não era exclusividade deles. Ele tinha sua identidade própria, sua missão diante de Deus e do povo, suas escolhas. Como nos colocamos diante do plano de Deus para cada membro de nossa família? Como apoiamos mutuamente a missão que cada um recebe de Deus?
Como podemos cultivar, em nossas famílias, o crescimento humano e espiritual de cada um, abrindo-nos para a missão que temos na comunidade, na sociedade e no mundo? Nossas famílias nos ajudam a abrir horizontes para a missão que temos e que vai além dela?
Izabel Patuzzo
pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]