Hoje celebramos a solenidade de Cristo, Rei do Universo, a qual encerra o ano litúrgico e é também o coroamento do ano dedicado ao laicato. Essas duas recordações nos ajudam a retomar o que dizia o Concílio Vaticano II, ao afirmar que leigos são “cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31; cf. DAp 209). Portanto, nesta celebração, apresentemos ao Senhor Jesus, servo e servidor, nossa vocação batismal, nosso ser discípulos missionários e o desejo de, cada vez mais, sermos sujeitos eclesiais (“sal da terra e luz do mundo”), assumindo nossa missão de construtores do Reino de Deus.
II. Comentário dos textos bíblicos- leitura: Dn 7,13-14
O capítulo 7 do livro de Daniel inicia-se apresentando a visão das quatro feras, símbolo dos quatro grandes impérios que oprimiram Israel: os babilônios, os medos, os persas e o rei selêucida Antíoco Epífanes. Quando este último inimigo for destruído, será instaurado o Reino de Deus, descrito na segunda visão de Daniel nos vv. 13-14, na qual Deus é representado por um Ancião e ocorre a entronização celeste de um ser humano, o “Filho do homem”, em contraste com as feras anteriormente mencionadas. Esse “Filho do homem” é personagem simbólico que, na tradição judaica, foi identificado com o Messias davídico e, no NT, com Jesus, mas em Dn retrata o povo de Deus perseguido pelos impérios opressores e a quem Deus confere o poder, a realeza e todos os povos e nações. Este reino não será destruído e podemos interpretá-lo como o Reino de Deus. Dn 7,13-14 é o texto apropriado para esta solenidade, pois afirma que o Reino não é semelhante aos impérios opressores que devoram o povo.
- Evangelho: Jo 18,33b-37
O trecho de Jo 18,33b-37, situado no centro da narrativa da prisão, julgamento e morte de Jesus (Jo 18-19), sublinha a realeza de Cristo, seu poder universal sobre todas as coisas, e revela o amor incondicional de Deus e de seu Filho, que se entrega totalmente à vontade do Pai. Este evangelho tem como cena principal Pilatos, que se retira no pretório e se dirige a Jesus para perguntar sobre sua realeza.
O texto deixa transparecer que Jesus não tem dúvida de sua dignidade régia nem Pilatos. Este, porém, considera que a realeza de Jesus seja religiosa, não política. Diante da pergunta de Jesus e da resposta de Pilatos, percebe-se que ser “rei dos judeus” é a acusação principal apresentada pelos sumos sacerdotes e pelo povo, a qual, para o procurador romano, constitui um argumento fraco para considerar o prisioneiro um criminoso.
Um elemento relevante é que Jesus é rei para dar testemunho da verdade (v. 37). A palavra “verdade”, conforme as interpretações que utilizam como substrato a cultura grega, pode ser entendida como um desvelamento do que estava oculto e, nesse sentido, seria a revelação, o dar testemunho do mistério, da realeza do Pai. Esse termo também pode assumir o sentido de “fidelidade”, conforme a cultura hebraica. Assim, a paixão e morte de Jesus revelam a fidelidade de Deus às promessas, cujo núcleo é justamente a instauração do seu Reino, que é a manifestação de sua ação salvífica na história. Desse modo, Jesus testemunha a verdade por se posicionar a favor dela, e essa verdade só poderá ser compreendida por aqueles que são filhos de Deus (cf. Jo 8,47). De fato, a “verdade” não é doutrina, teoria, conhecimento a ser adquirido, mas consiste em escutar e transmitir a Palavra de Deus, alimentar uma experiência profunda de encontro com Cristo e segui-lo.
É importante salientar que, no Evangelho segundo João, Jesus reina não somente na ressurreição, mas em todo o processo de julgamento, na paixão e na morte, pois são ocasiões nas quais manifesta o amor, a glória de Deus e a realeza divina.
- II leitura: Ap 1,5-8
O texto escolhido para a II leitura deste domingo faz um recorte na perícope, priorizando os versículos que sublinham os motivos pelos quais Jesus é considerado o príncipe dos reis da terra. No v. 5a, os títulos dados a Cristo revelam que ele é declarado Senhor não somente no sentido político e terrestre, mas também cósmico e escatológico. Nos vv. 5b-6, há um louvor (doxologia) dirigido a Cristo como vivificador e Senhor universal. Este louvor expressa o reconhecimento do amor de Cristo por parte da comunidade e é um agradecimento pela remissão dos pecados e pela salvação. A comunidade, porém, não é somente objeto da história da salvação, mas sujeito. Para reafirmar esse protagonismo, o autor, no v. 6, faz referência a Ex 19,6, convidando a comunidade a tomar consciência de ser um reino e um povo sacerdotal, que tem como missão estar a serviço do outro. Esse texto do livro do Êxodo também faz memória da experiência do povo de ser resgatado e santificado, quando foi liberto do Egito.
O v. 7 anuncia a vinda de Cristo, a volta daquele que foi crucificado, servindo-se das profecias de Dn 7,13 (I leitura) e Zc 12,10.
O alfa e o ômega, mencionados no v. 8, são a primeira e a última letra do alfabeto grego, ou seja: Deus é o princípio e o fim, por isso está presente em todo o tempo e perpassa, com sua benevolência, toda a história humana desde a criação.
III. Pistas para reflexão
Os textos bíblicos desta celebração da solenidade de Cristo Rei, que marca o encerramento do Ano do Laicato, reportam-nos a tríplice missão, recebida no batismo, de sermos sacerdotes, reis e rainhas, profetas e profetisas. Como sacerdotes (II leitura), somos mediadores e servidores e convidados a viver em comunhão com Deus e com o outro. A nossa missão, como reis e rainhas, é estar a serviço do Reino de Deus, da mesma forma que Jesus Cristo é Rei porque instaurou o Reinado do Pai, realidade dinâmica que vai crescendo progressivamente até atingir o seu objetivo final: a total soberania de Deus. Como profetas e profetisas, somos chamados a anunciar o evangelho, consolar as pessoas, alimentando suas esperanças, e a resistir àqueles que se opõem ao Reino. Este se expressa na vitória sobre todo mal e na percepção dos sinais de Deus em nossa história; portanto, não é algo somente para o futuro, mas depende de cada um de nós torná-lo sempre mais visível em nossa sociedade, assumindo também a vocação profética ao resistirmos à opressão e anunciarmos o amor e a justiça de Deus (I leitura). Por isso, é oportuno nesta celebração nos perguntarmos: Em que consiste o Reino de Deus? Como percebemos seus sinais em nossa sociedade? O Reino de Deus está no centro de minha vida? Quais obstáculos impedem que o Reino se torne visível entre nós? Com estou assumindo a tríplice missão que recebi no batismo?
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFGRS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]