Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 54-56
NOSSA SENHORA APARECIDA – 12 de outubro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
A força da mulher intercessora
I. INTRODUÇÃO GERAL Na solenidade de Nossa Senhora Aparecida, a liturgia rende homenagens a Maria, recordando o protagonismo feminino na história do povo de Deus. Considerando a marginalização da mulher nos tempos bíblicos, esse dado é muito relevante, pois revela a predileção de Deus pelas pessoas humildes e marginalizadas, escolhidas para fazer grandes coisas em favor do seu povo e de toda a humanidade. Nas três leituras, a mulher exerce um papel determinante para o desfecho de cada episódio narrado. Na primeira leitura, temos o exemplo de Ester, que, atenta às necessidades do seu povo ameaçado de extermínio, intercede ao rei, pedindo vida para si e para seu povo. A segunda leitura apresenta o sinal da mulher que dá à luz um filho para governar o mundo; ela é perseguida pelas forças do mal e resiste. No Evangelho, vemos a presença ativa da mãe de Jesus no início de seu ministério; sensível e solidária às necessidades do próximo e confiante na palavra de Jesus, ela participa da realização do seu primeiro sinal messiânico. Portanto, a figura feminina presente nesta liturgia, de quem Maria é a síntese, é sinônimo de força e resistência ao mal, solidariedade às pessoas necessitadas e confiança no Deus da vida. Tudo isso ainda é ilustrado pelo simbolismo da pequena imagem de cor negra encontrada por humildes pescadores no ano de 1717, quando a maioria da população brasileira era escrava e negra.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Est 5,1b-2; 7,2b-3) O livro de Ester, do qual é tirada a primeira leitura, provavelmente foi composto entre os anos 300 e 100 a.C., durante a dominação grega, embora a história narrada remonte ao período da dominação persa, quando o trono era ocupado pelo rei Assuero, cujo reinado se deu por volta dos anos 486 a 465 a.C. A autoria e o lugar de composição do livro são completamente desconhecidos. A história contada no livro não tem correspondência com os fatos históricos. O importante, no entanto, é sua mensagem de libertação e resistência, protagonizada por Ester, uma mulher judia que usa seus privilégios de rainha para interceder ao rei pela vida dos seus compatriotas judeus que estavam para ser exterminados. A vida do povo judeu que estava ameaçada não era a existência física, mas sim sua identidade cultural e religiosa, incluindo a fé no Deus criador e libertador, devido à imposição da cultura grega.
O trecho selecionado pela liturgia é bastante curto, e, para ser compreendido, é necessário recordar brevemente alguns fatos que o antecedem. Ester era uma jovem judia, de esplêndida beleza, que vivia entre os deportados e foi escolhida pelo rei Assuero para ser rainha (Est 2,1-18). Na corte, atua como primeiro-ministro um homem chamado Amã, o qual trama o extermínio de todo o povo judeu, incluindo a própria rainha Ester (Est 3,1-13). Informada da situação, Ester é chamada a intervir (Est 4,1-8). É nesse contexto que se insere a primeira leitura desta festa, cujo conteúdo é exatamente a intervenção de Ester junto ao rei. Vestida como rainha, Ester se apresenta diante do rei (5,1-2) para convidá-lo a um banquete preparado por ela mesma (Est 5,3-6). Fascinado pela beleza de Ester, o rei atende ao convite e comparece ao banquete, demonstrando todo o seu apreço por ela. Surge então, a oportunidade de Ester interceder por si e pelos seus compatriotas judeus, já que o rei lhe dá a oportunidade de pedir qualquer coisa, até mesmo a metade do reino (7,2), garantindo que ela terá seu pedido atendido. O que a rainha pede é sua vida e a vida do seu povo (7,3).
Como mulher que resiste e intercede, Ester é prefiguração de Maria, a mulher do sim a Deus e da fidelidade ao seu filho, Jesus, a qual também intercede pelo seu povo necessitado de vinho bom, símbolo da felicidade e da vida em abundância.
2. II leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a) A segunda leitura é tirada do Apocalipse de São João, o último livro do Novo Testamento, escrito nos últimos anos do século I – quando Domiciano era o imperador romano – por um profeta, discípulo do apóstolo João, que usa este mesmo nome como pseudônimo (Ap 1,2). A palavra “apocalipse” quer dizer “revelação”; significa tirar o véu que encobre uma realidade para torná-la conhecida, empregando a linguagem simbólica, como é característica do gênero literário apocalíptico. O Apocalipse é um livro de resistência que faz intenso uso de imagens para criticar o poder opressor e transmitir esperança e coragem aos cristãos perseguidos, ensinando que é Deus quem tem a palavra final sobre a história. Seus primeiros destinatários foram os cristãos da Ásia Menor (Ap 1,4), vítimas da perseguição de Domiciano.
O texto desta liturgia apresenta a luta entre a mulher e o dragão, representando as forças do bem e do mal (v. 1.13). É luta desigual entre uma criatura frágil e um monstro terrível. A mulher é imagem da Igreja, a comunidade cristã, aparentemente indefesa e frágil; o dragão, que tem a serpente como aliada (v. 15), é a imagem do poder opressor – na época, o Império Romano com todo o seu aparato militar e ideológico e, ao longo da história, toda força que se opõe à instauração do Reino de Deus na terra. Apesar da aparência frágil, a mulher é revestida de Deus; os elementos mais esplendorosos da criação – sol, estrelas, lua e terra – estão à sua disposição, dando-lhe beleza e proteção (v. 1.16). Dela nasce um filho para governar o mundo (v. 5): obviamente, Jesus, enquanto Ressuscitado que, embora nos céus junto de Deus, está igualmente presente no cotidiano das comunidades cristãs.
A resistência da mulher ao dragão mostra que Deus fortalece os pequeninos e marginalizados da história. Maria, a mãe de Jesus, é personificação e prova das escolhas de Deus pelo que é simples e humilde, porém capaz de confundir e vencer os grandes. Por isso, muito cedo os cristãos associaram essa mulher a Maria, geradora de Jesus, o Filho de Deus.
3. Evangelho (Jo 2,1-11) O Evangelho segundo João descreve sete sinais realizados por Jesus ao longo do seu ministério. Nesse Evangelho, os atos prodigiosos de Jesus não são chamados de milagres, mas de sinais. Embora reconheça que Jesus realizou muitos outros, o autor escolheu somente sete – na tradição bíblica, número que evoca perfeição e completude – para constar em seu livro, julgando-os suficientes para revelar a identidade de Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, despertar a fé da comunidade nele e gerar vida em seu nome (Jo 20,30-31). O texto lido nesta liturgia, o relato das bodas de Caná, traz a descrição do primeiro dos sete sinais: a mudança da água em vinho.
O texto fala de uma festa de casamento realizado em Caná da Galileia, na qual estavam a mãe de Jesus e este com seus discípulos (v. 1-2). As festas de casamento eram muito apreciadas no mundo semita; ser convidado para uma era motivo de honra e gerava muita alegria. Como, no Antigo Testamento, o matrimônio se tornou metáfora da relação entre Deus, o esposo, e Israel, a esposa (Os 2,16-25; Is 1,21-23; 49,14-16; 62,1-5), em toda festa de casamento fazia-se memória da aliança entre Deus e Israel. O cenário é perfeito para a manifestação de Jesus, que veio ao mundo estabelecer nova relação entre Deus e a humanidade, com a participação direta da sua mãe.
Mais do que um gesto de solidariedade aos noivos, a intervenção da mãe de Jesus revela a necessidade de um jeito novo de se relacionar com Deus (v. 3-5). O vinho é símbolo do amor e da alegria, sinais da presença de Deus na vida das pessoas e das comunidades. A mãe de Jesus age como porta-voz da humanidade carente de amor e vida plena. A recomendação para fazer tudo o que Jesus disser é sinal de confiança na sua palavra e certeza do seu agir (v. 5). As seis talhas de pedra vazias representam a Lei e todo o aparato religioso de Israel, marcado por um complexo de normas e ritos, mas carente de amor (v. 6). Sensível à situação indicada pela sua mãe, Jesus age de modo surpreendente e oferece o vinho em abundância (v. 7-10). A qualidade e a quantidade do vinho dado por Jesus significam que nada mais separa Deus da humanidade; todo o seu amor é oferecido em abundância, cujo sinal maior será a entrega de Jesus na cruz, ao pé da qual também estará presente sua mãe (Jo 19,25-27).
A presença da mãe de Jesus em Caná e na cruz significa que ela participou de todo o ministério e deve participar também da vida de todas as comunidades cristãs, ensinando sempre a fazer tudo o que Jesus disser. Ela não é chamada pelo nome no Evangelho de João porque é personificação de toda a humanidade, especialmente das mulheres. Nela estão presentes todas as mulheres da terra, com seus sonhos e esperanças.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Comentar as leituras, mostrando a relação entre as três. Lembrar que a verdadeira devoção a Maria consiste em fazer o que Jesus disser, ou seja, viver conforme o Evangelho. Rezar pelos destinos do Brasil, recordando a responsabilidade de todos na construção de um país justo, tolerante, inclusivo e feliz.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]