Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2021 - ano 62 - número 338 - pág.: 59-62

3º Domingo da Páscoa – 18 de abril

Por Marcus Mareano

Vós sois as testemunhas

I. INTRODUÇÃO GERAL

A experiência com o Ressuscitado continua a ser narrada na liturgia deste tempo pascal. O efeito de tal evento se demonstra na “vida nova” gerada a partir desse encontro de fé, que não fica retido em quem o realiza, mas se transmite para que outras pessoas também o experimentem.

A compreensão desse evento acontece gradualmente. Com os primeiros discípulos foi assim, com nossa vivência ocorre da mesma forma. Pouco a pouco, participamos do mistério da ressurreição de Jesus e assimilamos esse mistério, que ilumina sua morte, sua vida e seus ensinamentos e nos faz perceber a nós mesmos e a criação de maneira nova. A liturgia deste dia nos propõe esse esclarecimento pelas Escrituras.

Cada celebração é uma oportunidade de crescimento espiritual. Ouvindo a pregação e o exemplo de Pedro (primeira leitura) e confiando sem medo em Deus, que nos perdoa (segunda leitura), podemos sair para testemunhar o mistério da fé em Cristo (Evangelho). Há muitas pessoas que precisam conhecer melhor a mensagem de Jesus.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (At 3,13-15.17-19)

A pregação de Jesus continua na voz e na vida dos seus seguidores. A primeira leitura traz uma cena na qual Pedro anuncia a mensagem cristã depois de ter curado um aleijado que estava à porta do templo (3,2). Muitas pessoas olhavam admiradas para Pedro e João (3,12) por causa do ato realizado. Então, Pedro toma a palavra para expor a fé em Jesus (v. 13).

O início da pregação recorda que o Deus dos pais (Abraão, Isaac e Jacó) glorificou a Jesus (v. 13). O Deus em quem o povo diz acreditar agiu na vida de Jesus de maneira contrária à ação dos líderes, que promoveram sua morte. Os discípulos testemunham, por meio de ações, a força dessa ressurreição, que Deus realizou em Jesus (v. 15).

Diante de um público formado majoritariamente por judeus, Pedro, então, propõe a fé em Jesus, o Cristo. Primeiramente, ele o apresenta como cumprimento das profecias das Escrituras (v. 18), indicando que seus sofrimentos se compreendem à luz dos profetas. Em seguida, Pedro convida os ouvintes à conversão (v. 19), para viverem conforme à ação de Deus, que gera vida, e não como a ação das lideranças judaicas daquele tempo, que se empenharam na morte de Jesus.

O apelo dessa leitura à mudança de vida continua para nós, que a lemos hoje. Que “mortes” nos rodeiam e a que “vidas” podemos aderir, para melhor viver? A contraposição entre a ação divina e a ação dos líderes judeus ocorre no nosso interior, conforme o espírito que nos inspira a agir.

2. II leitura (1Jo 2,1-5a)

A primeira carta de João se desenvolve como uma meditação, com exortações para a comunidade de fé. No trecho da segunda leitura, o autor apresenta Jesus como nosso defensor (paráclito) diante de Deus.

O pecado deixa marcas drásticas no interior humano. A tendência é envergonhar-nos de Deus e esconder-nos, como fizeram Adão e Eva (Gn 3,8). Em contrapartida, a carta de João convida a confiar em um justo defensor diante do Pai (v. 1; cf. Jo 14,16). Portanto, podemos nos aproximar e nos mostrar a Deus sem temores de punições.

Jesus é comparado com uma “oferenda perfeita” pelos pecados. Uma imagem do culto judaico que se aplica a Jesus para expressar sua ação em prol da humanidade. A exemplo do servo de Deus de Is 53, que assumiu e invalidou nossos pecados e os do mundo inteiro (cf. Jo 1,29).

Em seguida, o trecho da leitura comenta o critério de “conhecimento” de Deus. Para as Escrituras, conhecer significa relacionar-se, ter experiência e praticar o que se conhece. Logo, “conhecer a Deus” não quer dizer obter informações a respeito dele, mas fazer a experiência de encontro por meio da fé. Por isso, quem diz que conhece a Deus põe em prática (guardar) os mandamentos (v. 3). Quem não observa os preceitos que Deus ensinou é um mentiroso (v. 4), alheio à verdade que é Jesus (cf. Jo 14,6).

Os cristãos têm de se dedicar à Palavra de Deus. Quem busca a compreensão para realizar os ensinamentos de Jesus, nele o amor de Deus permanece (v. 5a), porque a herança de Jesus foi sua “palavra-mandamento” de amor: “Que vos ameis uns aos outros como eu vos amei (...). Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35).

3 Evangelho (Lc 24,35-48)

O texto do Evangelho apresenta um relato de encontro dos discípulos com o Ressuscitado. Dessa vez, em vez do caminho para Emaús (Lc 24,13-33), uma refeição em comum na qual Jesus explica as Escrituras.

Os Onze recebem a notícia do que acontecera no caminho para Emaús e como os dois caminhantes reconheceram Jesus “ao partir o pão” (v. 35). Faltava o grupo daqueles que conviveram mais com o Mestre fazer essa experiência. Então, Jesus se põe no meio deles, desejando a paz (v. 36), semelhantemente à narrativa que lemos em Jo 20,19-23.

Os discípulos não reconhecem Jesus. Eles pensam ser um fantasma. A novidade da ressurreição vai sendo compreendida gradualmente. Jesus os questiona sobre o porquê da perturbação interna e mostra-lhes as mãos e os pés, para que compreendam que não era um delírio deles, mas uma realidade nova diante da ação de Deus na vida de Jesus (v. 38-39). O incômodo interno dos Onze se transforma em alegria pela surpresa (v. 41).

Para comprovar ainda mais, Jesus compartilha o alimento (v. 42-43). Bebe e come diante deles como um gesto eucarístico, sinalizado pelo uso dos verbos que recordam a celebração cristã. Depois, ensina a respeito das Escrituras, mostrando como os acontecimentos eram cumprimentos do que se lê na Lei, nos Profetas e nos Salmos (representação das Escrituras judaicas). Com isso, o grupo passava a entender verdadeiramente os textos antigos de forma nova (Jo 14,25-26; 16,12).

Uma vez assimilada a mensagem de Jesus, eles deveriam testemunhá-la a todas as pessoas (v. 48). O ponto de chegada se torna o de partida: Jerusalém. Os discípulos ecoam a Palavra de Jesus e dão continuidade ao que foi iniciado. A Boa-nova não pode parar de se espalhar a fim de que mais pessoas conheçam o Ressuscitado.

A continuidade da obra de Lucas, os Atos dos Apóstolos, narrará como se realiza, na comunidade primitiva, o anúncio da Palavra de Deus. O legado desses séculos passados chega até nossos dias para que continue, no tempo e no espaço, o testemunho a quem ainda não o conhece. Nossos lares, trabalhos, comunidades e outros ambientes são as “Jerusaléns” atuais, os locais onde fazemos a experiência com o Ressuscitado e de onde saímos para anunciá-lo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Diante dos desafios cotidianos de nossa vida, a Palavra de Deus ilumina nossa jornada, para reconhecermos a presença ressuscitadora de Jesus.

A pregação de Pedro era movida por uma vivência de fé no Senhor ressuscitado, por isso ele agia e falava a respeito de Jesus. Nossas ações e pregações eclesiais devem ser um transbordamento da experiência de fé e consequência da vida espiritual. O ativismo e o imaginário de produção fazem das comunidades de fé “empresas”, como se tivessem metas quantitativas a cumprir. Nossa pastoral pode se assemelhar a um grão de mostarda (Mc 4,30-32) ou a um fermento na massa (Mt 13,33). A Palavra de Deus vai se realizando entre nós conforme nossa disposição para amar.

Quantas vezes nos sentimos mal pelo pecado e não olhamos para a bondade infinita de Deus? Quantos medos de Deus guardamos? Alguns desses dramas interiores são respondidos com a leitura da primeira carta de João. Não precisamos fugir ou nos esconder de Deus, mesmo em situação de pecado. “Deus é amor” (1Jo 4,8.16); portanto, ele nos ama e nos acolhe sempre, irrestritamente, para que também amemos uns aos outros.

A comunidade reunida para celebrar a ressurreição de Jesus amadurece a fé na experiência litúrgica. O Senhor continua a nos explicar as Escrituras e a nos enviar para testemunhar sua Palavra. A liturgia celebrada se completa na vivência dela no cotidiano da vida. O que ouvimos das Escrituras e rezamos na celebração tem de se tornar práxis na rotina de cada pessoa. Assim, a ressurreição não é mera abstração, mas realidade visibilizada nas histórias de cada um que se encontra com o Senhor.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Professor de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]