Nenhuma comunidade se constrói sem a palavra de Deus. Uma das provas irrefutáveis da fragilidade de uma paróquia se revela na pouca profundidade que seus fiéis possuem nas Escrituras. A palavra de Deus deve ser compreendida como o alimento sólido que leva a comunidade a caminhar, com passos firmes e seguros, para o futuro. Quando não nos alimentamos, o corpo enfraquece e desfalece. Imaginemos todo o corpo de Cristo tomado pela indisposição e pela letargia, marcado pela falta de conhecimento bíblico e, com isso, propenso a ser levado para lá e para cá por qualquer vento de falsa doutrina. O estudo das Sagradas Escrituras une irmãos e irmãs ao redor da mesma fé e os torna responsáveis uns pelos outros.
II. Comentários aos textos bíblicos- I leitura: Ne 8,2-4a.5-6.8-10
A segunda leitura nos faz lembrar uma expressão curiosa: “O fio de três dobras não se rompe com facilidade”, diz um dos provérbios bíblicos. Imagine, então, todo um povo unido em direção ao mesmo objetivo! Pois é exatamente assim que se inicia a primeira leitura: “todo o povo, como se fosse uma única pessoa, se reuniu na praça...”. Reunidos, não há espaço para interesses individuais e para a necessidade de reconhecer quem é mais e quem é menos. E qual era o motivo da reunião? Para que fosse lido o livro da Lei. Tratava-se, nesse caso, de uma catequese coletiva. Todo o povo reunido para ouvir a palavra de Deus. Uma reunião a que se pode atribuir quatro características, a saber: é espontânea, coletiva, harmoniosa e com um propósito. A comunidade se reunia ao redor da Palavra e procurava, com base nesse referencial seguro, traduzir em suas práticas diárias a vontade de Deus, que é sempre concretizada na partilha. Um povo que se reunia para se alimentar com o pão nutritivo da palavra de Deus e, assim, saciar a fome.
A reunião foi marcada pela atenção com que ouviam a leitura da Palavra, pela reverência (ficaram em pé), pela atitude de pôr o próprio corpo para participar dessa festa litúrgica (erguiam as mãos e respondiam com amém) e pelo choro resultante do fato de os corações terem sido atingidos em cheio pelo calor da palavra de Deus. A reunião do povo para escutar a Palavra não pode, porém, ser pensada como um momento de tristeza. Por isso, Esdras motivou-os a retornar às suas casas e celebrar a proposta de vida de Deus com muita alegria e comida, sem se esquecerem de partilhar com os que nada tinham. Afinal, se todo o povo era como uma única pessoa, nem uma pessoa sequer poderia passar fome e vivenciar a tristeza da carência. O compromisso com a Palavra causa profundas mudanças no povo de Deus.
- II leitura: 1Cor 12,12-30
Paulo sabiamente utiliza o corpo humano como metáfora do modo pelo qual as relações entre irmãos e irmãs deveriam ocorrer na comunidade. Se a sociedade ao redor utilizava a imagem do corpo para justificar o poder de dominação, ao hierarquizar as relações entre uns e outros, o apóstolo pensa de forma contracultural e produz uma inversão sensacional: unidade na diversidade, tendo por base os mais fracos. Cristo é a cabeça de um só corpo, e todos os membros estão nele integrados. No entanto, não é possível deixar de lado a inovação de Paulo, ao afirmar o critério de atenção aos membros mais fracos: “os membros do corpo que parecem mais fracos são os mais necessários” (v. 22).
A unidade do corpo passa pelo respeito a si próprio, assim como pelo respeito aos outros. Em relação a si próprio, é necessário saber quem se é dentro do corpo e assumir a própria função, sem dar margem a vaidades comparativas (“se não sou mão, então não pertenço ao corpo”, v. 15); relativamente aos outros, deve-se pensar sobre a responsabilidade ética que temos para com as demais pessoas que vivem e convivem conosco na mesma comunidade.
Para Paulo, é a percepção de que todos constituímos um só corpo que determina a construção de uma comunidade sadia. No v. 13, por duas vezes, o apóstolo falou do Espírito. Num primeiro momento, destacou que “fomos batizados num só Espírito” e, em seguida, afirmou: “todos bebemos de um só Espírito”. É preciso salientar o aspecto comunitário nas duas afirmações – “todos” –, indicando a superação de qualquer divisão na comunidade. O corpo é a comunidade, e o espírito envolve o corpo. Todas as patologias advêm justamente quando algum membro do corpo procura viver segundo o princípio da hierarquização e da dominação do outro. Não há espaço, na construção do corpo, para sentimentos de superioridade ou inferioridade. Em comunhão, vemo-nos como extensões uns dos outros e, portanto, não como competidores que precisam derrotar o outro. No corpo não há inimigos, e sim irmãos e irmãs.
- Evangelho: Lc 1,1-4; 4,14-21
Estamos diante do programa de toda a atividade de Jesus. De forma inteligente, o texto é colocado precisamente no início da sua vida pública. Trata-se de seu programa de trabalho. Se alguém quisesse saber quais seriam as ações, opções e comportamentos de Jesus, bastaria prestar atenção nas palavras que fluíam de seus lábios. As pessoas presentes na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Aquilo que Jesus tem para falar desperta a atenção de todos. Não são palavras vazias e sem sentido. São palavras carregadas de sentido, recheadas com um projeto de libertação. Palavras que vão ao encontro dos desamparados, para que eles possam se sentir seguros e protegidos por uma palavra viva que liberta. Percebe-se logo que o ministério (a vida) de Jesus está concentrado na periferia. Ele não se apresenta nos grandes centros nem frequenta as grandes cidades. Sua vida é direcionada aos oprimidos e vulneráveis. Ele decididamente permaneceu ao lado deles e, simultaneamente, condenou os opressores.
Ao ler o texto de Isaías 61,1-2 e aplicá-lo a si mesmo, Jesus assume sua vida e ministério no contexto em que está vivendo. Não é um alienado que fecha os olhos para o que tem diante de si. É sabedor da própria realidade. Ele não nega a realidade, mesmo que seja contraditória, opressora e criadora de pobreza e marginalização. Ao contrário, assume sua vocação em meio à forte contradição social e se faz solidário com aqueles que estavam sendo desumanizados e empobrecidos pelo sistema sociopolítico. A realidade que os pobres viviam não era estranha a Jesus, pois era uma realidade que também o alcançava, bem como sua família. O século I d.C. foi marcado por grandes catástrofes na Palestina: secas, furacões, epidemias, tempos de fome. As propriedades eram concentradas nas mãos de poucos e com isso aumentava o número dos sem-terra; os impostos aumentavam não apenas nas porcentagens a pagar, mas também em quantidade, pelo aparecimento de novos impostos.
O ministério de Jesus refletirá justamente essa situação. A multidão que o segue vive na periferia da vida, é uma quantidade enorme de pessoas que vivem no anonimato. São pobres não porque sejam vagabundos e não gostem de trabalhar. São pobres, justamente, porque trabalham. Apresentam-se como vítimas de uma sociedade que cria a pobreza e faz da miséria um instrumento de riqueza de alguns poucos. A multidão que o segue passa fome e anda em busca de alimento como as ovelhas que não têm pastor para alimentá-las. Jesus não vira as costas para a multidão de pobres.
Diante da multidão, a única opção que lhe cabia era o exercício da solidariedade. A realidade que Jesus vivia era seu maior desafio. Ele se encarnava nela para que pudesse transformá-la. Jesus não se alienava da realidade, e suas palavras e ações não produziam alienação nos ouvintes. A relevância de Jesus pode ser vista justamente na maneira como assumiu a realidade dos pobres como se fosse a sua própria. Nesse sentido, o povo encontrava profunda relevância em suas palavras e gestos.
III. Pistas para reflexão
– Seria muito interessante utilizar os grupos de reflexão ao redor da Bíblia como termômetro para medir o compromisso com nossas paróquias. Temos facilidade de produzir grandes ajuntamentos para shows e não verificamos o mesmo entusiasmo e participação quando se convoca para estudar a Bíblia. Como poderemos conhecer o projeto de Deus para nossa vida e para nossa Igreja se não tivermos familiaridade com a palavra de Deus?
– Há, nas palavras de Jesus, um projeto de libertação integral para o ser humano. Ele fez uma ousada e decidida opção pelos mais vulneráveis de seu tempo. Ao olhar para as pessoas, não via, em primeiro lugar, os pecados delas, e sim o sofrimento que as atingia e subjugava. Em seu programa de atividade, lido na sinagoga, Jesus indicou, com todas as letras, os caminhos que haveria de trilhar. E quais são os nossos caminhos?
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]