Roteiros homiléticos

3 de agosto – 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM

O DOM DO PÃO

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia de hoje tem como acento principal o sinal do pão. Leva-nos a ver neste sinal uma revelação da “compaixão”, do terno amor de Deus para conosco; amor este que se revelou plenamente no dom de seu Filho, do qual o pão se tornou o sinal sacramental. Esse sentido “místico”, porém, faz surgir também um sentido prático. Como realização escatológica da vontade de Deus, o sinal do pão tem sentido messiânico – o de “multiplicar o pão” –, e a comunidade escatológica de Jesus, que é a Igreja, não pode deixar de unir forças para enfrentar o problema da fome, no espírito de Cristo, não por cálculo de poder político, mas por verdadeira “com-paixão”. Isso será certamente sinal da presença de Deus e de seu Reino.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Is 55,1-3)

Ouvimos primeiro o convite para o banquete messiânico segundo o capítulo 55 de Isaías. Esse capítulo é a conclusão do Segundo Isaías (Is 40-55), que contém os textos da “tradição isaiana” compostos no fim do exílio babilônico (538 a.C.). O povo no exílio babilônico é representado como faminto e sedento, exatamente como o povo daquele outro “exílio” que foi o do Egito, oitocentos anos antes. A fome e sede vividas no êxodo do Egito tornaram-se símbolos da fome e sede do Deus vivo e próximo. Assim também, no fim do exílio, o povo poderia cair na tentação de se satisfazer com a vida à qual se acomodara na Babilônia e com os deuses babilônicos (Is 55,2). Mas nenhum ídolo feito e pago com ouro ou prata pode aliviar a sede que o ser humano tem do Deus vivo (também hoje). Para os judeus que voltam do exílio babilônico, o texto traz o convite de Deus para se saciarem com o dom de sua instrução, na Lei e no culto verdadeiro, dom que não exige dinheiro para comprar, como exigem as idolatrias do mundo. 2. Evangelho (Mt 14,13-21) O evangelho narra a primeira multiplicação dos pães segundo Mateus. O conjunto Mt 14,13-16,12 é conhecido como a “seção do pão”. Comporta as duas multiplicações do pão (14,13-21e 15,32-39), além de outros textos que tratam do pão (cf. 15,32-39; 16,9-12). A primeira multiplicação do pão (evangelho de hoje) ajuda o discípulo iniciado no Reino de Deus pelas parábolas (cf. Mt 13,1-52) a entender mais profundamente o mistério de Deus que se revela em Jesus. A multidão procura Jesus, que lhes dispensa os sinais do Reino (curas) e sua palavra. Mas depois de tanto falar, será que Jesus vai mandar o povo embora com fome? Impossível. “Vós, dai-lhes de comer”, diz Jesus. Confia a seus discípulos a missão de não deixar o povo com sua fome. Repartindo-se o pão, ele não faltará. Isso vale tanto para o pão da Palavra quanto para o pão material. Na multiplicação dos pães, não é a façanha de Jesus que está no centro da atenção, mas sua própria pessoa: ele é o Messias e Enviado do Pai. Depois de sua farta pregação na região da Galileia (cf. Mt 5-13), terminada com inquietante referência ao juízo (cf. 13,49-50), defrontamo-nos com o mistério da incredulidade em várias formas: na pátria de Jesus (cf. 13,53-58) e na figura de Herodes, intrigado com Jesus, julgando ser ele João Batista redivivo (cf. 14,1-2), pois o tinha mandado executar (cf. 14,3-12). Diante dessa incredulidade, Jesus muda de área, vai para o deserto (cf. 14,13), o lugar preferido para Deus encontrar sua gente. Aí afluem as multidões de pobres e humildes, os prediletos do Reino, e o Enviado de Deus, movido por “compaixão” – a qualidade divina por excelência (cf. 14,14) –, cura todos os seus enfermos. Quando, ao entardecer, chega a hora da refeição, Jesus realiza o que a primeira leitura (Is 55,1-3) prefigurou: o banquete que não exige riqueza. Aos discípulos, que querem mandar a turma embora, diz que eles mesmos lhes deem de comer – implicando-os assim, misteriosamente, na sua missão (como já fizera quando os chamou, cf. Mt 10,1; 11º domingo do tempo comum): nas suas mãos, enquanto distribuem, multiplica-se a humilde comida de uns pãezinhos e peixes até a fartura messiânica. A “compaixão”, a cura do povo, o deserto, a lembrança do alimento que Deus deu aos antigos israelitas, o convite de Is 55 para ver nisso uma nova aliança: eis alguns elementos que caracterizam esta cena como uma manifestação messiânica de Jesus. Para os cristãos imbuídos do espírito da liturgia, é uma prefiguração da ceia da nova aliança, celebrada na eucaristia.

3. II leitura (Rm 8,35.37-39)

A segunda leitura é a conclusão da primeira parte da carta aos Romanos: a exposição sobre a salvação pela graça de Deus e a fé em Jesus Cristo. “Nada nos pode separar do amor de Cristo.” Todos precisamos de redenção (cf. Rm 1,18-3,20), e ela nos é dada em Cristo, que nos introduz na vida do Espírito (cf. Rm 3,21-8,39). Ao fim desta seção, Paulo proclama a certeza de vencer os poderes adversários: estes nada conseguirão! A certeza que Paulo tem não vem de “provas” (da razão ou das Escrituras); é a convicção de quem já a experimenta (v. 38). Ao terminar a primeira parte de sua carta, Paulo faz efusiva proclamação de fé e confiança na obra de Deus em Jesus Cristo. Se Deus é conosco (pois nos deu seu próprio Filho), quem será contra nós, quem nos condenará (Rm 8,31-34)? A leitura de hoje se inicia com a exclamação: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (v. 35). “Amor de Cristo” significa o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo (cf. v. 39), portanto, um amor que vence o mundo (cf. v. 37; 1Jo 5,1-5). Não se trata de amor sentimental. Paulo expressa o mesmo que escreve João: “Nós acreditamos no amor” (1Jo 4,16). Paulo está polemizando com os que situam a salvação em coisas que não são o amor de Deus manifestado em Jesus Cristo: o legalismo farisaico, a cultura helenística e tantos outros pretensos caminhos da salvação. Não, exclama Paulo com paixão: o que nos salvou é o amor que Deus nos mostrou em Jesus Cristo (cf. Rm 5,1-11), e este amor não o largamos, ou melhor, ele não nos larga! Pois esse amor não é “criatura” (está ausente no elenco das criaturas nos v. 38-39a, que inclui até os anjos), é graça de Deus mesmo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO: o Reino de Deus e o pão do povo

No evangelho de hoje, Jesus se retira de sua cidade para outro lugar à beira do lago, e as multidões saem à sua procura. Movido de compaixão, Jesus cura os doentes no meio da multidão. Depois, não quer que o povo vá embora com fome. Manda que os discípulos, com sua pequena reserva de cinco pães e dois peixes, alimentem a multidão. E saciam os cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças... Trata-se de um gesto profético de Jesus. O profeta Isaías tinha anunciado pão de graça (1ª leitura): o pão da sabedoria, da palavra, da instrução da Lei. Jesus “põe em prática” essa palavra profética, acrescentando também o pão material. A multiplicação do pão material é sinal de que Jesus nos alimenta com o pão que vem de Deus, sua palavra, a mensagem do Reino. É um gesto que inaugura o Reino. O pão material é o primeiro fruto do pão da Palavra... Se a Igreja prega a Palavra, cabe-lhe também realizar gestos proféticos. Existem bastantes famintos para que se justifique um novo “sinal do pão”, que realize, por um exemplo material, algo do Reino anunciado por Jesus. Não podemos falar do amor de Deus se não realizamos a justiça material (e vital) para a multidão, assim como Jesus dela teve “compaixão”. A fome de Deus será sempre o mais importante, mas a fome do pão é o mais urgente. O pão material não é o dom último, mas é um “aperitivo” do Reino. (Por isso devemos atentar para que ele tenha o gosto do Reino e não do materialismo.) Na multiplicação dos pães, Jesus envolveu os discípulos em sua atuação; são eles que devem dar de comer à multidão. Seu lanche é insuficiente; mas, enquanto o repartem, Jesus faz que seja até mais do que suficiente. “Vós mesmos, dai-lhes de comer...” Não devemos aguardar até que o pão caia do céu. Devemos começar a repartir o que temos (economia da partilha versus economia de monopólio e de capitalização). Assim falaremos do Reino pelas nossas ações. No pai-nosso, rezamos pedindo “o pão de cada dia”. Tudo é dom de Deus, também esta coisa mais elementar que é o pão de cada dia. Seu amor seria questionável se Deus não nos desse o necessário para viver. Mas quem deve distribuir esse dom de Deus somos nós. Nosso empenho pelo pão cotidiano de todos dá credibilidade ao Reino de Deus.