Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 62-64
31º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 31 de outubro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
Amor a Deus e ao próximo: inseparáveis
I. INTRODUÇÃO GERAL O tema central da liturgia deste domingo é o primado do amor sobre todos os mandamentos, compreendido em suas duas vertentes inseparáveis: amor a Deus e ao próximo, respectivamente, como se fossem as duas faces da mesma moeda. Isso é evidenciado, sobretudo, pelo Evangelho, no qual Jesus responde ao questionamento de um mestre da Lei sobre o primeiro dos mandamentos, afirmando que o primeiro é amar intensamente a Deus e o segundo é amar o próximo, sendo ambos inseparáveis. A base da resposta de Jesus está na primeira leitura, tirada do livro do Deuteronômio, precisamente da seção correspondente ao credo fundamental de Israel, que propõe o amor incondicional a Deus, associado à escuta da sua Palavra. A segunda leitura, ao tratar do sacerdócio de Jesus, recorda sua oferta de si mesmo, exemplo máximo de quem viveu plenamente o amor a Deus, seu Pai, e ao próximo – a humanidade pecadora –, por quem se fez solidário.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Dt 6,2-6) A primeira leitura é tirada do livro do Deuteronômio, cujo nome significa literalmente “segunda lei”. Trata-se do último livro do Pentateuco, composto de três discursos atribuídos a Moisés, como artifício literário, a fim de conferir autoridade ao escrito. Conforme a dinâmica narrativa do livro, Israel se encontra nas planícies de Moab, já nos preparativos finais para a entrada na Terra Prometida. Em tom de despedida, pouco antes de morrer, o líder Moisés dirige suas últimas palavras a Israel, recapitulando os aspectos essenciais da Lei e exortando-o a permanecer fiel ao Senhor. Segundo a teologia deuteronomista, a fidelidade de Israel é condição fundamental para o cumprimento das principais promessas de Deus: bênção, descendência e terra. Por isso, o futuro exílio, que significa a perda da terra, será interpretado como consequência da infidelidade. O trecho lido nesta liturgia pertence ao núcleo fundamental do segundo discurso de Moisés (Dt 4,44-28,68), que, por sinal, é o mais importante dos três.
O texto começa com Moisés exortando Israel a temer o Senhor (v. 2), o que não significa ter medo, obviamente, mas reverência, reconhecimento da sua grandeza e adesão total ao seu projeto de vida. Em contrapartida, o fruto do temor a Deus é a vida em abundância, compreendida como descendência, fecundidade e longevidade. Para alcançar isso, Israel precisa ouvir e pôr em prática a vontade do Senhor, expressa nos seus mandamentos e leis (v. 3). Agindo dessa maneira, Israel será feliz e fecundo na Terra Prometida.
A sequência da leitura (v. 4-6) compreende a primeira parte do credo fundamental de Israel, conhecido como “Shemá Israel” (Dt 6,4-9). Até hoje, esse texto faz parte da oração diária dos judeus, recitada pelo menos duas vezes ao dia. Novamente, é enfatizado o convite à escuta, com a afirmação de Deus como o único Senhor (v. 4), a verdade essencial do monoteísmo bíblico. Por ser único, é ao Senhor que se deve amar com toda a intensidade do ser: coração, alma e forças (v. 5); isso quer dizer que o amor a Deus envolve a interioridade e o agir humano. Temos aqui uma espécie de comentário atualizado ao primeiro mandamento do Decálogo (Ex 20,2-6; Dt 6,6-10). Este é o ensinamento essencial que Israel não poderá esquecer e deverá ter eternamente gravado no coração, com repercussão no agir (v. 6): o amor como o mandamento maior, fruto do temor e consequência da escuta da Palavra do Senhor.
2. II leitura (Hb 7,23-28) A segunda leitura ainda é tirada da carta aos Hebreus, precisamente da segunda parte (Hb 4,14-10,31), que tem como tema central o sacerdócio de Jesus Cristo. Como já foi recordado em outras ocasiões, os destinatários da carta, cristãos de origem predominantemente judaica, tinham dificuldade de viver a fé desvinculada do templo de Jerusalém e do seu sacerdócio. Por isso, o autor insiste tanto em apresentar Jesus como sumo sacerdote superior aos sacerdotes da Antiga Aliança. O texto lido neste domingo reflete essa situação. Por meio de antíteses, o autor apresenta a superioridade do sacerdócio de Cristo em relação aos sacerdotes da Antiga Aliança ou do templo.
A primeira antítese contrapõe a inconstância e a descontinuidade dos sacerdotes da Antiga Aliança, por causa da morte, à eternidade de Jesus, o Ressuscitado (v. 23-25). A segunda antítese contrapõe a santidade de Jesus à condição de pecado dos sacerdotes do templo (v. 26-27). Com efeito, santo e inocente, Jesus não precisou oferecer sacrifícios pelos seus pecados, pois não os tinha; ofereceu a si mesmo como sacrifício único e perfeito em favor de todas as pessoas, ao contrário dos sacerdotes do templo, que deveriam oferecer sacrifícios por si mesmos e pelo povo. A última antítese contrapõe a fragilidade do sacerdócio antigo, constituído pela Lei e, portanto, revogável, à perfeição do sacerdócio de Jesus, instituído por uma palavra de juramento irrevogável, posterior à Lei e, por isso, superior.
3. Evangelho (Mc 12,28b-34) No Evangelho desta liturgia, Jesus já se encontra em Jerusalém, após o difícil caminho com seus discípulos, que relutavam em aceitar sua messianidade, marcada pela disposição de amar e servir até as últimas consequências, a ponto de dar a própria vida. Se, no caminho, seus principais opositores foram os próprios discípulos, em Jerusalém serão as lideranças religiosas e políticas. Por isso, depois de uma entrada triunfante na cidade (Mc 11,1-11), logo surgiram os conflitos com as classes dirigentes e grupos influentes, começando pela denúncia contra o templo, transformado em covil de ladrões (Mc 11,15-19).
Durante sua curta estadia na capital, Jesus ensinava diariamente no templo. Enquanto isso, representantes dos principais grupos e movimentos político-religiosos faziam-lhe perguntas maliciosas, com o objetivo de vê-lo cair em contradição e, assim, antecipar sua condenação. O texto deste domingo narra uma discussão sobre a Lei, embora o interlocutor desse episódio não seja malicioso, como os anteriores (Mc 12,13-27). Trata-se de um mestre da Lei, que fez a seguinte pergunta: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” (v. 28). É pergunta muito significativa e, ao mesmo tempo, complexa; em torno dela, giravam muitos debates nos círculos rabínicos da época. É significativa porque visa esclarecer qual mandamento deve ser observado com maior fidelidade; é complexa porque os rabinos tinham catalogado 613 preceitos na Lei – portanto, era difícil escolher um entre tantos. Entre os fariseus, por exemplo, predominava a opinião de que o mandamento mais importante era o preceito sabático, pois alegavam que o próprio Deus tinha guardado esse mandamento (Gn 2,2-3; Ex 20,8-11; Dt 5,12-15). Outros grupos consideravam todos os mandamentos iguais em importância, sem atribuir-lhes uma hierarquia.
Como sempre, a resposta de Jesus vai além do que lhe é perguntado. Para isso, ele recorre a duas passagens do Antigo Testamento (Dt 6,4-5 e Lv 19,38) e formula sua própria síntese, apresentando juntos o primeiro e o segundo mandamentos, como um projeto de vida que revela seu próprio jeito de viver. Assim, propõe o amor a Deus com toda a intensidade do ser da pessoa (v. 29-30) – recorrendo ao núcleo fundamental da fé israelita –, em paralelo ao amor ao próximo como a si mesmo (v. 31), como se fossem as duas faces de uma mesma moeda. O mandamento por excelência é o amor; e este só é verdadeiro quando é destinado simultaneamente a Deus e ao próximo. Talvez essa seja a maior novidade de todo o seu ensinamento.
Reconhecendo a maravilha da resposta de Jesus (v. 32), o mestre da Lei também entra na sua dinâmica e acrescenta uma novidade, não como invenção pessoal, mas como interpretação da mensagem profética (v. 33): amar a Deus e ao próximo, de forma inseparável, é superior a qualquer holocausto e sacrifício (Os 6,6). Diante dessa resposta, Jesus reconhece a sensatez do mestre da Lei, declarando que ele não estava longe do Reino de Deus (v. 34), ou seja, assentindo que ele tinha dado passos importantes para um possível seguimento no futuro. Essa declaração final de Jesus se torna emblemática, porque esse é um dos seus poucos encontros e debates com representantes da religião oficial que não terminam em conflito. Ademais, o episódio em si é também mais um passo importante da catequese de Marcos para sua comunidade: fora do grupo, há pessoas mais dispostas e abertas aos ensinamentos de Jesus do que seus próprios discípulos.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Refletir sobre as leituras, contextualizando-as e mostrando a relação entre elas. Enfatizar bastante a inseparabilidade entre o amor a Deus e o amor ao próximo, como elementos essenciais da fé cristã. Recordar o sacerdócio de Jesus Cristo, com seu amor incondicional ao Pai e à humanidade, como paradigma do agir cristão no mundo. Recordar o dia nacional da juventude, rezando pelos jovens da comunidade, motivando-os a se organizar em grupos e pastorais, enaltecendo a força e o potencial transformador próprios da juventude.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]