Publicado em setembro-outubro de 2022 - ano 63 - número 347 - pág.: 59-62
30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 23 de outubro
Por Marcus Mareano*
Deus exalta os humilhados
I. INTRODUÇÃO GERAL
O tema da liturgia deste domingo aparece constantemente nas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O Deus de Israel se faz mais próximo dos humildes e sofredores. Assim também foi a vida terrena de Jesus, que preferia as periferias aos centros urbanos, os pecadores aos justificados, os pequeninos de coração aberto aos sábios e entendidos que não compreendiam sua mensagem.
O texto da primeira leitura já mostra como Deus reage à oração humana. Ele não se deixa subornar pelos injustos e ouve os clamores dos vulneráveis da sociedade (órfão, viúva – Eclo 35,17). O Evangelho mostra o mesmo em uma parábola contada por Jesus: o publicano volta justificado, por se reconhecer necessitado de Deus (Lc 28,14). A segunda leitura apresenta um testamento de Paulo, que, embora passe por inúmeros desafios, experimenta o auxílio divino.
Colocarmo-nos diante de Deus na oração implica termos coragem para encarar nossa própria realidade frágil e pecadora. Não necessitamos das máscaras sociais nem precisamos nos apresentar com nossas boas obras. Deus nos conhece melhor do que nós mesmos e vem ao nosso encontro por amor, e não por nosso mérito. A soberba e a vai- dade fecham nosso interior ao amor de Deus.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Eclo 35,15b-17.20-22a)
O livro do Sirácida, ou Eclesiástico, traz uma série de reflexões do século II a.C. O autor viveu em um tempo no qual os judeus de Jerusalém possuíam boas relações com seus governantes egípcios, os primeiros Ptolomeus (sucessores de Alexandre Magno no Egito), que patrocinaram a tradução da Bíblia para o grego.
O trecho da primeira leitura se situa em uma coletânea de máximas a respeito de diferentes temas de ensino para os judeus. Entre tantos, há o assunto do sacrifício aceito ou rejeitado por Deus. Será que Deus acolhe, do mesmo modo, os opressores e os sofredores?
O verdadeiro sacrifício a Deus se baseia na justiça. A injustiça designa uma corrupção do culto. Assim, Deus não se deixa comprar com presentes, como se valesse com ele a relação de troca, comum entre humanos. Ele não faz acepção de pessoas (v. 15b; Dt 10,17). Deus ouve os injustiçados e age em favor dos órfãos e viúvas (indefesos da sociedade – Ex 22,21-23).
Se a primeira parte da leitura apresenta mais a reação de Deus (v. 15-17), a outra parte (v. 20-22) destaca a oração em si mesma. Ela chegará até Deus se for humilde e verdadeira. Por conseguinte, Deus agirá com justiça em favor dos desvalidos (v. 22).
A relação com Deus na oração se caracteriza pela verdade que ele conhece do ser humano. Se entre as pessoas pode valer a imagem, os bens, os feitos e o status social, nada disso adianta para Deus. Ele quer nosso ser disponível para acolher seu amor verdadeiramente.
2. II leitura (2Tm 4,6-8.16-18)
A segunda leitura continua o texto da segunda carta a Timóteo. A passagem se assemelha a um testamento de despedida de Paulo. Embora se questione sua autoria, o texto carrega as características e o ambiente de formação do apóstolo.
Primeiramente, lemos a imagem do sacrifício (v. 6; Hb 10,10) e, em seguida, os temas da luta e da competição esportiva (v. 7; 1Tm 6,12), concernentes ao desfecho de uma vida oferecida em prol da evangelização. Por conseguinte, espera-se um “prêmio”, uma coroa, como a que os competidores ganhavam (v. 8). No entanto, o galardão não é material nem passageiro, mas espiritual e eterno, e é recebido de Cristo.
A segunda parte da passagem demonstra a sensibilidade para o auxílio divino em meio às intempéries da vida cristã (v. 16-18). Mesmo que faltasse a presença dos irmãos na sua defesa (v. 16), o Senhor veio em auxílio de Paulo e lhe deu força para que a proclamação da salvação fosse ouvida por todas as nações. Da mesma forma, o Senhor o livrará dos que lhe queriam mal. A Deus, a glória eternamente, pois continua a nos livrar dos males e a nos salvar em sua misericórdia.
O texto nos faz imaginar o fim de vida de um discípulo de Jesus. Não se olha tanto para as provas passadas, mas sim para a presença do Senhor em meio a todas elas. Ademais, tem-se reverência por essa ação divina. Assim, observamos quanto vale a pena seguir Jesus. Não somente por um “prêmio” prometido, mas também por um amor constante, que se experimenta na realidade vivida. Que tenhamos esses sentimentos de gratidão e reconhecimento da ação de Deus.
3. Evangelho (Lc 18,9-14)
A cena da parábola se compõe de dois personagens, que vão orar no templo. O fariseu e o publicano, que não têm nome próprio, apenas se apresentam diante de Deus com suas orações, e, com base nelas, percebemos quem é cada um deles. Suas identidades se revelam pelo modo de orar.
O fariseu é figura representativa do judeu observante, escrupulosamente fiel aos preceitos da Lei mosaica. O publicano é um coletor de impostos e tributos, frequentemente considerado como um protótipo de pecador (Lc 5,30; 7,34; 15,1; 19,2-7). Cada um desses personagens representa seu grupo.
A introdução da parábola (v. 9) está construída de modo a descrever a atitude dos interlocutores de Jesus. O desenvolvimento (v. 10-13) apresenta inicialmente dois homens que fazem o mesmo percurso de ida (v. 10), mas, na volta, recebem julgamentos diferentes de Jesus (v. 14a). Há duas subpartes: a oração do fariseu (v. 11-12) e a do publicano (v. 13); a ação de graças de um se opõe à súplica do outro, embora ambas sejam introduzidas pelo mesmo vocativo, “ó Deus” (v. 11.13).
O fariseu, de pé, dirige-se a Deus longamente, comparando-se com o resto das pessoas e com o publicano, contrapondo suas boas ações às más ações dos outros. O publicano não faz nenhuma comparação; fala brevemente, não olha para os céus e bate no peito.
Os dois homens, inversamente qualificados quanto ao aspecto religioso, sobem ao templo. A oração do primeiro é extensamente descrita; ele tem uma atitude religiosa de proximidade de Deus, no entanto demonstra confiar primeiramente em si, sendo seu agradecimento a Deus feito com base na comparação com outras pessoas e no julgamento delas ao seu modo. Assim fazendo, recorda as práticas rigorosas da Lei (jejum e dízimo). O fato é que nenhuma de suas palavras é de reverência a Deus e reconhecimento humilde de si mesmo.
A oração do segundo é inversa à do primeiro. Humilha-se diante de Deus, pois se reconhece diante de alguém que é mais do que ele, a quem nem sequer ousa levantar os olhos, mas no qual confia a ponto de lhe dizer: “Sê favorável a mim”. Não ficou de pé para ser visto nem usou vã repetições ou multiplicidade de palavras, mas, no seu segredo, dirigiu-se àquele que o ouviu e o recompensou (Mt 6,5-6).
Por fim, o retorno enseja uma conclusão que escandaliza os religiosos escrupulosos: o ignorado é justificado, mas não o visivelmente piedoso. Aquele que se exalta experimenta a humilhação, enquanto o que se humilha (sinal do reconhecimento de si diante de Deus) experimenta o enaltecimento, pois se encontra com Deus e se une àquele que o acolhe.
A oração do fariseu e a do publicano descrevem cada um dos personagens, que recebem, no final, a recompensa: “este (o publicano) voltou para casa justificado” (v. 14), enquanto do outro nada se fala.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
No Evangelho de Lucas, os discípulos já haviam pedido que o Mestre os ensinasse a orar (Lc 11,1). Jesus, desta vez, ensina-os por meio de uma parábola que trata da maneira como se deve orar e se postar diante de Deus.
Os interlocutores de Jesus se sentiam justos, possivelmente por cumprirem os preceitos da Lei, e desconsideravam os outros, sobretudo os mais pecadores. Essa é atitude inversa da do Deus revelado em Jesus Cristo, que é misericordioso e acolhedor dos mais pecadores. Lucas mostra esse aspecto muitas vezes no seu Evangelho, e o percebemos ainda na primeira leitura e na vida pessoal de Paulo, retratada na segunda carta a Timóteo.
Esse ensinamento de Jesus sobre a oração corresponde à sua vida de reconhecimento de si, diante de Deus, e à sua íntima e profunda união com esse que ele chamava de Pai. Consequentemente, tal realidade o impulsionava a encontrar no ser humano, imagem e semelhança de Deus, seu valor maior, que não são as práticas religiosas legais e exteriores, mas o interior, espaço de encontro com a transcendência.
Assim, tal como Jesus fala por meio dessa parábola, nossa oração é verdadeira quando, diante de Deus, percebemos nossa verdade e rejeitamos as imagens que fazemos e as que os outros fazem de nós mesmos. Só Deus diz melhor quem somos, porque nos conhece melhor do que nós mesmos.
Enfim, em cada um de nós, há um fariseu e um publicano. Quando verdadeiramente estamos diante de Deus, percebemos nosso “publicanismo” e podemos ser justificados. Quando nos empolgamos com as falsas imagens que temos de nós mesmos e com as práticas religiosas externas, mergulhamos no farisaísmo, fechado à oferta amorosa de Deus.
Marcus Mareano*
*é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]