Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 48-50
Ascensão do Senhor – 24 de maio
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
O Deus conosco e nos céus
I. Introdução geral
Como Jesus havia prometido, no evangelho dos dois últimos domingos, que voltaria para o Pai, mas não abandonaria os seus, nesta liturgia ele confirma isso (cf. Mt 28,20). É esse o principal sentido desta celebração da solenidade da Ascensão do Senhor, um mistério que completa o da ressurreição. A liturgia da Palavra é muito rica em simbologia e teologia. A primeira leitura e o evangelho relatam as últimas aparições do Ressuscitado aos discípulos, embora com perspectivas diferentes: têm em comum o mandato missionário, sendo o testemunho o enfoque do mandato na leitura, enquanto no evangelho é o anúncio/ensino, ambos com abertura universalista. Como fruto de uma reflexão teológica mais apurada, a segunda leitura fala da ascensão como manifestação do poder de Deus, que fez o Cristo sentar-se à sua direita nos céus.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: At 1,1-11
A primeira leitura é a abertura do livro dos Atos dos Apóstolos, que, junto com o Evangelho de Lucas, forma uma única obra em dois volumes. Embora já estejamos bastante familiarizados com esse livro, uma vez que a sua leitura vem sendo feita desde o domingo da Páscoa, somente neste dia, quase na conclusão do tempo pascal, temos a oportunidade de ouvir o seu início. É uma obra dedicada a Teófilo (cf. v. 1), um personagem de identidade misteriosa, que divide a opinião dos estudiosos: para uns, era um homem ilustre e influente da administração romana que foi iniciado no cristianismo e a quem Lucas quis aprofundar na fé; para outros, é um personagem fictício, proposto como paradigma para os leitores da obra, conforme a etimologia do nome Teófilo, que significa amigo de Deus.
O trecho relata os últimos momentos do Ressuscitado junto aos seus discípulos, antes de sua partida para o Pai, e a ascensão propriamente dita. É composto de duas partes: o prólogo (cf. vv. 1-5), no qual Lucas sintetiza brevemente o conteúdo do seu evangelho, recordando o ministério de Jesus, do início até as aparições pós-pascais, e incluindo a promessa do Espírito Santo; e o relato da ascensão (cf. vv. 6-11), com a recomendação aos discípulos de serem testemunhas do Ressuscitado até os confins da terra.
O principal objetivo do autor é apresentar a missão dos discípulos como continuação da missão de Jesus. Para isso, emprega forte simbologia, a começar pela referência aos 40 dias (cf. v. 3), que significa, no judaísmo, o tempo necessário para a assimilação de um ensinamento importante; é o tempo suficiente para um discípulo aprender e repetir o que o mestre ensinou. Assim, o autor diz que todo o ensinamento da Igreja, desde as suas origens, deve estar em sintonia com o que Jesus mesmo ensinou. Quem garante essa continuidade é a força do Espírito Santo (cf. vv. 5.8). Isso exige dos discípulos de todos os tempos uma abertura universalista, incompatível com as pretensões nacionalistas que ainda alimentavam ao almejarem a restauração do reino de Israel (cf. v. 6).
A descrição da ascensão enquanto elevação aos céus também é simbólica, inspirada provavelmente no relato do arrebatamento do profeta Elias (cf. 2Rs 2,9-15). A imagem da nuvem significa a presença de Deus (cf. v. 9) e aqui expressa a comunhão profunda entre a divindade e a humanidade, proporcionada por Jesus na totalidade da sua pessoa. Os dois homens vestidos de branco (cf. v. 10) são mensageiros divinos que visam conscientizar os discípulos da missão recebida de transformar o mundo por meio do testemunho do Ressuscitado, o que exige grande responsabilidade. Por isso, não devem ficar parados, olhando para o céu (cf. v. 11), mas se empenhar em tornar realidade o projeto libertador de Jesus, vivendo como ele viveu e fazendo as mesmas opções que ele fez. Isso faz da ascensão uma festa comprometedora. Celebrá-la é olhar para o mundo com seus problemas e desafios concretos e empenhar-se em transformá-lo, até que o Senhor retorne.
2. II leitura: Ef 1,17-23
A carta aos Efésios, da qual é tirada a segunda leitura, é uma espécie de carta circular, dirigida a diversas comunidades da Ásia Menor e escrita provavelmente quando Paulo se encontrava na prisão em Roma. O trecho lido nesta liturgia expressa, em forma de oração, hino e confissão de fé, o que a primeira leitura afirma em forma de relato.
Na primeira parte (cf. vv. 17-19), o autor pede a Deus, o Pai, um espírito de sabedoria que faça os cristãos conhecerem cada vez mais o seu mistério, quer dizer, o agir de Deus no mundo. Pede também abertura de coração para que conheçam e possam contemplar a glória de Deus e saibam que a mesma força e potência manifestadas em Cristo estão à disposição dos que creem. Isso significa que também os cristãos são herdeiros do céu, têm a glória como destino.
Na segunda parte (cf. vv. 20-23), o autor reafirma a manifestação da força e do poder de Deus em Cristo, unindo a ressurreição e a ascensão como componentes de um mesmo mistério: “o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus” (v. 20). Assim, reconhece que a soberania de Cristo transcende o tempo e o espaço (cf. v. 21), pois tudo o que pertence ao Pai lhe foi submetido, sendo constituído Cabeça da Igreja. Como membros do corpo que é a Igreja, os cristãos também estão destinados à mesma glória da qual já goza a Cabeça, Cristo. E é isso o que mais carrega esta festa de alegria e esperança.
3. Evangelho: Mt 28,16-20
O evangelho é a conclusão do Evangelho de Mateus. É um texto curto e rico, que relata a aparição do Ressuscitado aos discípulos na Galileia com as suas últimas recomendações, que culminam no envio missionário universal. Além de concluir, esse texto sintetiza o conteúdo de todo o evangelho. É importante recordar que Mateus não descreve a subida de Jesus aos céus, como faz Lucas (cf. Lc 24.50-51; At 1,6-11), mas deixa o seu evangelho com um final aberto que enfatiza a presença constante do Ressuscitado na vida dos discípulos e da comunidade.
Tendo aparecido primeiro às mulheres, o Ressuscitado havia recomendado que elas anunciassem aos discípulos que retornassem à Galileia, onde os encontraria (cf. Mt 28,9-10). Por isso, o texto se inicia afirmando que “os onze discípulos foram para a Galileia” (v. 16). O retorno à Galileia é muito significativo, sobretudo para as comunidades de Mateus, uma vez que, desde o início do seu evangelho, com o episódio dos magos (cf. Mt 2,1-12), Jerusalém é sinônimo de ameaça para Jesus e para o seu projeto libertador, tornando-se, inclusive, o cenário da sua paixão e morte. O retorno à Galileia após a ressurreição significa, portanto, que os discípulos devem continuar aprendendo com o Mestre, uma vez que foi lá onde tudo começou. Como a Galileia era uma região desprezada e periférica, significa também que os primeiros destinatários da missão da Igreja devem ser os pobres e marginalizados.
O encontro dos discípulos com o Ressuscitado é marcado por duas atitudes que parecem opostas, mas na verdade são complementares: a adoração, subentendida no gesto de prostrar-se, e a dúvida (cf. v. 17). Com a prostração, os discípulos repetem a atitude dos magos (cf. Mt 2,11), reconhecendo a divindade de Jesus, e proclamam a fé na ressurreição. A dúvida é um estímulo para a fé se tornar mais sólida e profunda a cada dia, e para a comunidade aprimorar constantemente o anúncio.
À reação dos discípulos, Jesus responde com breve discurso (cf. vv. 18-20). Primeiro, afirma a sua soberania (cf. v. 18), para recordar que é o enviado do Pai e foi constituído o Senhor do universo. Essa afirmação é também uma denúncia contra os sistemas injustos de poder que se impõem pelo uso da força e da violência. Em seguida, confere um mandato missionário universal e inclusivo aos discípulos (cf. v. 19): é destinado a todas as pessoas, de todos os lugares e de todos os tempos. Não é um convite ao proselitismo, mas ao anúncio integral do evangelho, que tem como finalidade tornar todas as nações discípulas suas e batizar em nome do Deus Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Por último, Jesus faz a promessa da sua presença para sempre na vida da comunidade (cf. v. 20) – sendo esta a principal chave de leitura de todo o Evangelho de Mateus. Com efeito, desde o início, Jesus foi apresentado como o “Deus conosco” (1,23); garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (cf. 18,20) e, na conclusão, promete permanecer para sempre com os discípulos. Por isso, com essa certeza, Mateus não tinha motivos para descrever Jesus subindo aos céus, como fez Lucas. O que importa é que a comunidade possa sentir sua presença e esta a estimule a viver e ensinar tudo e somente o que Jesus ensinou.
III. Pistas para reflexão
Com palavras das próprias leituras, podemos resumir a liturgia da Palavra deste dia da seguinte maneira: “Jesus foi elevado aos céus” (At 1,11), por isso “está sentado à direita do Pai” (Ef 1,20) e, mesmo assim, “está conosco todos os dias” (Mt 28,20). Enfatizar o compromisso da comunidade de ser presença do Ressuscitado e continuar a sua missão. Recordar o dia mundial das comunicações sociais.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).