A solenidade do Nascimento de Cristo não é comemoração do aniversário de Jesus, mas é a celebração da manifestação de Deus em nossa humanidade, a alegria pelo cumprimento das promessas e pela salvação que entra definitivamente em nossa história. Nesta noite, em que celebramos o mistério da encarnação, as leituras nos apresentam o menino Jesus como o esplendor da luz da glória de Deus (I leitura), a qual envolve todos os povos, e ouvimos o alegre anúncio: “Nasceu hoje o Salvador, que é o Cristo, o Senhor” (evangelho). É a noite em que celebramos também a nova criação, a transformação do mundo inteiro, pois Deus se manifesta em toda a terra e a paz é proclamada a toda a humanidade. Envolvido pela luz deste mistério, cada cristão é convidado a se deixar transformar pela vinda de Deus em nossa carne (II leitura).
II. Comentário dos textos bíblicos- I leitura: Is 9,1-6
Os vv. 1-6 podem ser estruturados em duas partes: um oráculo que apresenta o fim da opressão (vv. 1-4) e o anúncio do nascimento do príncipe da justiça e da paz (vv. 5-6). Alguns estudiosos relacionam esses versículos com Is 8,23b, em que se descreve o tempo de humilhação de Zabulon e Neftali, regiões pertencentes ao Reino do Norte, após serem tomadas pelo rei da Assíria, Teglat-Falasar III. É, porém, hipótese questionável, segundo pesquisas atuais. Desse modo, não é possível datar esse poema de Isaías.
No v. 1, percebe-se que se trata de um povo oprimido por algum império potente, descrito simbolicamente como “um povo que caminha nas trevas” (símbolo do caos e da morte). A “luz intensa” indica uma nova criação, visto que a “luz” nos remete a Gn 1,3 e ao fim do caos. De fato, a profecia de Isaías anuncia o fim da opressão política, social, econômica (v. 3) e bélica (v. 4) e a alegria da libertação, traduzida por meio de duas imagens: a alegria por uma colheita abundante e a alegria por repartir os despojos, após a vitória numa guerra (v. 2).
O “dia de Madiã”, no v. 3, refere-se à vitória de Gedeão (cf. Jz 7,16-22), quando as luzes das tochas amedrontaram os inimigos.
Desse modo, a opressão e a guerra acabaram porque é anunciado o nascimento de um menino destinado a governar. Ele é descrito por meio de vários atributos. Cada um dos títulos apresentados exprime uma qualidade extraordinária e nos indica tratar-se de um soberano escolhido por Deus (a forma passiva do verbo), de um conselheiro dotado de sabedoria única e de poder sobre-humano, o qual tem a garantia de vida longa e é portador de paz eterna. A forma pela qual é descrita essa pessoa nos revela que exercerá um papel messiânico, porque será o salvador de todos. Esse texto é uma profissão de fé de Israel num soberano divino que substituirá todos os reis infiéis, entre os quais o rei Acaz.
- Evangelho: Lc 2,1-14
A passagem de Lc 2,1-14 pode ser dividida em dois relatos: o nascimento de Jesus (2,1-7) e o anúncio aos pastores (2,8-14).
Nos vv. 1-7, somos informados de um decreto de César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra, obrigando José, habitante de Nazaré, a se deslocar com Maria, grávida, para a cidade natal dele: Belém. É importante sublinhar que José não parte para Belém por causa de uma mensagem divina, mas por um motivo contingente, o edito de um imperador.
Do ponto de vista histórico, os dados apresentados são imprecisos e criam várias dificuldades, mas, provavelmente, a intenção de Lucas não é fornecer informações históricas sobre Jesus, e sim inserir seu nascimento na história universal, pois este menino é portador de esperança não somente para Israel, mas para toda a humanidade.
César Augusto, a figura mais poderosa do mundo, que exerce seu poder recenseando toda a terra, com a finalidade de expor a grandeza do seu domínio e de cobrar impostos, contrasta com o verdadeiro Salvador e Senhor de toda a terra, Jesus Cristo, que nasce numa manjedoura em Belém, na pobreza e na fragilidade de uma criança.
No v. 4, o autor insiste que José é da família e da casa de Davi (Belém), ou seja, reforça sua descendência davídica. Essas indicações nos remetem à profecia de Miqueias (cf. Mq 5,1-2) aprofundada no domingo passado, no 4º domingo do Advento.
A narrativa do nascimento de Jesus é sóbria (v. 6), e o filho é designado como “primogênito”; portanto, será o filho consagrado a Deus conforme a tradição judaica (cf. Ex 12,3; Nm 3,13). O primeiro elemento que nos chama a atenção é que a salvação vem de um pobre filho de migrantes (v. 3) e Maria dá à luz fora de casa, tendo por perto somente José, longe do aconchego dos familiares e amigos.
A segunda narrativa (vv. 8-14) descreve o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores. A figura dos pastores pode ser interpretada de duas formas. A primeira é influenciada pelos textos de Mq 4,8, ao descrever a promessa da origem do Messias relacionada a Belém e ao recordar que Davi era um pastor (cf. 1Sm 17,15.28.34). Ela também nos remete à tradição targúmica de Gn 35,21 (Targum é a tradução, paráfrase e comentários em aramaico da Bíblia hebraica), que afirma que a “torre do rebanho” será um lugar da revelação do rei Messias no fim dos tempos. A segunda interpretação ressalta que os pastores eram pessoas simples, de uma classe social menosprezada por não respeitarem a propriedade alheia, considerados incapazes de ser testemunhas e não aptos ao papel de juiz. São, porém, escolhidos pelo autor deste terceiro evangelho como os primeiros a receber a notícia do nascimento de Jesus e testemunhar essa Boa-Nova. Os vv. 8-9 nos reportam à I leitura, por trazer dois aspectos presentes no oráculo de Isaías: a escuridão e a luz (cf. Is 9,1 e Lc 2,8-9).
Essa narrativa da infância de Jesus é um relato teológico da história que nos conduz para o ponto central, o anúncio da realização da salvação (cf. 2,11). O autor, além de enquadrar o nascimento de Jesus no contexto do mundo romano, descreve-o à luz do evento central de nossa fé, o mistério pascal. De fato, há vários pontos de afinidade entre o nascimento e a morte de Jesus (cf. Lc 2,7 e 23,53).
O autor, nos vv. 9-10, utiliza elementos típicos das teofanias. A expressão “a glória do Senhor os envolveu de luz” (v. 9) indica que é o próprio Deus que se comunica (cf. Ex 40,34) por meio do símbolo da luz e da mediação de um anjo. A glória de Deus (isto é, o próprio Deus) aparece numa nuvem (cf. Ex 16,10) ou na coluna de fogo (cf. Ex 13,21), sempre de forma luminosa, com a finalidade de proteger ou guiar o povo eleito.
O v. 10 confirma que é uma manifestação divina por meio da expressão “não tenhais medo” (cf. 1,13.39). A alegria é tema característico de Lucas e da era messiânica, é fruto da intervenção salvífica de Deus na história e do cumprimento da esperança messiânica pelo surgimento de um novo rei davídico, aspectos presentes neste anúncio de Lc 2,11-14. Assim, aos pastores é comunicado o anúncio do nascimento e da identidade de Jesus em forma de revelação divina.
A palavra “hoje” (v. 11) é plena de significado (cf. 4,21; 19,9; 23,43) e indica o início da era messiânica, tempo que foi esperado e preparado. “Hoje” é o dia da intervenção última de Deus. A indicação da “cidade de Davi” confirma o sentido messiânico desse evento, e “Salvador” é a função principal do Messias (cf. Lc 1,47).
O v. 11 segue o estilo da proclamação de nascimento ou de entronização de reis, príncipes ou imperadores, dirigida aos nobres da sociedade na cultura helênica. O autor utiliza esse estilo com a finalidade de proclamar o nascimento de Jesus, condensando nos títulos “Cristo Senhor” a confissão de fé cristã e a sua intenção teológica de não separar a realidade messiânica de Jesus da ressurreição (cf. At 2,36). Não se dirige, porém, aos nobres, e sim aos pobres (aos pastores). Para Lc, a pobreza é o lugar da revelação da realeza divina, da potência de Deus, do Messias e Senhor, do Salvador.
O v. 12 nos indica que a salvação nasce onde menos se espera, e percebe-se a harmonia entre o sinal dado aos pastores para ir adorar o Salvador e a manifestação jubilosa dos anjos diante da identidade daquele menino envolvido em faixas e deitado numa manjedoura; ou seja, ele é a manifestação da glória de Deus e traz gratuitamente a paz ao mundo (I leitura).
O hino no v. 14 estabelece relação entre glória e paz, Deus e os homens, céu e terra. O fio condutor desses elementos é o nascimento de Jesus. Assim, a glória de Deus, sua potência salvífica, revela-se no menino que estabelece a paz na terra, ou seja, é ele quem traz a salvação do tempo messiânico (cf. Is 9,5.6). Desse modo, a paz expressa todo o conteúdo da salvação, que consiste na comunhão com Deus e com o outro.
A expressão “aos homens por Ele amados” põe o acento não na disposição humana (como o faz a tradução “aos homens de boa vontade”), mas no comportamento de Deus. Desse modo, todos são chamados a experimentar a gratuidade de Deus, sua benevolência, seu amor infinito que se revela na fragilidade do menino Deus: o Messias Jesus, nosso Salvador.
- II leitura: Tt 2,11-14
Essa carta é considerada tritopaulina, também chamada de carta pastoral; é atribuída a Paulo, mas provavelmente não foi escrita por ele.
No v. 11, o autor afirma que a manifestação da graça de Deus (evangelho) se deu na obra salvífica realizada por Jesus Cristo (v. 14). Essa graça tem três características: provém de Deus, é salvífica e universal. Sua pedagogia apresenta duplo aspecto: o negativo, por sugerir a renúncia às paixões mundanas, e o positivo, traduzido em novo estilo de vida. Esse convite à conversão está fundamentado na autodoação do Messias Jesus (cf. Is 53,12) por fidelidade ao projeto do Pai, libertando-nos do mal, consagrando-nos totalmente a Deus e constituindo-nos seu povo (v. 14; cf. Ex 19,5). A expressão “o nosso grande Deus e Salvador” nos remete à experiência do êxodo, quando Deus resgatou o seu povo da escravidão e estabeleceu com ele uma aliança (cf. Ex 6,2-8.15). Com Jesus, o cristão também é resgatado do mal, é purificado, libertado, consagrado, e é estabelecida nova aliança, marcada pela gratuidade de Deus. Desse modo, o cristão é convocado a um processo de conversão, que consiste em ser libertado da escravidão do pecado e viver a graça, cultivando os valores da sabedoria, da piedade, da justiça, na espera da vinda definitiva de Jesus no fim dos tempos.
Abandonar a impiedade consiste em rejeitar toda espécie de idolatria, definida como a atitude de substituir o verdadeiro Deus revelado em Jesus Cristo por pessoas ou coisas (dinheiro, poder, status, projeção social). As paixões mundanas se expressam na injustiça, no egocentrismo, na ganância, no orgulho, ou seja, em tudo aquilo que nos faz perder o equilíbrio e deixar de viver de forma sábia e justa. Assim sendo, o cristão é convidado a viver a ética cristã, baseada na pobreza, no esvaziamento (evangelho), tornando visível, por meio de sua vida, a manifestação da graça de Deus.
III. Pistas para reflexão
Na noite de Natal, acende-se a luz no interior de uma gruta, numa manjedoura. A luz da manifestação de Deus num menino, que irradia seu esplendor por toda a terra. Acende-se também em nós a luz da esperança e da vontade de recomeçar. Apesar da fadiga, das forças diminuídas, da alma estressada, somos revigorados com a madrugada do Natal, com o encanto de um Deus que desce para nos libertar. Desse modo, a contemplação do nascimento de Jesus nos impulsiona a perceber a profundidade do mistério da encarnação e o sentido da existência humana. Na pobreza, na humildade da gruta de Belém, somos convidados a contemplar o dom do amor de Deus, que se revela numa criança.
A profecia de Isaías anuncia o triunfo da paz e da justiça numa realidade marcada pela opressão, pelo caos, pela morte. É anúncio de nova criação e da libertação proporcionada por um Messias enviado por Deus, que governará com sabedoria e fará reinar a paz (I leitura). A narrativa segundo Lucas, ao reler as profecias do AT, diz-nos que o Salvador, o Senhor, o Messias, é Jesus. Ela também nos surpreende ao narrar o nascimento do Filho de Deus, Senhor de toda a terra, o descendente de Davi, numa pobre gruta em Belém, revelando-o a nós na fragilidade de um menino. Os pastores são os primeiros a receber a mensagem da salvação e a ouvir o canto dos anjos, que proclamam a paz a todo aquele que crê que a glória, a realeza e a potência divinas se manifestam no Menino Deus envolto em faixas e deitado numa manjedoura (evangelho). O trecho da carta a Tito nos recorda a identidade desse menino: ele é o crucificado e ressuscitado, que nos concedeu a salvação gratuitamente e nos convida a ser fiéis ao projeto de Deus, rejeitando toda espécie de idolatria, injustiça, egoísmo e orgulho e vivendo eticamente, a fim de manifestar com nossa vida a salvação realizada por Deus em nós e entre nós. Para que o Natal não seja somente uma noite ou um dia durante o ano, pensemos que a “glória de Deus nas alturas” consiste em sermos mais humanos, pessoas dignas e felizes em todos os momentos de nossa vida, porque acreditamos que Jesus é o Messias, o nosso Salvador.
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFGRS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]