Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 51-54
6 de abril – 5º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Eis que eu farei coisas novas”
I. INTRODUÇÃO GERAL
O 5º domingo da Quaresma, no caminho dos exercícios espirituais, concede-nos saborear textos teologicamente substanciosos, com uma intenção renovadora, a fim de buscarmos na fé a esperança e assim vivermos o amor. Vamos cotidianamente, no caminho da cruz, gerando frutos pascais de ressurreição e esperança, contra toda falsa esperança. Estamos prestes a celebrar a Paixão do Senhor e somos chamados a nos aproximar do mistério pascal, que é fonte de transformação para a vida de Jesus, em primeiro lugar, e para nossa vida, ligada à sua. O poeta brasileiro Augusto dos Anjos nos inspira: “A Esperança não murcha, ela não cansa, também como ela não sucumbe a crença, vão-se sonhos nas asas da Descrença,voltam sonhos nas asas da Esperança”. Diríamos, em outras palavras, que a morte iminente de Cristo parece roubar nossa alegria, mas sua ressurreição é devolvida nas asas da esperança, filha mais nova de Deus. A certeza da ressurreição é o que anima Paulo, o apóstolo, na segunda leitura. O profeta Isaías, na primeira leitura, vislumbra, na saída da terra do Egito, lampejos memoráveis de uma esperança que deve reavivar o coração dos que estão para ir ao exílio e daqueles que também de lá voltarão, trazendo a certeza de que Deus renova todas as coisas, mesmo as mais cruéis e difíceis que enfrentamos.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 43,16-21)
A essa altura do livro do profeta Isaías, Deus acena com lampejos de esperança ao seu povo que sofre. O profeta é sempre porta-voz de Deus, que vem nutrir seu povo e libertá-lo em tempos de penúria. A passagem se inicia com uma lembrança, em tom anamnético: “Isto diz o Senhor, que abriu uma passagem no mar e um caminho entre águas impetuosas” (v. 16). Essa passagem corresponde a um relato analéptico, de recordação de um feito fundamental do passado: a páscoa pelo mar Vermelho. Esse evento fundante, a passagem da escravidão para a liberdade de servir, é a mola propulsora para que o povo eleve seus olhos a Deus, sua grande e única esperança. O v. 17, ainda rememorando a Páscoa, sinaliza os feitos de Deus contra os inimigos egípcios de seu povo Israel. Deus pôs a perder carros e cavaleiros no mar. O mar tragou os inimigos de Adonai e este resgatou seu povo da casa da escravidão, o Egito; todos os inimigos estão mortos e não ressuscitarão. A estes não há esperança de vida nova, pois fizeram perecer por longos anos o povo da Aliança (berit).
O v. 18 convida o povo a não relembrar as coisas passadas, como se estivessem ressentidos com as mazelas vividas, os dissabores do caminho, as mágoas dos quatrocentos anos de escravidão. O v. 19 é um ato transformador dos problemas do passado: “Eis que eu farei coisas novas, que já estão surgindo”. Deus abrirá uma estrada no deserto, por onde emanará água: “rios em terra seca”. A água, escassa no Oriente Médio Próximo, foi sempre um símbolo de fertilidade, pois traduz o matrimônio de Deus com seu povo. Deus faz cair sobre seu povo a água da vida. Por isso, vale lembrar que, no AT, o encontro de um homem com uma mulher em um poço é sempre o gênero literário indicativo do início de uma relação, que fecundará as núpcias: uma relação profunda e duradoura como um poço. Foi assim com Isaac e Rebeca (Gn 24,15-51), Jacó e Raquel (Gn 29,1-20), Moisés e Séfora (Ex 2,15-22). Para a água, criatura de Deus desde os primórdios do Gn 1,9, há sempre, no contexto próximo a Israel, um deus patrono, seja Baal, Asherá ou Dagom (filisteu, deus ligado à fertilidade e à pesca).
Não somente os homens e mulheres se alegrarão com a fartura produzida pela água, mas também os animais selvagens, dragões e avestruzes, pois Deus faz brotar água no deserto para dar de beber a seu povo, os escolhidos (v. 20). O texto chega a um clímax narrativo que também é desfecho: “Este povo, eu o criei para mim e ele cantará meus louvores” (v. 21). Tais cânticos traduzem a alegria pela providência de Deus, que salva seu povo da estiagem e faz renovar todas as realidades.
2. II leitura (Fl 3,8-14)
Paulo se dirige aos Filipenses enquanto está preso em Roma (Fl 1,7-13), provavelmente no final do ano 61 ou início do ano 62 d.C., falando-lhes com muito afeto e paixão. Trata-se de uma carta emotiva. Ele considera tudo perda por causa de Cristo, tudo não passa de lixo (v. 8), e seu desejo não é outro senão ser encontrado por Cristo e estar unido a ele. Paulo deixou-se apaixonar por Cristo, buscando trazer em sua vida as marcas de Cristo, sua paixão e ressurreição, desalento e esperança.
No v. 9, Paulo realça o sentido enfático da justiça de Deus (dikaiosyne tou Theou). A justiça é, para ele, salvação que vem de Deus por meio da fé em Cristo (pistys Christou), e não provinda da Lei (Torá). Esses dois temas são fundamentais em Paulo, sobretudo na primeira carta aos Coríntios e em Romanos. Para o apóstolo, essa justiça (v. 10) consiste em conhecer a Cristo e participar (experimentar – empiria) de sua ressurreição. Para tal, Paulo se vê necessitado de participar da paixão de Cristo. Seus sofrimentos na prisão não são mera realidade fatídica ou para reclamações ou murmúrios; são, antes de tudo, para assemelhá-lo a Cristo crucificado e levá-lo, como Cristo, à glória da ressurreição. Paulo é para nós, cristãos, símbolo de fé viva e configurada a Cristo. Toda essa realidade de sofrimento tem uma finalidade: alcançar a ressurreição dos mortos. O apóstolo não se gloria, pois não alcançou essa graça, mas corre para tal (aqui vemos o sentido de ser atleta de Cristo e estar em uma competição, na qual o pódio se traduz em salvação). Ele se vê alcançado por Cristo, o atleta olímpico de Deus Pai.
Paulo não se vê salvo, mas alcançado por Cristo em sua graça (v. 13), de tal modo que se lança no que está por vir, como quem está imbuído de coragem. Como um atleta, ele corre para a meta, para o prêmio da glória que, do alto, Deus o chama (vocaciona) a receber. No final de uma corrida, o juiz chama o vencedor pelo nome e concede-lhe o título de honra. “Por ‘vocação’, aqui, Paulo quer dizer o chamado de Deus ao cristão, quando a ‘corrida’ escatológica estiver concluída, para subir e unir-se a Cristo na vida eterna”, como afirma Brendan Byrne, sj, no Novo Comentário Bíblico São Jerônimo (Paulus).
3. Evangelho (Jo 8,1-11)
O relato é marcado pelos traços da misericórdia e do perdão. Jesus, no encontro com a mulher adúltera, em uma reviravolta, transforma um cenário marcado por pecado, adultério, acusações, juízes, ré e julgamento em perdão, misericórdia, reconciliação e no puro retrato da sua missão soteriológica (salvífica): o amor.
Do ponto de vista da história da redação do texto, esse relato só entrou em manuscritos do século III d.C., ou seja, tardiamente. Então, pode ser considerado um relato “incluído” posteriormente, pois parece, do ponto de vista literário, deslocado. Ele parece preencher uma “lacuna” antes do discurso de Jo 8,12-59 (que começa com Jesus dizendo ser a luz do mundo) e depois do discurso de Jo 7,37-44 (que afirma ser Jesus a fonte da água viva). Também é notório que não coincide com os traços estilísticos e teológicos de João, o Quarto Evangelho. O copista que inseriu tal relato nesse local intuiu que ele servisse para ilustrar Jo 8,15 (“eu a ninguém julgo”) e 8,46 (“quem... me acusa de pecado?”). Nele se evidencia uma “arapuca” da qual Jesus tem de escapar por meio de um dito prudente e sábio, como aquele em Mc 12,13-17, sobre ser lícito ou não pagar tributo a César.
O cenário mostra o ensino cotidiano no templo, uma prática comum de Jesus no Evangelho de João, mas não tão comum em Mc, Mt e Lc (20,1; 21,1.37; 8,2-3). Alguns exegetas sugerem que esse relato seria um material lucano que foi parar no meio do Evangelho joanino, pois circulava na tradição das igrejas nascentes. O Dt 22,23-24 prescreve a lapidação (apedrejamento) de uma mulher casada que cometesse o adultério. Jo 18,31 está certo em insistir que os romanos do tempo de Jesus tinham tirado dos judeus o direito de executar a pena de morte em casos em que sua Lei o exigia (“A nós não nos é lícito matar ninguém”). Então, isso seria uma forma de Jesus apelar a tal recurso, traduzido em outras palavras: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Segundo os oponentes de Jesus, ele deveria rejeitar ou a Lei de Moisés, ou a lei de Roma.
Sobre o v. 6, que mostra Jesus escrevendo com o dedo no chão, autores patrísticos sugeriram a conexão com Jr 17,13: “Todos os que te abandonam serão envergonhados, os que se afastam de ti serão escritos na terra”. A mulher, embora flagrada em adultério, não poderia ser lapidada, pois Roma a defendia; Jesus, contudo, não fica nem do lado de Roma, nem do lado da Lei judaica, e sim da mulher. Grosso modo, quem estiver imune de pecados que seja o primeiro a apedrejá-la. Dt 17,17 reconhece que aqueles que são testemunhas contra uma pessoa têm responsabilidade especial por sua morte. O v. 10 é o clímax: “Mulher, ninguém te condenou? Eu também não te condeno”. Depois de os acusadores irem embora, Jesus deixa claro que não faz parte deles. A mulher está livre para ir, mas não para pecar de novo, palavras que aludem à primeira leitura: não se recordar do passado, pois Deus fará coisas novas (cf. Is 43,18-19a).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
O ministro ordenado ou o(a) animador(a) leigo(a) da comunidade hoje é chamado(a) a meditar sobre a bondade de Deus, que renova nossa vida de esperança, pois ele não conjuga nossa vida no tempo passado, mas no presente. Deus há de nos salvar pelo que somos hoje. Convidar a comunidade a sentir-se chamada a Cristo, percebendo que ele ocupa um lugar de destaque em nossa existência e que a razão de estarmos reunidos é ele nos ter salvado com sua redenção na cruz. Criar espaços de acolhida, perdão e misericórdia na comunidade, extirpando todo julgamento reducionista que afasta as pessoas de nossa convivência e da Eucaristia, e pode nos tornar alfandegários entre Deus e nosso próximo. Refletir, criticamente, sobre quantas mulheres ainda não são julgadas ou condenadas pelo machismo truculento, que chega a ponto de gerar inúmeros feminicídios em nossa sociedade. Precisamos ser comunidades acolhedoras, onde o perdão e a misericórdia sejam frequentes e ativos.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]