Roteiros homiléticos

8 de março – 3º DOMINGO DA QUARESMA

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

Jesus como mediação da vida de Deus

I INTRODUÇÃO GERAL

O que seria uma religião verdadeira? Ao longo da Bíblia, encontramos uma resposta invariável: é aquela pensada e vivida à luz de um projeto de libertação. Toda religião que aprisiona as pessoas e impede seu crescimento deixa de representar a verdade e passa a ser grande mentira. Deus sempre é aquele que propõe e defende a vida e, portanto, a religião invariavelmente necessita se pôr ao lado daquelas pessoas que vivem em estado de empobrecimento.

Neste domingo, a liturgia nos leva a perceber que a religião verdadeira somente pode ser pensada à luz de um projeto de libertação. Nada do que aprisiona e mantém o ser humano em um estado de antivida pode ser considerado como divino.

II COMENTÁRIOS AOS TEXTOS BÍBLICOS

  1. I leitura: Ex 20,1-17

A primeira leitura nos traz à mente a importância de meditarmos os dez mandamentos como se fossem os pilares básicos da construção da vida. No entanto, antes mesmo de apresentar os mandamentos, há como que uma introdução que estabelece o terreno teológico onde os mandamentos estão edificados. É justamente para esse terreno que devemos voltar nossos olhos, pois nele se percebe a experiência de Deus como presença libertadora e protetora da vida: “Eu sou Javé seu Deus, que tirou você da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2).

O terreno que alimenta os mandamentos é a liberdade. Pode-se dizer, por consequência, que a sociedade que se espera construir à luz dos mandamentos é baseada em relações de libertação, fraternidade e solidariedade; uma sociedade onde caibam todos.

  1. II leitura: 1Cor 1,22-25

Na segunda leitura mergulhamos num conceito às vezes estranho para a maioria de nós: é na fraqueza que se manifesta a força de Deus. Contrariamente às nossas percepções que nos levam a pensar sempre em vitória e sucesso, o projeto de Deus se insere na realidade, marcando uma contradição entre o projeto divino e o projeto humano. O relato do êxodo já nos indicava essa percepção. Desde o reverso da história, Deus fez uma opção diaconal pelos escravos, os mais fracos, e deu as costas ao faraó e seu sistema imperial – o mais forte. Com base na fraqueza, Deus construiu uma história de liberdade e de vida fraterna.

Paulo, escrevendo aos coríntios, descreve a complexidade da mensagem de Jesus aos olhos de alguns grupos: seria uma impostura para os judeus e loucura para os gregos. Anunciar um Messias crucificado seria um despropósito! Afinal, a cruz não seria a negação da própria vocação do Messias? A cruz de Cristo pode, sim, parecer loucura e sinal inevitável de fraqueza. Todavia, Deus transformou a cruz em sabedoria e caminho de salvação. Na teologia paulina, cresceu substancialmente a compreensão e a convicção de que Deus escolheu preferencialmente os mais pobres.

  1. Evangelho: Jo 2,13-25

Há no texto de João uma insistência na novidade escandalosa da mensagem e da pessoa de Jesus. João, diferentemente dos sinóticos, insere o episódio dos comerciantes do templo no começo do ministério de Jesus, durante sua primeira subida pascal a Jerusalém. Certamente o relato indica a ideia de que o culto espiritual da Igreja, o Corpo de Cristo, pôs fim ao culto sacrifical do templo. A partir desse momento, a incorporação ao novo povo da nova aliança acontece necessariamente pela fé. A confiança na identidade étnica ou na circuncisão já não é considerada como chave de pertença à nova realidade que se apresenta. “Muitos creram em seu nome, vendo os sinais que fazia” (v. 23). A mediação acontece unicamente por meio de Jesus. Nisso podemos ver a novidade significativa do evangelho, ou seja, lugares e objetos sagrados são substituídos por uma pessoa. Em Jesus a dignidade de todo ser humano é resgatada. Nele a humanidade se vê com outros olhos e pode se pensar como participante de um novo projeto no qual a morte dá lugar à vida e a prisão à liberdade.

Em Jesus se manifesta plenamente o amor com que Deus ama a todos os seres humanos. Jesus é o rosto humano desse Deus cuja presença os judeus celebravam anteriormente na colina de Sião. O templo de seu corpo faz que atualizemos cada vez mais qual seria o significado concreto da Igreja para nós. Não há como fugir dessa responsabilidade! O mais importante é, de fato, o templo de seu corpo, ou seja, o acontecimento da graça personificado em Jesus morto e ressuscitado. Jesus muito possivelmente está dizendo: não olhem para o templo e seus ritos; olhem para mim. O corpo ressuscitado de Jesus é o novo templo. Já não é um lugar ou lugares que nos definem, mas, sim, uma pessoa.

A cidade de Jerusalém está fervilhando de gente. Pessoas vindas das mais diferentes regiões se aproximam para a celebração da Páscoa. Um momento sublime para a história do povo de Deus que, no entanto, estava sendo manipulado tanto pelos religiosos quanto pelos políticos. Manipulava-se a religião e se oprimia o povo em nome de Deus. Naquela época, todo judeu maior de idade devia ir à festa e pagar ao templo os impostos prescritos. Eram pagos em moedas tírias (cunhadas numa cidade conhecida por Tiro). Por ser uma cidade pagã, as moedas não podiam entrar no templo e, por conta disso, havia os cambistas sempre prontos a fazer o câmbio (quando cobravam uma taxa de 8%).

Jesus, que não concordava com essa situação, assume uma atitude que tanto incomodou no passado quanto nos incomoda hoje: fez um chicote e expulsou todos do templo. Jesus relembra com suas palavras a mística dos profetas quando denunciavam (veja, por exemplo, Is 1,10-20 e Jr 7,1-10) a celebração realizada no templo de Jerusalém completamente desvinculada da vida. Jesus age como verdadeiro profeta ao denunciar a maneira pela qual a casa de Deus podia ser manipulada.

“O zelo por tua casa me consome.” Jesus restaura o significado de casa de Deus. A casa de Deus deveria ser entendida como lugar para anúncio da Palavra, e não para fazer da religião um comércio. Jesus profetiza contra o templo diante do pedido de um sinal pela população e fala a respeito da ressurreição. Ele veio para renovar as estruturas totalmente, e não apenas para colocar remendos velhos.

Poderíamos até mesmo estranhar a severidade da atitude e das palavras de Jesus. Não há nele, nesse momento, nenhum grau de flexibilidade. Ele não dá espaço para negociação ou debate. Trata-se de sua primeira visita ao templo de Jerusalém e a primeira impressão é a que fica. Aquilo que Jesus vê não era algo raro. Dia após dia, a mesma cena se repetia aos olhos de todas as pessoas. Quem se dispunha a fazer alguma coisa? Jesus tinha uma consciência privilegiada de como a religião deveria ser vivida. Performances ritualistas de nada adiantavam. É a vida que se reveste de sacralidade e precisa ser defendida. Naqueles dias, as atitudes religiosas estavam corrompidas pelos interesses econômicos e políticos do grupo dominante.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– A celebração na Igreja deveria estar ligada à vida do cotidiano. Muitas vezes vivemos um tipo de vida na Igreja e outro quando estamos fora dela. Achamos que não há nenhum problema ou contradição nesse caso. Mas, para a Bíblia, a celebração deveria ser compreendida como uma extensão da própria vida.

– Uma das melhores percepções que podemos ter a respeito da cruz de Jesus é vê-la como um sinal de solidariedade. Ela não representa a fraqueza de Jesus diante das forças imperiais da morte. Ao contrário, a cruz nos informa que Jesus não abdica de seu projeto de solidariedade com os pequeninos, mesmo que seja levado à morte.

– Os pilares básicos da construção da vida devem ser fundamentados no Deus libertador. Os dez mandamentos indicam exatamente essa direção. Antes dos dez mandamentos, encontramos a realidade social na qual se inserem; ou seja, eles se constituem de forma contrária à vida de opressão no Egito. São, portanto, pilares que ajudam a perceber como uma sociedade baseada na liberdade deveria ser construída.

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUCPR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]