I. Introdução geral
A liturgia deste 8º domingo do Tempo Comum nos propõe uma reflexão sobre a maneira pela qual nos construímos como discípulos e discípulas no seguimento de Jesus Cristo. É preciso ter consciência de que estamos sempre em processo de ser discípulos. Não se trata de projeto que atinge seu fim em determinado ponto de nossa vida. Nesse processo de progredir sempre, a maturidade se faz presente, e a cada dia nos parecemos mais com Jesus Cristo: “Não vivo eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20).
A primeira leitura sublinha os frutos que podemos gerar em nosso processo de construção histórico. O ser humano pleno é aquele que se alicerça no raciocínio e na palavra. Assim, os sentimentos de uma pessoa bem construída são, também, plenamente positivos.
A segunda leitura nos traz a teologia da ressurreição de Paulo como firme fundamento da fé, afirmando que, a partir da ressurreição, podemos caminhar em novidade de vida, ou seja, firmes e inabaláveis, progredindo sempre na obra do Senhor.
E a leitura do Evangelho de Lucas nos propõe assumir a catequese de Jesus como instrumento de humanização de nossas relações com outros irmãos e irmãs.
II. Comentários aos textos bíblicos
1. I leitura: Eclo 27,5-8
Os versículos em foco se encontram numa estrutura maior, que poderíamos denominar “das coisas que entristecem”. Por isso o autor inicia a seção com um provérbio numérico, elencando as mudanças lamentáveis acontecidas sempre segundo valores descendentes, ou seja, do poder para a miséria, da honra para o desprezo e da justiça para o pecado.
Nos vv. 4-7, o autor apresenta três comparações, baseadas na ideia da necessidade de provar as pessoas antes de emitir um juízo sobre elas. Afinal, geralmente há demasiada rapidez em emitir um juízo de valor a respeito das mais variadas pessoas (tanto conhecidas quanto desconhecidas). As provas da peneira, do forno e dos frutos convergem para a sugestão de que são as discussões, o raciocínio, a fala de uma pessoa que revelam o seu interior. Devemos observar que os vv. 7-8 asseveram claramente que a fala é a “pedra de toque” das pessoas.
O ser humano sempre é percebido à luz de suas ações exteriores. No entanto, as ações exteriores de cada ser humano devem ser refletidas a partir de dentro. O ser humano, nesse sentido, é fruto das sementes que ele mesmo plantou em seu coração.
2. II leitura: 1Cor 15,54-58
Praticamente em todo o capítulo 15 de 1 Coríntios, encontramos o apóstolo Paulo afirmando a ressurreição como firme fundamento da fé dos discípulos e discípulas de Jesus. Num ambiente em que, mesmo na comunidade, alguns negavam a ressurreição dos mortos, fazia-se necessário estabelecer definitivamente o pressuposto central da fé, a fim de que a vida pudesse ser vivida com sentido e finalidade. Ou seja, a morte, na teologia paulina, jamais teria a última palavra. Na teologia da ressurreição de Paulo, a morte sempre é uma situação penúltima.
Assim, Paulo, num hino triunfal, proclama a vitória da vida em meio à morte. A “morte foi afogada na vitória” é declaração cristológica fundamentada na ressurreição. Não se trata de evento futuro, mas de realidade que se verifica a partir de Jesus ressuscitado. A vida nova, portanto, já teve início. Se a morte já não tem força, isso se explica porque foi suplantada e derrotada por uma força maior. O império da morte é desfeito, e seu ferrão destruidor – o pecado –, destruído.
Há também no texto, contudo, uma expressão de ação de graças. Tão grande vitória não aconteceu por força e sabedoria humanas. A vitória é graça de Deus que se realiza na história de seu povo por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, para Paulo, podemos caminhar em novidade de vida, ou seja, firmes, inabaláveis e progredindo sempre na obra do Senhor.
3. Evangelho: Lc 6,39-45
Esse texto se encontra num dos grandes discursos de Jesus dirigidos unicamente aos seus discípulos. Na concepção de Lucas, o discurso de 6,20-49 é um resumo das instruções de Jesus àqueles que serão testemunhas de seu ministério na Galileia, com base em sua pregação, em seu ensino e em sua atividade de cura.
A referência ao cego que guia outro cego e a do discípulo que se apresenta maior do que seu mestre apontam possivelmente para falsas orientações em circulação no interior da comunidade. Jesus usa de uma catequese radical para afirmar ou até mesmo reafirmar que, no movimento dele, as relações mútuas devem ser diferentes e diferenciadas. Lucas, portanto, não somente mostra Jesus interessado na proclamação da boa notícia do Reino; vai além da proclamação do querigma, ao inserir em suas palavras as exigências do amor cristão. De fato, de pouco valor seria um movimento no qual seus integrantes fossem absolutamente responsáveis quanto ao querigma e completamente irresponsáveis no cuidado com o próximo.
Os discípulos são chamados a ser guias de outras pessoas. Todavia, como poderiam guiar os outros se não conhecem o caminho a fazer e a direção a seguir? Guiar pessoas exige clareza tanto dos caminhos interiores quanto dos caminhos exteriores. Por isso, é possível também concluir que a máxima sobre um cego guiar outro cego se relaciona como a máxima sobre não julgar; dessa forma, cego seria aquele que não consegue reconhecer os próprios defeitos, isto é, alguém incapaz de elaborar uma autocrítica. Assim, a expressão “o discípulo não é maior do que o mestre” veicula uma mensagem mais profunda, ao mostrar que o mestre (aquele que guia) precisa ter uma visão bem cristalina, pois, afinal, o discípulo depende de seu mestre para fazer o caminho. Possivelmente os vv. 39-40 fazem clara referência à instrução no interior da comunidade cristã.
As exigências se centralizam nas relações mútuas entre os próprios cristãos. De fato, a proibição de julgar os outros, de criticá-los, pode ser considerada uma aplicação do conselho do amor mútuo. Reparar no cisco nos olhos do outro expõe a crueldade das relações interindividuais mal construídas. Indica, portanto, uma limitação maior daquele que não vê em si mesmo o que procura encontrar como falta no outro. Somente quem consegue superar as próprias falhas e limitações pode construir uma visão verdadeiramente suficiente para ajudar os seus semelhantes. Por isso, em sua catequese no movimento dos discípulos, Jesus proíbe o desejo que alguém possa ter de corrigir os outros antes de haver aplicado a si mesmo as mesmas normas de correção.
A metáfora das árvores que Lucas utiliza nos vv. 43-44 é emprestada das leis da natureza e facilmente compreendida no âmbito do comportamento moral. O fruto como imagem de ações boas ou más não é invenção do evangelista; de fato, já a encontramos no Antigo Testamento, em textos como Os 10,13, Is 3,10, Jr 17,10 e 21,14.
“A boca fala daquilo que o coração está cheio” é sentença que leva a refletir sobre o que se armazena no coração. Aquilo que se extrai do coração – tanto o que produz o bem quanto o que produz o mal – é sempre um ato segundo; afinal, o ato primeiro será, invariavelmente, aquilo que se armazenou com antecedência.
III. Pistas para reflexão
Uma das expressões mais importantes para os discípulos e discípulas de Jesus pode ser resumida nas palavras “progredir sempre”. Não nascemos prontos. Talvez por isso encontramos, em nossas leituras, metáforas que se relacionam com o crescimento. Assim, o discípulo é aquele que se encontra permanentemente em processo. Não se contenta em apenas dar alguns passos ou produzir alguns frutos. Sente-se incomodado ao se perceber como menos quando poderia ser mais. No sentido específico da palavra, o discípulo não é medíocre, ou seja, não é “mediano”. Ele, por se saber sempre em processo de construção, não se contenta em ser mediano. Com efeito, ao seguir Jesus Cristo, não podemos nos relacionar com ele com base em migalhas. Nesse processo, ou nos entregamos totalmente a ele, ou não nos entregamos.
Segundo o Evangelho de Lucas, as exigências do discipulado estão centradas nas relações mútuas entre os próprios cristãos. É necessário, nesse sentido, compreender que a presença de Jesus promove dupla construção em seus seguidores: produz não só íntima e necessária relação com ele como mestre, Senhor e salvador, mas também íntima e necessária relação de comunhão uns com os outros, a fim de que a vida de Cristo brilhe em meio aos relacionamentos.
Muito possivelmente, poderíamos resumir a mensagem de Cristo desta forma: somos definidos pela maneira como nos relacionamos. Em conformidade com essa possibilidade, algumas perguntas são necessárias para a nossa reflexão:
– Se somos definidos pela maneira como nos relacionamos, como nos definimos?
– Se somos definidos pela maneira como nos relacionamos, como as outras pessoas nos definem?
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]