“Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos” (Lc 20,38)
I. Introdução geral
As leituras bíblicas deste domingo têm como tema central o triunfo da vida. Na I leitura, recordamos a doação da vida dos mártires do passado, que permaneceram firmes na fé diante da opressão promovida pelo império greco-helenista, e a certeza da ressurreição dos mortos. No evangelho, Jesus confirma que nosso Deus é o Deus da vida e, por isso, somos desafiados/as a nos manter firmes na esperança e na caridade, defendendo e promovendo a vida em nossa sociedade (II leitura).
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: 2Mc 7,1-2.9-14
2Mc 7 narra a opressão durante o período do império greco-helenista (séc. II a.c), no tempo da revolta dos Macabeus, e a resistência até a morte de uma mãe e seus sete filhos. O império grego dominava a Judeia e impunha sua cultura em detrimento da cultura e da religião judaicas. Assim, obrigava os judeus a desobedecer às prescrições presentes na Lei. Os judeus sabiam que, se cedessem aos gregos, perderiam aquilo que mantinha o povo unido, ou seja, sua identidade, suas tradições, sua cultura, sua religião. Enfim, a aliança que tinham estabelecido com o Deus de Israel. O texto escolhido para a liturgia é importante para nós, cristãos, porque, pela primeira vez, no AT, aparece a fé na ressurreição. Portanto, o texto não objetiva apresentar a realidade cruel e a frieza dos torturadores, mas reafirmar a convicção de que Deus é soberano e capaz de gerar vida, mesmo nesse contexto de morte.
Percebe-se uma processualidade na tortura e na confissão de fidelidade ao Deus de Israel e às tradições religiosas judaicas. O primeiro filho torturado confessa a lealdade às leis referentes à alimentação, as quais eram um elemento fundamental para a formação da identidade do povo (cf. 2Mc 7,1-2). Do segundo até o quarto, temos a profissão de fé na ressurreição do corpo, partindo da certeza de que Deus é o aliado do povo, é o Senhor da vida e o Criador de todo o universo.
2. Evangelho: Lc 20,27-38
Este trecho de Lc 20 traz a controvérsia entre Jesus e os saduceus, um dos grupos religiosos presentes na Palestina daquele tempo. Os saduceus se consideravam descendentes de Sadoc (cf. Ez 44,15). Esse grupo, constituído pelo chefe dos sacerdotes (sumo sacerdote), pelas famílias sacerdotais e pela aristocracia, detinha o poder político, religioso, econômico e jurídico. Desse modo, tinha poder sobre o Templo e sobre o sinédrio. Aceitava somente o Pentateuco e, por isso, não acreditava ser possível afirmar algo sobre a ressurreição dos mortos, uma vez que não via sinais dessa crença nos cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés.
Os saduceus, ao se aproximarem de Jesus, interrogam-no baseando-se na Lei do Levirato (lei do cunhado), descrita em Dt 25,5-10. Essa lei prescreve que, “se alguém tiver um irmão casado, e esse morrer sem filhos, o irmão deve casar-se com a viúva a fim de suscitar uma descendência para seu irmão”. A Lei do Levirato fazia parte das leis de solidariedade familiar e tinha como objetivo garantir a sobrevivência da viúva, que, dessa forma, teria direito à herança do marido falecido, dado que uma viúva sem filho não teria nenhum direito.
Os saduceus apresentam o caso de uma mulher que teve sete maridos, sem deixar descendência. A pergunta que fazem é: “Na ressurreição, ela será esposa de quem?”. Essa questão tinha como finalidade deslegitimar a crença na ressurreição dos mortos, visto que, para eles, a Lei do Levirato acenava a impossibilidade da ressurreição dos mortos, sendo a vida continuada nos descendentes. Outra possível interpretação baseia-se na crença de que a vida futura seria semelhante à vida terrena, contendo, porém, somente aspectos positivos. Jesus responde a essa questão em duas etapas. Primeiramente, afirma que o Reino de Deus, ou o mundo futuro, não segue os moldes de nossa sociedade. Aqueles que ressuscitarão serão como anjos, ou seja, terão seus olhos fixos no Deus da vida, pois poderão contemplar Aquele que dá a vida e também viver em comunhão com os irmãos e irmãs, como filhos e filhas amados pelo único Pai. Em segundo lugar, confirma a fé na ressurreição, baseando-se em Ex 3,6, um texto do Pentateuco que contém a revelação de Deus a Moisés e a confirmação de que ele é o Deus da vida. Assim, além de provar a ressurreição e refutar a crença dos saduceus, Jesus afirma que a preocupação dos saduceus não deve ser promover a morte, por meio de ações injustas e de um culto desvinculado da vida, mas o verdadeiro culto a Deus é promover a vida ao redor, pois Deus não é o Deus dos mortos, mas da vida, e vida em plenitude.
3. II leitura: 2Ts 2,16-3,5
A segunda carta aos Tessalonicenses é chamada deuteropaulina, ou seja, é atribuída a Paulo, mas não foi escrita por ele. Provavelmente foi escrita por um discípulo ou um líder da comunidade de Tessalônica que conheceu Paulo.
Nessa carta, transparece um contexto hostil à fé (cf. v. 2). Nesse sentido, ela está em sintonia com a I leitura e com o evangelho, mas também apresenta a esperança na fidelidade de Deus, que guarda a comunidade de todo mal.
O texto escolhido para a liturgia contém vários temas. Ele se inicia com um uma súplica (cf. 2,16-17), em seguida apresenta um pedido de oração (cf. 3,1-2) e conclui com a confiança na fidelidade de Deus e com uma bênção (cf. vv. 3-5). Apesar da diversidade temática, podemos dizer que todos os temas giram em torno da oração. O autor inicialmente pede que Deus possa animar a comunidade e confirmá-la em “toda boa ação e palavra” (vv. 16-17). O autor também pede que, na comunidade, uns rezem pelos outros, para que possam continuar anunciando a palavra da salvação, não obstante a perseguição e as tribulações, uma vez que nem todos acolheram essa palavra. Ele apresenta ainda a necessidade de que a Palavra seja não só rapidamente difundida (cf. Sl 147,15), mas também acolhida, para ser glorificada.
Ao concluir, pede a Deus que continue guiando a comunidade pelo caminho da caridade até a vinda definitiva do Reino, no fim dos tempos, e que os tessalonicenses possam sempre confiar no amor de Deus manifestado por meio do seu Filho, Jesus.
III. Pistas para reflexão
Esta liturgia aborda um tema fundamental para a fé cristã – a ressurreição dos mortos – e nos revela um Deus sempre vivo e dos vivos, o Deus criador e comprometido com a vida (I leitura e evangelho). O texto da I leitura apresenta-nos a vitória da vida e nos indica que a ressurreição não é um fato apenas individual, mas também coletivo. No evangelho, Lucas nos ajuda a compreender que a ressurreição dos mortos é um evento que caracteriza o fim dos tempos, mas é também um critério, uma certeza que deve orientar nossas opções nas atividades cotidianas na história. Portanto, somos desafiados a ser testemunhas, na sociedade e no mundo, desse Deus que não é Deus dos mortos, mas dos vivos (cf. Lc 20,38), e a continuar anunciando a palavra da salvação (II leitura), para que seja conhecida, amada, acolhida e testemunhada.
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.