Procure imaginar que, no projeto de Deus, tudo deve estar conectado. Considere, contudo, que não somente as pessoas se conectam umas às outras. Trata-se de conexão que vai além das pessoas e atinge também os espaços em que elas vivem. Nesse sentido, podemos incluir nesta conversa as cidades e as Igrejas. As cidades e as Igrejas deveriam ser um reflexo dos compromissos de cada pessoa e, assim, refletir o compromisso com os valores evangélicos que cada cristão traz gravados no coração. Cidades e Igrejas que não refletem os valores evangélicos apenas mostram que a maioria do povo que nelas está inserido vive uma vida cristã sem autenticidade e desvinculada do projeto de Deus. Nesse sentido, uma reflexão poderia ser muito bem-vinda: a cidade que habitamos reflete o povo de Deus que nela vive? Mais ainda: qual a relevância de nossas Igrejas para as cidades?
II. Comentários aos textos bíblicos- I leitura: Is 60,1-6
Na primeira leitura, estamos diante da bela descrição que o profeta Isaías faz da cidade de Jerusalém. A cidade é estabelecida por Deus como centro religioso e econômico para todos os povos. Uma cidade em que necessariamente as pessoas se encontrariam e desenvolveriam um projeto de paz, de segurança e de bem-estar. Vendo dessa forma, é possível dizer que a construção do bem-estar indica a desconstrução e superação do mal-estar, ou seja: as sementes da violência e da destruição já não crescerão nas ruas da cidade de Jerusalém.
É possível pensar nessa descrição comparando-a àquela de Isaías 1,21-23, em que o profeta retrata a cidade de Jerusalém como infiel a Deus porque havia posto de lado a prática do direito e da justiça e deixado de agir solidariamente em favor dos enfraquecidos. A cidade que se caracteriza pelo brilho da glória de Deus é aquela em que reina a prática da justiça. O profeta Isaías chama a nossa atenção para algo de extrema importância do qual, na maioria das vezes, nos esquecemos. A cidade de Jerusalém era infiel, ainda que tivesse um templo e este fosse o famoso Templo de Salomão. Isaías é ousado ao mostrar que a infidelidade a Deus estava ligada à prática da injustiça, à falta de solidariedade e do direito e também ao esquecimento dos pobres justamente por aqueles que frequentavam o Templo. Eram pessoas que gostavam de Deus desde que não precisassem praticar a justiça!
- II leitura: Ef 3,2-3a.5-6
A palavra “mistério” utilizada por Paulo não deve ser compreendida como algo que foge à nossa compreensão. Seu significado primeiro se relaciona com o projeto de Deus, que visa salvar a todos por intermédio de Jesus. Em Jesus tudo se descortina. Ele é quem revela Deus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).
Há um projeto salvador em Jesus que Paulo procura com esmero anunciar. Diz ele que esse projeto não era conhecido das gerações passadas. Trata-se de mistério apresentado para a salvação de toda a humanidade, mediante Jesus Cristo. Paulo está dizendo, com todas as letras, que não é possível monopolizar o Messias. Nesse caso, também os “gentios” são convidados a participar do povo de Deus. Em Jesus Cristo é somente possível pensar em inclusão. Nele, por ele e a partir dele todas as pessoas podem se sentir incluídas.
Jesus, por isso, não pode ser circunscrito a uma etnia, a uma ideologia, a uma fronteira qualquer. Vemos nele, em suas palavras e ações, que sua preocupação maior era sempre com a inclusão. Jamais recusava aqueles que queriam segui-lo. Jamais fechava a porta atrás de si. Não se via como um mistério a ser desvendado por alguns iluminados e privilegiados. Nele havia a possibilidade da inclusão para todos aqueles que desejassem segui-lo. Bastava dar um primeiro passo!
- Evangelho: Mt 2,1-12
Uma visão que bem poderia ser compreendida como a mais comum para todos nós reveste-se de uma força que tem o poder de contagiar-nos e, dessa forma, conduzir-nos por caminhos de novas e melhores práticas: Maria está em casa com seu filho (cf. v. 11) – uma imagem que para muitos em nossa sociedade, sejam mães ou pais, se tornou fugidia. Ela está em casa e usa de seu tempo de forma sábia e com qualidade. Vive com qualidade ao lado do filho. Faz do espaço doméstico um lugar de formação continuada do caráter do pequeno Jesus. É bem apropriado dizer que Maria utiliza seu tempo com qualidade. No tempo, Maria vê possibilidades de gerar maior conhecimento e comunhão não somente entre ela e o filho, mas também entre eles e o projeto de Deus.
Hoje, dizemos: “Não temos tempo” e, com isso, vivemos com nossos filhos e filhas relações marcadas por profunda falta de qualidade. Vivemos mais fora do que dentro de casa. Muitos saem pela manhã, quando os filhos estão dormindo, e somente voltam à noite, quando aqueles já se recolheram. Não os veem e, consequentemente, comprometem a qualidade do relacionamento com seus filhos. Se administrarmos o tempo de forma inadequada, ele age contra nós. Disso decorre que, não raro, quando percebemos, nossos queridos filhos(as) cresceram sem que tivéssemos consciência de tal fato. Precisamos de tempo e, talvez muito mais do que isso, precisamos priorizar o que realmente possui valor para todos nós: os(as) filhos(as).
Não há nada que substitua o contato da mãe e do pai com seus filhos e filhas. Por isso, Maria se faz presente. Não é uma mãe ausente. Sua presença é forte, constante, carinhosa e fundamental para que seu filho cresça num ambiente sadio. O texto bíblico, ao ressaltar que “viram o menino com Maria”, deseja enfatizar que a qualidade dos relacionamentos bem construídos é constituída do tempo dedicado às pessoas que amamos. Maria ama e, por isso, faz questão de viver próxima do filho. “Não tenho tempo”, dizemos com muita facilidade, a fim de reduzir o senso de culpa. No entanto, as 24 horas do dia de Maria são também as 24 horas que temos. Assim, o problema não está na quantidade de horas, mas na maneira como as administramos e elegemos nossas prioridades.
É impossível amar com qualidade se não estamos presentes. O próprio Deus conhecia esse princípio ao escolher o nome para seu Filho: Emanuel, ou seja, “Deus conosco”. Para amar e continuar amando, precisamos nos encontrar e “gastar” o tempo juntos. Maria é “Emanuel” para seu filho e, da mesma forma, deveríamos ser “Emanuel” para nossos filhos e filhas.
III. Pistas para reflexão
– Para quem precisamos ser “Emanuel”, isto é, presença que ajuda, abençoa, partilha, vive e convive? A presença fala muito mais alto do que a ausência. Devemos nos inspirar na “estratégia de Deus”, que se fez presente junto a nós por meio de Jesus, e nos convencer de que podemos revitalizar a qualidade dos nossos relacionamentos com os que nos cercam e com nossa comunidade somente quando fazemos de nossa presença algo constante.
– Muitas vezes (para não dizer a maioria das vezes) nossas cidades são marcadas por muita religiosidade e pouca justiça social. Tente dimensionar a desproporção entre a totalidade das pessoas que se dirigem a alguma igreja nos fins de semana e o perfil da cidade onde elas vivem. Praticamente são as mesmas pessoas que estão em um e em outro lugar. No entanto, se um lugar parece o “céu”, o outro está mais parecido com o “inferno”, devido à prática da injustiça e ao descaso para com o ser humano. Como poderia um só povo produzir tão diferentes lugares?
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]