Publicado em março-abril de 2024 - ano 65 - número 356 - pp.: 53-56
7 de abril – 2º Domingo da Páscoa
Por Maicon André Malacarne*
Em Jesus ressuscitado, comunicar ao mundo o remédio da misericórdia
I. Introdução geral
O domingo da Divina Misericórdia, segundo da Páscoa, continua a nos pôr diante do mistério da ressurreição de Jesus, uma nova luz que atravessa o mundo. De fato, a misericórdia que aprendemos da escola do Evangelho é “pôr o coração” em tudo que fazemos, transformando as realidades de escuridão. O compositor e poeta canadense Leonard Cohen escreveu uma canção chamada Anthem, que diz: “Há uma fenda em tudo! É assim que a luz entra”.
Tudo estava trancado ao redor dos discípulos, que, “por medo”, estavam escondidos e lutavam contra o desânimo provocado pela crucificação. O Evangelho deste domingo revela que Jesus ressuscitado é aquele que atravessa a barreira do fechamento. Vencedor da morte, permaneceu no centro da pequena comunidade que tinha chamado e enviado. Seus gestos foram muito particulares: desejou a paz e soprou sobre eles, retomando o gesto criador do Gênesis, convidou Tomé a tocar as feridas dos pregos e da lança, pediu que superassem o medo e fossem comunicadores do amor e da misericórdia no mundo.
Com Tomé, as feridas do mundo ganharam outro significado. Pela sua dúvida e ausência da comunidade, Jesus mostrou-lhe as marcas dos pregos e da lança, o que foi acompanhado de grande profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus”. Jesus ressuscitado é o mesmo Jesus crucificado que carregou a marca das feridas! Elas são sinais de que a crueldade dos agressores não tem a última palavra.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. I leitura (At 4,32-35)
O testemunho da Igreja nascente é de que a luz da ressurreição se realiza no mundo por meio da vida fraterna. Grande teólogo contemporâneo, o francês Christoph Theobald sustenta que o ser cristão é assumir um estilo de vida. Os Atos dos Apóstolos nos ajudam a desenhar o “estilo” novo, que poderia ser sintetizado pela expressão que abre a primeira leitura deste domingo: “tudo entre eles era posto em comum” (v. 32).
A Carta a Diogneto é um documento que mostra como viviam os cristãos nos primeiros anos depois do evento da ressurreição de Jesus. O autor anônimo, escrevendo a certo Diogneto, que queria saber mais sobre a “nova religião”, registrou:
Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. [...] Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e têm abundância de tudo.
Os Atos dos Apóstolos e a Carta a Diogneto atestam que o seguimento de Jesus Cristo era, de fato, uma questão de estilo de vida, que não envolvia exclusivamente aspectos exteriores, mas sobretudo os interiores, do sentido e da disposição de viver. Uma vida que transformava o testemunho da ressurreição na atenção à “necessidade de cada um” (v. 35).
2. II leitura (1Jo 5,1-6)
A primeira carta de João nos ajuda a desenhar o quadro desse “estilo cristão” com base na fé, na caridade e no amor. Trata-se do fundamento para que o seguimento de Jesus não seja reduzido a aparência e a número. A leitura se inicia afirmando que “todo o que crê que Jesus é o Cristo nasceu de Deus” (v. 1). A fraternidade da comunidade, vivida por meio do amor, está ancorada na fé que nos faz irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai.
A fé é adesão ao Filho de Deus, mediante a realização da sua vontade no mundo. Fé, portanto, em uma pessoa! Trata-se de descobrir, a partir do batismo, a vida de filho/a, como filho/a no Filho. Esse vínculo que nos une a Cristo é que nos torna capazes de participar da “vitória que venceu o mundo” (v. 4), ou seja, da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Na água do batismo no rio Jordão e, ainda mais, no sangue derramado na cruz, Jesus testemunhou ao mundo a vocação de “Filho amado” por meio do seu amor total ao Pai e da realização da sua vontade. Realizou tudo porque viveu no Espírito Santo.
3. Evangelho (Jo 20,19-31)
O Evangelho guarda dois episódios que estão totalmente vinculados pela fé em Jesus ressuscitado. Primeiro (v. 19-22), o Ressuscitado apareceu aos onze, que, não obstante o anúncio de Maria Madalena, ainda estavam com dificuldade de acreditar. Jesus atravessou as “portas fechadas” (v. 19) para estar “no meio deles”. Embora seja uma nova condição, os primeiros gestos foram desejar a paz (v. 19.21.26) e mostrar as marcas dos pregos e da lança (v. 20). Trata-se do mesmo Ressuscitado-Crucificado. Os discípulos vibraram de alegria (v. 20) por vê-lo e foram confirmados na fé para continuar a missão de comunicar Jesus Cristo ao mundo. Para realizar essa missão, Jesus “soprou sobre eles o Espírito Santo” (v. 22) e conferiu-lhes o poder de portadores da misericórdia e de perdão dos pecados.
A segunda parte (v. 24-29) se passa “oito dias depois” (v. 26). Tomé não tinha estado com os discípulos e tinha dificuldade de acreditar: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (v. 25). Jesus novamente apareceu, atravessando as portas fechadas, desejou a paz e convidou Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado” (v. 27). O testemunho da fé de Tomé foi guardado na sua expressão: “Meu Senhor e meu Deus” (v. 28).
Tomé, não obstante sua incredulidade, realiza o gesto fundamental de “aliviar a ferida” por meio do toque, da experiência concreta, da relação! A fé também é relação que nasce da fraqueza, da dúvida, da falência de todas as certezas. Reconhecer a fragilidade é uma epifania que leva a tocar as feridas do mundo.
Tomáš Halík, um dos maiores teólogos da atualidade, escreveu um livro chamado Toque as feridas (2016), no qual, logo nas primeiras páginas, recorda um acontecimento da vida de São Martinho: “Dizem que o próprio satanás apareceu ao santo sob a aparência de Cristo. No entanto, São Martinho não foi enganado. Ele perguntou: ‘Onde estão as tuas feridas?’”
III. Pistas para reflexão
O domingo da Misericórdia não pode ser celebrado longe das “feridas do mundo”. De fato, o mesmo Halík, na obra supracitada, escreveu: “Não acredito em ‘fé sem feridas’, em uma Igreja sem feridas, em um Deus sem feridas. Somente o Deus ferido através de nossa fé ferida poderia curar o nosso mundo ferido”. A misericórdia é o compromisso de “tocar as feridas”. Estar longe delas pode significar, como para Tomé, estar longe do Ressuscitado.
O lugar fundamental para viver a misericórdia e o novo “estilo” de vida é a comunidade, por meio da fraternidade, dos vínculos, da amizade, da partilha, da oração, da escuta da Palavra e do pão da Eucaristia. É também na comunidade que podemos partilhar as dores e as feridas que carregamos, bem como ajudar a curar e consolar as chagas de um mundo ferido.
Maicon André Malacarne*
*é presbítero da diocese de Erexim-RS. Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma), onde atualmente é doutorando na mesma área. É especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte-MG), formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe – Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). É aluno de doutorado em Teologia Moral da Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma). E-mail: [email protected]