Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 48-51
30 de março – 4º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Provai e vede
quão suave é o Senhor”
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo da alegria destaca a misericórdia, o rosto de Deus em Cristo e o semblante de renovação que este tempo simboliza, como significou para a primeira leitura e para o Evangelho. A Igreja nos brinda com textos lindos e, ao mesmo tempo, significativos. Deus ama seu povo e lhe concede uma segunda chance; infinitas são as oportunidades que ele nos dá, pois nos ama. O Evangelho lucano destaca a terceira parábola da misericórdia, que coroa o tríptico da misericórdia em Lucas com um final alegre, pois a alegria é um dos sentimentos e experiências que invadem o coração do cristão, tema marcadamente lucano. A primeira leitura evidencia em Josué, líder carismático do povo, um paradigma de renovação. O ato de o povo comer dos frutos da terra é sinal de superação do passado recente, vivido na travessia, experiência traumática de dor e dissabores. A chegada a Guilgal e a celebração da Páscoa mostram que Páscoa é passagem, um momento transitório, e celebrar em Jericó e lá permanecer é sinal de recomeço. A segunda leitura reforça que Cristo é o sentido da vida do cristão: quem está nele é nova criatura, as coisas antigas já se passaram, pois Cristo é ministro supremo da reconciliação. No Evangelho de Lucas, a reconciliação constitui o tema central, sendo a parábola do Pai misericordioso sinal de que todos somos chamados a nos reconciliarmos com Deus, que é suave e bondoso.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Js 5,9a.10-12)
Josué é protagonista secundário do livro intitulado com seu nome. O protagonista primeiro é Deus, que realiza na história feitos inesquecíveis, marcados de forma indelével na memória de seu povo. Deus mesmo diz a Josué (v. 9a): “Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito”. Trata-se de uma ignomínia, de um insulto vivido durante 430 anos, tempo em que o povo permaneceu no Egito, sendo escravo e desprezado. Essa carga histórica e negativa, Deus a livrará das costas e da consciência de seu povo. Ele o ama e o quer livre para servi-lo. O v. 10 situa o povo acampado em Guilgal, a leste de Jericó, lugar onde foi erigido um monumento de pedra em comemoração da passagem dos israelitas pelo rio Jordão (Js 4,20).
Guilgal tornou-se um santuário e serviu como base para a conquista da Palestina (Jz 2,1; 1Sm 10,8; 13,8-15). Os profetas, contudo, rejeitaram-no, por ter-se tornado um centro de idolatria (Am 4,4; Os 4,15; Mq 6,5). Havia outra Guilgal, nas montanhas de Efraim, perto de Betel (Dt 11,30; 2Rs 2,1). Lá celebraram a Pessach, a Páscoa, no dia quatorze do mês. O v. 11 afirma que, no dia seguinte, comeram produtos da terra e ázimos, pães sem fermento – matzah, em hebraico –, e ainda grãos tostados naquele mesmo dia. O v. 12 conclui dizendo que, quando comeram produtos da terra, o maná cessou de cair. O maná era dado cotidianamente por Deus, como dom de sua providência. Agora a maior providência são os dons da terra, da liberdade, da graça, do amor misericordioso de Deus. Naquele ano, o povo comeu do fruto da terra de Canaã.
O teólogo por trás desse texto, ligado à teologia deuteronomista, quer dizer nas entrelinhas que, se o povo se mantiver fiel, poderá fazer sua terra gerar vida, pois é este o dom de Deus: conceder ao povo a terra da liberdade, da bondade e do amor.
2. II leitura (2Cor 5,17-21)
A segunda leitura estabelece conexão tanto com a primeira leitura, em relação à liberdade verdadeira, como com o Evangelho, que traduz, nas palavras de Jesus Cristo, a ação misericordiosa de Deus, sempre pronto para acolher e amar seu povo, agora simbolizado no filho pródigo, reintroduzindo-o em sua morada eterna, a qual será habitada por nós se vivermos, como esse filho, a reconciliação para a qual o Senhor nos destinou. Essa reconciliação começa com metanoia, com a mudança de pensamento, de atitudes.
Para Paulo, a reconciliação consiste na nova realidade vivida e experimentada à luz da nova criaturalidade, só alcançada por quem está em Cristo (v. 17). Viver em Cristo constitui o “novo estado de vida”, a nova condição, a realidade renovada e renovadora. Toda realidade, tanto humana como cósmica, é renovada: o mundo antigo desapareceu. Para Paulo (v. 18), toda essa nova realidade nos vem de Cristo, que reconciliou em si todas as coisas e conferiu a seu apóstolo o ministério da reconciliação, do perdão e da paz.
O v. 19 é o ponto de convergência do antigo e do novo: “em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens sua falta”. Os v. 20-21 podem ser considerados conclusivos: “Somos embaixadores de Cristo” e “Deus exorta por nós mesmos [...]: deixai-vos reconciliar com Deus”; e ainda: “Aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós”. Para Paulo, a morte era considerada remédio para o pecado e, desse modo, Cristo, morrendo por nós, seria considerado um pecador, sem mesmo ter vivido essa nossa condição, por acidente, de pecado. O termo final do v. 21 é que, em Cristo, somos todos justificados, ou seja, alcançamos a justiça de Deus (em grego, dikaiosyne tou Theou).
3. Evangelho (Lc 15,1-3.11-32)
A narrativa do Evangelho deste dia constitui uma matéria redacional própria de Lucas, não encontrada em nenhum outro Evangelho sinótico nem no Quarto Evangelho (Jo). O fio condutor da parábola está ligado à temática da misericórdia de Deus para com a humanidade, traduzida no binômio perda e encontro, que as outras duas primeiras parábolas compreendem (Lc 15,4-7: ovelha perdida/encontrada; 8-10: moeda perdida/encontrada). Em essência, o que esse relato nos provoca é um desejo ardente de voltarmos nossa vida para Deus, nossa origem, aquele que nos fortalece e é nosso destino (escatológico), por ser um Pai pleno de misericórdia (em grego, splanchiniste).
As três parábolas da misericórdia estão alinhavadas pelos v. 1-2, que contextualizam quem são os ouvintes de Jesus, sejam os próximos a ele, sejam os que lhe são antipáticos. Há um misto sentimento de hostilidade e de hospitalidade que se contrapõe nesse cenário: os publicanos e pecadores se aproximam de Jesus para escutá-lo (v. 1) e, em contrapartida, os fariseus e mestres da Lei só sabem criticá-lo (v. 2): “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”.
O v. 3 afirma que Jesus contou a parábola, e o v. 11 a inicia, anunciando que um homem tinha dois filhos. Então três são os principais personagens dessa parábola: o primogênito, o irmão caçula e o pai. O v. 12 apresenta um problema, um nó: o filho mais novo demanda sua parte da herança ao pai, que, então, dividiu os bens entre eles. Não é um cenário tipicamente hebraico, pois, para o mundo semita, o filho primogênito é sempre aquele que, após a morte de seu pai, herda grande parte dos espólios. Trata-se de uma parábola, e o poder criativo é daquele que a propõe, o narrador, que, nesse exato momento, é Jesus. O v. 13 afirma que, dias depois, esse filho jovem juntou o que era seu e foi para um lugar distante. Lá ele esbanjou tudo em uma vida desregrada (em grego, zon asótos), entendida como pródiga, de gastos desenfreados. O v. 14 frisa que, depois de ter gasto tudo o que possuía, houve fome em sua região, e ele começou a sentir fome, que em grego é o termo ustereisthai, traduzido por necessidade. A raiz desse termo é usterei, donde vem o termo “histeria”, traduzido por “uma grande falta”.
Os v. 15-16 expressam um problema, um nó, o que o filho mais novo teve de fazer para sanar tal crise: procurar emprego, lidar com porcos (atividade proibida para um judeu), a ponto de cogitar comer da comida dada a eles, mas até isso lhe era negado. Os v. 17-19 apresentam uma ação transformadora: em resumo, lembrou-se de como os servos de seu pai eram criados, caiu em si (tomou consciência de seu erro: ter-se perdido) e propôs-se voltar (deixar-se reencontrar). Ele voltará e dirá ao pai que já não merece ser seu filho, deixando ao pai uma decisão: o reconhecimento da paternidade.
Os v. 20-21 tornam-se o clímax da narrativa: ele volta e o pai o avista de longe, sente compaixão (splanchinistei) e corre (atitude atípica para um homem maior de idade). O filho, em seguida, diz o porquê de seu retorno: ter pecado contra Deus e contra seu pai. Ele mesmo se julga indigno de filiação. O desenlace da narrativa é imediato: o pai concede ao filho uma resposta não verbal, expressa em atitudes (v. 22): túnica, anel, sandálias novas, novilho gordo para a festa. Em seguida, explica aos empregados (v. 24): “porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado”, começando a festa.
Os v. 25-30 reapresentam um nó: o ciúme do filho primogênito, que se indigna com tal situação, fica com raiva e não quer entrar para a festa (v. 28), embora o pai insistisse com ele. O diálogo é intenso e difícil: na verdade, é mais esse filho o acusador do caçula, a ponto de dizer que ele teria esbanjado seus bens com as prostitutas (v. 30). O pai, em sua autoridade, conclui a cena, levando-o a entender sua compaixão: em primeiro lugar, ele está sempre com seu pai; além disso, deve saber que tudo o que é do pai é de seu primogênito também (v. 31-32). É deveras importante comemorar, pois esse “teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (repetição do v. 24). A reticência da compaixão vence a disputa de braço com o legalismo endurecido do filho primogênito e o seu sentimento de não pertença ao pai. A misericórdia, nessa parábola, é a graça do amor de Deus, que nos atrai novamente para ele: de perdidos a encontrados, de mortos a ressuscitados.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Levar a comunidade a compreender que o pecado é realidade que acidentalmente faz parte de nossa condição: somos inclinados ao pecado, porém a graça salvífica de Deus é muito superior. “Pecar é humano, perdoar é divino.” Perceber que a comunidade cristã, a Igreja, é embaixadora de Cristo, que veio trazer a salvação, e não a condenação à humanidade. Cabe-nos acolher os que pecam e ajudá-los a seguir no caminho certo, pois também nós nos desviamos do caminho e outros já agiram com misericórdia para conosco. Por fim, providenciar, em um momento da semana, um momento penitencial, seja para confissões sacramentais, seja para celebrações penitenciais, que ajudem no processo de conversão próprio deste tempo de exercícios quaresmais.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]