Anunciai entre os povos que o Senhor reina
- Introdução geral
A liturgia de hoje ressalta que a história da humanidade está nas mãos de Deus. Interpretada à luz da fé, a história ganha seu verdadeiro significado: a salvação do ser humano.
Até mesmo as ações das pessoas que não têm fé podem ser vistas como colaborações inconscientes para o projeto de Deus. É isso que nos mostra a primeira leitura: o imperador Ciro, mesmo sem saber, fez a vontade de Deus. Situações políticas totalmente seculares podem ser usadas pelo Senhor como instrumentos para a salvação do ser humano.
Na segunda leitura, vemos que Paulo e os tessalonicenses são fiéis na difusão do evangelho. Tal fato deveria nos animar bastante, porque sabemos que, no início da Igreja, os cristãos sofriam várias perseguições. Isso significa que Deus pode servir-se até mesmo de situações adversas para realizar a salvação, porque ele é o Senhor da história.
No evangelho, Jesus traça uma linha divisória: a autoridade política tem seu campo próprio, a ordem e o bem público. Dentro desse campo, a autoridade política deve ser respeitada. Mas a autoridade política não tem o poder de exigir o que somente a Deus é devido.
II - Comentário aos textos bíblicos- Evangelho (Mt 22,15-21): Dai a Deus o que é de Deus
O evangelho de hoje nos põe diante de um dilema no qual muitas vezes travamos: como conciliar em nosso cotidiano duas realidades por vezes antagônicas, a autoridade política e a religiosa? Nesse caso, Jesus nos aponta o caminho a seguir.
A pergunta feita a Jesus certamente é bem maliciosa. Os judeus estavam sob o domínio romano, e o pagamento do tributo era prova de sujeição ao imperador. Se Jesus respondesse que o povo deveria pagar o imposto, perderia sua popularidade, seria acusado de trair sua nação e perderia qualquer pretensão messiânica. Caso respondesse que não deveria pagar o imposto, seria acusado de rebelião contra o império e preso. Qualquer que fosse a resposta, Jesus estaria em perigo. Mas ele ultrapassa a questão do lícito ou ilícito e conduz seus interlocutores a uma reflexão mais profunda: a autoridade política não pode tomar o lugar de Deus.
Para Israel, só Deus podia reinar sobre o povo, mediante um representante tirado de uma das tribos. Por isso, a sujeição ao imperador romano era sinal de idolatria. Além disso, essa situação se agravou quando o imperador se proclamou divino.
Quando Jesus pergunta de quem é a figura e a inscrição na moeda, entra no âmago da questão. Os judeus usavam a moeda romana e, por isso, não tinham por que se opor ao pagamento do imposto. Mas Jesus acrescenta que se deve dar a Deus o que é de Deus, reafirmando a soberania do Senhor sobre Israel e as nações. No grego, a palavra “dar” também significa “devolver”. E já que a imagem de Deus está gravada em nós, devemos “devolver” nossa vida em adoração a ele, cumprindo a sua soberana vontade. Assim, a prática de devolver a Deus o que é de Deus destrói toda idolatria.
A autoridade política deve ser respeitada, porque está a serviço do bem comum, mas nunca terá o poder de exigir o que é devido somente a Deus, cuja imagem está impressa em nós.
- I leitura (Is 45,1.4-6): Eu sou o Senhor e não há outro
O texto bíblico começa com a afirmação de que Ciro, o rei persa que dominava sobre os judeus, tinha sido escolhido por Deus para executar a tarefa de fazer o povo exilado voltar à terra de Israel. É uma afirmação muito estranha na Bíblia, porque o termo “ungido” (messias ou cristo) era reservado apenas para três categorias em Israel: reis, sacerdotes e profetas. Afirmar isso de um rei estrangeiro, que servia a outros deuses, é algo único na Bíblia.
Para entender esse versículo, é necessário imaginar o que as pessoas da época poderiam estar pensando. Quando souberam do decreto do imperador que os liberava para voltar a Israel, os judeus poderiam pensar: “Que feliz coincidência e que sorte nós tivemos, a política do imperador vai nos favorecer”. O profeta entrou em ação para dizer que as coisas não eram bem assim como estariam pensando, deixando claro que não se tratava de sorte ou coincidência. Deus é sumamente fiel e ama os filhos de Israel; ele os tirou da escravidão do Egito, levou-os para a terra prometida e para lá os faz retornar. Ciro não passa de um instrumento de Deus para executar uma tarefa. O imperador não é uma divindade; ao contrário, é como uma criança conduzida por um adulto para fazer algo que ela nem tem consciência do que seja. Ciro é tomado pela mão e levado pelo Senhor para libertar os judeus.
Assim, o texto bíblico orientou as pessoas antigamente e nos orienta hoje para a consciência de que nenhuma autoridade é eterna ou absoluta: há um único Deus, e tudo está submetido a ele e ao seu plano. Nada nem ninguém podem impedir a realização do projeto divino. O livre-arbítrio humano pode apenas escolher entre colaborar ou não com Deus. A história da humanidade está imersa no projeto de Deus como peixes num aquário, que podem nadar de um lado a outro, mas sempre estão dentro do mesmo recipiente. Mesmo quando se tenta impedir que o projeto divino se realize, Deus é suficientemente criativo para do mal fazer um bem. Prova disso é que a morte de Jesus na cruz se tornou vida plena para quem o segue.
- II leitura (1Ts 1,1-5b): O evangelho foi anunciado entre vós
Paulo escreve uma carta à Igreja que se encontrava em Tessalônica, cidade pagã cujos habitantes estavam a serviço de vários ídolos. Os cristãos dessa cidade, ao contrário, são assembleia santa, são eleitos de Deus e congregados em Jesus Cristo.
O apóstolo sempre se lembra da “ação da fé” dos tessalonicenses. Essa expressão pode parecer estranha aos ouvidos atuais, porque hoje comumente se compreende fé como se se tratasse de um sentimento. Mas, nos idiomas antigos, fé é um modo de viver, é a vida em ação colaborando com Deus. Colaborar significa “trabalhar com”. Assim, a fé é mais que um sentimento: é uma tarefa, um ofício, um trabalho, uma missão. O plano de Deus se realiza independentemente da fé do ser humano, mas os que vivem a fé assumem consciente e livremente esse plano como um objetivo de vida a ser realizado e trabalham com Deus na efetivação desse projeto, até chegar à plenitude.
III. Pistas para reflexão
Celebrando hoje o dia das missões neste mês missionário, é preciso reconhecer que muitos cristãos ainda não se envolveram na proclamação do reino de Deus. Alguns estão em situação semelhante à de Ciro: embora suas ações sejam boas, eles não as realizam como fruto de uma opção consciente e comprometida com o reino de Deus. Outras pessoas são como os judeus exilados: não conseguem ver a mão de Deus por trás dos acontecimentos históricos. Quando muito, pensam que os desastres são castigos, e essa é a leitura mais errada que se pode fazer dos eventos históricos.
Ainda podemos considerar algumas pessoas semelhantes aos fariseus do evangelho: confundem autoridade humana com autoridade divina, pensam que o fato de não cometer escândalos é suficiente para alguém ser considerado amigo de Deus.
Contudo, a Igreja necessita de pessoas como os tessalonicenses, cuja fé é mais que um sentimento ou religiosidade desencarnada. A Igreja necessita de cristãos de quem se possa dizer: “Lembro-me sempre da ação de vossa fé” (cf. 1Ts 1,3).
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj, é graduada em Filosofia e em Teologia. Cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]