Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 36-39
5 de março – QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
Guardai-vos de praticar vossa justiça diante dos outros
I. INTRODUÇÃO GERAL
A Quaresma é o tempo de plantar no coração as sementes que, durante este período, germinarão a fim de na Páscoa serem colhidos os frutos da graça e do amor na ressurreição do Senhor. Por isso, trata-se de tempo de conversão, de reviravolta nas entranhas de nossa fé, como a semente que na terra faz germinar uma nova vida. Neste dia, iniciamos, na Igreja do Brasil, a Campanha da Fraternidade de 2025, motivados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil a refletir sobre o tema: “Fraternidade e ecologia integral”, com o lema bíblico: “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31), expressão divina que está no fim do relato da criação do mundo e da humanidade. Neste ano de 2025, celebramos os dez anos de publicação da Laudato Si’ (“Louvado sejas”), carta encíclica do papa Francisco sobre o cuidado com a Casa Comum. Dessa maneira, somos inspirados por nossa mãe Igreja a nos comprometermos com o meio ambiente no qual estamos inseridos, no sentido de cuidar dele e fazer que haja vida para todos em abundância (Jo 10,10b). No Evangelho, encontramos Jesus ensinando a nova prática de piedade: a esmola, a oração e o jejum, gestos que agradam a Deus. Na primeira leitura, o profeta Joel nos convida a rasgar o tecido do pecado que pode envolver nosso coração e, na segunda leitura, Paulo nos exorta a colaborar com Cristo na promoção da reconciliação do gênero humano com Deus – começando por nós próprios.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jl 2,12-18)
O profeta Joel é enfático neste tempo de conversão. Evoca em seus lábios a voz de Deus, que nos convida a retornar para ele com jejuns, lágrimas e gemidos (v. 12), como verdadeiros arrependidos, tristes por nossa condição de pecadores. O profeta diz: “rasgai os corações e não as vestes” (v. 13), o que, para a tradição bíblica, sinaliza modificar por dentro o que deve ser apresentado ou percebido por fora, em nossas atitudes e práxis, tal como a metáfora da semente que se deixa morrer para renascer, da mesma forma que Cristo será sepultado para ressurgir da morte. Nesse v. 13, o profeta ainda nos apresenta Deus: “ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo”. O profeta Joel, antes de tudo um exímio teólogo de seu tempo, evidencia as condições de possibilidade para a conversão de seu povo, pois o Deus em que eles creem, assim como hoje também nós cremos, é bondoso, age com compaixão, tem a face misericordiosa e é capaz de perdoar. Trata-se de uma teologia positiva sobre Deus. Não há, assim, por que temê-lo, pois ele é tudo o que seu povo precisa e espera, tal como um pai ou uma mãe que acalenta seu povo ao colo e o atrai para si.
O profeta, no v. 14, apresenta uma condição: voltar. Trata-se de um jogo de palavras: em hebraico sûb, “voltar”, “arrepender-se”. O povo é chamado a arrepender-se. O resultado esperado que o profeta deseja é o arrependimento e a conversão, e assim Adonai agirá como acima descrito. O que o profeta está ressaltando é a vontade soberana do Senhor (cf. Am 5,15; Jn 3,9; Zc 2,3), o arrependimento e a mudança de vida são uma convocação para todos, desde os menores até os idosos. O v. 15 lembra do toque da trombeta, o shofar, utilizado não apenas nos assuntos militares, mas também no culto (Lv 25,9; Sl 81,4), no tempo da Pessach. Trata-se do convite à observação cultual que trará o perdão de Adonai. Nessa intimação, os participantes são listados detalhadamente por Joel no v. 16 – anciãos e crianças de colo, até mesmo a noiva e o noivo são chamados a se juntar à penitência. O v. 17 fala sobre os ministros, postos entre o vestíbulo e o altar, que clamam o perdão de Deus para seu povo. Frequentemente entre lamentos, os que sofrem se queixam de seus adversários e se perguntam onde está Deus (Sl 42,4.11; Sl 79,10; Mq 7,10; Ml 2,17). O v. 18 assegura que Adonai escutou a oração dos suplicantes, encheu-se de zelo por sua terra e perdoou ao seu povo. Duas atitudes fundamentais de Deus: amar e perdoar.
2. II leitura (2Cor 5,20-6,2)
Na segunda carta aos Coríntios, é nítido o convite paulino à Igreja para que se reconcilie com Deus. O autor afirma que somos embaixadores de Cristo, e Deus, por meio de nós, seus servidores, exorta todos à reconciliação com ele. A reconciliação é o vínculo da união perfeita com Deus e com os irmãos, fazendo-nos reatar os laços cortados pelo pecado, pela indiferença e por tudo o que não convém ou não provém de Deus. A comunidade cristã é como um tecido inteiro, no qual o pecado vai esgarçando as relações e rasgando a integridade. Só corações reconciliados são capazes de forjar novo tecido de unidade e paz. Em 5,21 percebemos o papel de Cristo na reconciliação: mesmo reconhecido como sem pecado em Hb 4,15 e 1Pd 2,22, “ele passou a estar naquela relação com Deus que normalmente é o resultado do pecado” (Barrett, C. K. The second epistle to the Corinthians. New York, 1973). Ele se tornou parte da humanidade pecadora (Gl 3,13), a fim de que por ele nos tornemos justiça de Deus.
Cristo, embora tenha vivido em tudo a condição humana, não viveu a realidade do pecado, por conta de sua natureza divina. Por isso, só ele, Deus encarnado, e ninguém mais, pode nos salvar a todos, visto que conheceu nossos limites e dores, e nos salva porque não viveu o pecado. Nós, em Cristo, passamos a “estar naquela relação com Deus que é descrita pelo termo justiça, ou seja, somos inocentados em seu tribunal, justificados, reconciliados” (Barrett). Paulo exorta, por fim, a comunidade coríntia a não receber levianamente a graça de Deus, que é salvífica e justifica, pois no dia da salvação “eu te socorri”. Paulo, Timóteo e Apolo são colaboradores de Deus, afirma o apóstolo (cf. 1Cor 3,9 e 1Ts 3,2). Esse fim parenético (exortativo) assinala que é agora o momento favorável da salvação de Deus, não há que se pensar no futuro (pois é incerto) nem no passado (pois este já não se pode possuir).
3. Evangelho (Mt 6,1-6.16-18)
Jesus, no Evangelho de Mateus – texto situado no coração do discurso inaugural, sobre a alta montanha –, convida-nos a três atitudes fundamentais: esmola, oração e jejum, ou seja, às obras de piedade que, nesse Evangelho, passam por uma transformação mediante o juízo de Jesus, expresso sobretudo no termo: “ao contrário” (v. 3 e 6). As obras de piedade – dar esmolas, orar e jejuar – correspondem a nosso relacionamento com Deus, a atitudes que se desdobram em bem do próximo e de nós mesmos. Essas obras estão ligadas a uma lista judaica baseada em Dt 6,5.
Após o versículo introdutório, seguem-se três pequenas unidades de estrutura muito semelhante – v. 2-4; 5-6; 16-18 –, que não têm paralelos em Mc e Lc, nem sequer em Jo. Esse padrão de microrrelatos é quebrado com um material antigo, a oração do pai-nosso, dos v. 7-15. Estilisticamente, assemelha-se a um catecismo: “guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos outros” (v. 1). Justiça, em grego dikaiosyne, pode ser “retidão” ou “ajustamento”, derivando do hebraico tsedaqah, que veio a significar “dar esmolas”.
Os v. 2-4 tratam da esmola, do grego eleêmosynê. Entende-se “dar esmolas” como uma ação que estava bem organizada no judaísmo antigo e tinha alto valor social. O termo “hipócritas” é uma ênfase mateana no conjunto dos Evangelhos. O termo grego hypokrités, originário do teatro, significando “ator”, também aparece em Mt 23 para designar aqueles que, de maneira falsa, interpretam as Escrituras. O significado hermenêutico da esmola é que nos preocupamos com aqueles que estão em vulnerabilidade, na falta. Pensemos: se podemos nos alimentar cotidianamente, a esmola é uma forma de colaborar para que outros que nada têm possam fazer o mesmo.
A segunda atitude é a oração (v. 5-15), mas nesse Evangelho dá-se ênfase à atitude de orar (v. 5-6). Na sequência, encontramos no v. 9 a oração do pai-nosso. A oração é uma ação direta a Deus. É sincera comunhão pessoal com Deus, para nosso benefício, não para o de Deus, uma vez que ele já tem consciência de nossas necessidades. A oração é o combustível da fé cristã. O v. 5 denuncia o teatralismo das orações, que não pode ser o modo de orar do seguidor de Jesus. No v. 6, a oração é descrita como uma íntima relação com Deus, no quarto, na intimidade e simplicidade, e não aos gritos, com traços de histeria social.
A terceira atitude é o jejum. Trata-se de prática religiosa comum, de caráter público ou privado. Os judeus jejuavam em segredo às segundas e quintas-feiras, ao passo que os cristãos elegeram as quartas e sextas-feiras (último dia de vida de Jesus, momento de sua paixão). O jejum expressa nosso autorregramento, nossa temperança e a busca de ascese: o equilíbrio das paixões desordenadas, do desejo de ter tudo exclusivamente para nós. O bloco dos v. 16-18 mostra um jejum não teatralizado, não fundado na hipocrisia, mas como um momento de reconhecimento de que muitas vezes queremos tudo para nós, não pensando nos outros. O v. 17, que diz: “Tu, porém, quando jejuares”, marca a diferença entre o jejum praticado no tempo de Jesus e o jejum que ele acredita ser para nós o melhor. “Perfuma a cabeça e lava o rosto”: exprime o cuidado para que a imagem de mortificação pessoal não seja um autocompadecimento, a fim de despertar no outro um sentimento de piedade para com quem jejua. O jejum deve ser uma prática alegre e leve. O v. 18 ressalta a necessidade de ser algo discreto, de que os outros não saibam, mas apenas o Pai, que, reconhecendo tal prática, nos dará a recompensa.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Busquemos pensar: como nossa comunidade cristã pode cooperar na reconciliação de todo gênero humano com Deus? Como podemos colaborar na salvação de todos os que conosco convivem? Pensar na Campanha da Fraternidade, para além do pessimismo em relação à ação humana sobre a natureza, procurando perceber nossa participação, mesmo que pequena, nesse movimento de cuidado integral com o planeta Terra. A comunidade é chamada a viver, nesta Quaresma de 2025, gestos de penitência e oração. O jejum, a oração e a esmola podem ser atitudes verdadeiras, não apenas intenções que temos e nem sempre cumprimos.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]