A liturgia deste 2º domingo do Advento tem como fio condutor o anúncio da salvação. A profecia de Baruc anuncia a salvação por meio da vinda de Deus, o qual tem como objetivo refazer sua aliança com o povo, por ser misericordioso (I leitura). O evangelho nos convida à conversão para acolhermos a salvação que virá por meio de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Essa salvação é um dom e é anunciada a todos, mas requer uma mudança de mentalidade e uma vivência marcada pelo amor fraterno (II leitura).
II. Comentário dos textos bíblicos- I leitura: Br 5,1-9
No contexto da exortação do profeta à conversão e à confissão dos pecados (Br 4,5-5,9), Br 5,1-9 descreve um oráculo de salvação e de consolo para Jerusalém após a realidade do exílio. Diante do exílio, às vezes, o povo tinha atitudes de revolta contra Deus, pois o considerava como responsável pela desgraça e pela destruição de Jerusalém e seus habitantes. Em outros momentos, reconhecia a sua culpa.
O autor recorre a imagens do contexto familiar para retratar a opressão do império babilônico, a deportação dos habitantes de Judá e o retorno do exílio. Essas imagens retratam uma relação de casamento, de aliança, comum nos oráculos proféticos. Desse modo, Deus assume o papel do Pai, por ser o criador e aquele que ensina. O comportamento dos filhos (a infidelidade do povo) provocou a sua ira, por isso os castigou com o exílio. Jerusalém é apresentada como a mãe inocente, a esposa abandonada pelo Senhor ou a viúva que sofre com a infidelidade dos seus filhos. Apesar de sua tentativa de interceder pelos filhos, ela não foi ouvida, assim vive a dura realidade do abandono e da desolação (cf. Pr 19,18; Dt 13). Nesse texto, o foco central é a intercessão da mãe, Jerusalém, pelos filhos.
Diante da realidade catastrófica do exílio, a principal pergunta era se Deus permaneceria indiferente ao sofrimento do povo. Após a confissão dos pecados e a exortação à conversão, Deus anuncia, por meio do profeta, a libertação para Jerusalém (a capital de Judá). Ao recorrer a uma linguagem simbólica e metafórica, o autor convida Jerusalém a terminar o luto, revestir-se do esplendor e da glória do Senhor e envolver-se com sua justiça. Assim, é anunciada nova relação entre Deus e o povo, que será manifestada também para as nações (v. 3). A cidade receberá de Deus novo nome, que aponta também a sua missão: “Paz na justiça, Glória na piedade”. Esse novo nome revela que as relações humanas e com Deus serão marcadas pela justiça, que terá como fruto a paz.
Jerusalém é convidada a se levantar do pó, sair do luto e contemplar o retorno dos seus filhos do exílio (v. 5). Eles foram exilados e experimentaram o que significa ser escravos (à semelhança da experiência do êxodo), agora retornam como reis (v. 6). O profeta anuncia a eliminação de todos os obstáculos (v. 7) e o retorno seguro do povo, contando com a proteção, com a justiça e com a misericórdia de Deus (vv. 7-9). Ele guiará o povo como um pai amoroso que não abandona seus filhos, apesar de suas infidelidades, porque é misericordioso.
- Evangelho: Lc 3,1-6
O tema dessa unidade (vv. 1-6) é a pessoa de João e a sua missão, porém a finalidade é explicitar a missão de Jesus Cristo e o início da nova história inaugurada por ele.
O v. 1 nos oferece um panorama da situação política da Palestina, dominada pelo império romano e tendo como imperador Tibério (14-37 d.C.). Pôncio Pilatos foi procurador da região da Judeia, que abarcava também a Idumeia e a Samaria (25-35 d.C.). Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, e Maltace, administrava a Galileia e a Pereia (4 a.C.-39 d.C.). Filipe, filho de Herodes, o Grande, e Cleópatra, administrava a Itureia, a Traconítide, a Gaulanítide, a Bataneia e os territórios vizinhos (4 a.C.-34 d.C.). Lisânias administrava Abilene, porém a duração de sua administração é desconhecida. Abilene era o distrito que circundava Abila, ao nordeste do Hermon, ao sul do Antilíbano. As lideranças religiosas são Anás e Caifás. Na realidade, somente Caifás era sumo sacerdote (18-36 d.C.), mas o evangelista sabe da grande influência que exercia Anás (sumo sacerdote de 6 a 15 d.C.), sogro de Caifás, nas questões religiosas e também políticas.
No v. 2, o narrador introduz o personagem principal, João, filho de Zacarias, que recebe de Deus a missão de pregar um batismo de conversão para o perdão dos pecados (cf. Mc 1,4). O registro das informações históricas e da missão de João nos indica que o centro da história, o qual dá sentido aos acontecimentos, não é o poder político e religioso, mas a Palavra de Deus revelada a João, anunciando uma virada histórica que será realizada por Jesus, mas é preparada pelo seu precursor. A missão de João tem como objetivo preparar o coração do povo para acolher o Messias Jesus. A menção do “deserto” nos remete à experiência do êxodo; ou seja, essa nova realidade, que será inaugurada por Jesus Cristo, é uma experiência de libertação de toda opressão (vv. 1-2), em direção à terra prometida (o Reino de Deus instaurado pelo Messias Jesus).
João é apresentado pelo evangelista Lucas como um profeta, o qual fundamenta sua pregação na profecia do Segundo Isaías (40-55). O Dêutero-Isaías, provavelmente, foi escrito por um profeta do período persa que buscava encorajar o povo após a dura experiência do exílio e da destruição de Jerusalém, realizada pelo império babilônico.
João tem consciência de não ser o Messias, porém tem um papel fundamental, que é abrir os caminhos para a vinda do Messias. Ele anuncia um batismo de penitência, de mudança de estilo de vida, de perdão, que consiste em retomar um relacionamento justo com Deus e com o próximo.
A passagem transcrita nos vv. 4-6 é retirada de Is 40,3-5 (conforme a versão grega – LXX), um texto que tem a finalidade de animar o povo, anunciando o fim do exílio e uma vida nova, quando o Senhor Deus virá para resgatar o seu povo e celebrar com ele uma nova aliança (cf. Is 40,1-11). Ao utilizá-lo nesse contexto, o evangelista provavelmente tem o objetivo de apresentar João anunciando uma mudança profunda, uma mudança interior, a fim de eliminar todos os obstáculos à comunhão com Deus e com o próximo (vv. 4-6), os quais podem ser a opressão social (“os vales”), as potências políticas e religiosas que oprimem e exploram (as “montanhas”, “as colinas” e as “passagens tortuosas”) ou a ruptura do relacionamento com o outro por meio da injustiça.
A profecia de Isaías (v. 6, cf. Lc 2,30-32; At 28,28), inserida na narrativa de Lc, assume novo significado, pois indica que a salvação de Deus que será vista por toda a humanidade é Jesus Cristo, o Filho de Deus. Ela é dada a todas as pessoas, como um dom, mas necessita ser acolhida por meio de uma mudança de mentalidade. Essa salvação não é algo abstrato, mas é inserida num contexto preciso (vv. 1-2), é inaugurada por Jesus e consiste em acolher Jesus Cristo, aderir a ele e percorrer suas pegadas como discípulos missionários.
- II leitura: Fl 1,4-6.8-11
Embora a escreva num contexto hostil, provavelmente na prisão, Paulo, na carta aos Filipenses, manifesta seu afeto, seus sentimentos e deixa transparecer o tema da alegria. Isso é percebido na oração presente nos versículos da liturgia de hoje, na qual o apóstolo exprime seu louvor pela participação da comunidade na difusão do evangelho, agradece a Deus pela perseverança dos filipenses e proclama a certeza de que a obra pela qual a comunidade está empenhada pertence a Deus e é Ele que a conduz até o fim dos tempos, a parúsia (v. 6). Ademais, indo além de uma oração de agradecimento, Paulo intercede a favor da comunidade, tendo como preocupação a vivência do amor. Amor que não é mero sentimentalismo, mas um dom discernido, refletido, que impulsiona a comunidade a sair de si e ir ao encontro do outro. Amor que nasce da experiência profunda do imenso amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo.
III. Pistas para reflexão
Como foi dito na introdução, o segundo domingo do Advento do ano litúrgico C tem como fio condutor o anúncio da salvação (I leitura) e é marcado pela presença de João Batista, que nos exorta à conversão, a uma mudança radical de mentalidade e de estilo de vida. A citação de Isaías nos convida a preparar as veredas do nosso coração, aplainar os caminhos acidentados de nossa sociedade, marcada pela injustiça, pela violência, pelo ódio, pela intolerância, e proclamar a salvação que vem de Deus e se revela em Jesus Cristo. Assim, o tempo do Advento nos faz tomar consciência de que Deus é aquele que sempre está próximo para salvar e de que é necessário renovar a nossa fé em Cristo, nosso Salvador. Neste dia, possamos, a exemplo de Paulo, agradecer por todo bem realizado na comunidade (II leitura), pela perseverança de cada cristão, e contemplar a alegria da salvação dada a todos indiscriminadamente. Diante dos apelos de João Batista, somos também chamados a nos perguntar: Qual vereda é preciso endireitar em minha vida? Quais vales, montanhas e colinas estão dificultando o meu encontro com o outro? Quais caminhos acidentados precisam ser aplainados em minha família, na comunidade, na sociedade, para acolher o Senhor que vem?
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFGRS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]