Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 56-59
29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 17 de outubro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
Serviço e doação, sem ambição
I. INTRODUÇÃO GERAL A liturgia deste domingo recorda o serviço e a doação de si mesmo como síntese da missão de Jesus e, consequentemente, como exigências indispensáveis para seu discipulado em todos os tempos. Outrossim, chama a atenção para posturas e atitudes inaceitáveis na comunidade dos seus seguidores e seguidoras, como a ambição, as rivalidades e a sede de poder. Isso é evidenciado, sobretudo, no Evangelho, o qual é preparado pela primeira leitura: a figura do servo sofredor, que oferece a vida em expiação para tornar justo todo o povo, prefigura o destino de Jesus, o Filho do Homem que veio para servir e dar a vida em resgate de muitos. A segunda leitura apresenta Jesus como sumo sacerdote e perfeito mediador: nele encontramos misericórdia e compaixão, pois ele conhece nossas fraquezas, uma vez que, por fidelidade ao Pai e amor à humanidade, foi provado em tudo como nós, exceto no pecado.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Is 53,10-11) A primeira leitura é um fragmento do quarto cântico do servo do Senhor (Is 52,13-53,12), um texto que pertence ao “livro da consolação” (Is 40-55). Essa obra corresponde à segunda parte do grande livro de Isaías e é atribuída a um profeta e poeta anônimo, chamado pelos estudiosos de “Segundo Isaías” ou “Dêutero-Isaías”, que exerceu sua missão profética junto aos exilados na Babilônia, já no final do exílio (anos 550 a 539 a.C.). O livro surgiu com o objetivo de transmitir consolo e esperança de libertação a um povo cansado e abatido diante de tanta opressão. A propósito, os cânticos do servo, sobretudo o terceiro e o quarto, contêm as melhores descrições simbólicas dessa situação, o que tem levado a maioria dos estudiosos a ver o servo como uma figura coletiva: é a imagem do povo de Israel exilado, especificamente o resto que permaneceu fiel à Aliança, não obstante as inúmeras provações.
O texto desta liturgia recorda o sofrimento do servo, com seus efeitos positivos. O profeta concebe o sofrimento como a realização da vontade do Senhor (v. 10a), tendo em vista os efeitos salvíficos, e não como um fim em si mesmo. É óbvio que Deus não se apraz com o sofrimento de ninguém; mas sabe reverter a situação em benefício da libertação. A pessoa justa sofre porque sua maneira de viver é a mais eficaz denúncia das estruturas e sistemas que geram injustiças e morte. A vida oferecida como expiação, sinal de total adesão à vontade do Senhor, é garantia de descendência duradoura (10b), o que ratifica a fidelidade de Deus, pois a descendência é uma de suas mais clássicas promessas (Gn 21,12; 22,17; Dt 4,40). No contexto do exílio, essas palavras possuem um significado muito importante, tornando-se convite à resistência. Somente um povo resistente e fiel ao Senhor poderia garantir descendência. Por isso, oferecendo-se em expiação, o servo cumpre com êxito a vontade do Senhor e sua própria missão (v. 10c).
O efeito principal da vida de sofrimento do servo, por fidelidade a Deus, é a justificação do povo (v. 11). A expressão “inúmeros homens” significa a totalidade do povo de Deus e um aceno universalista. Sofrer pelos outros, carregando suas culpas, é a expressão máxima de serviço e doação desinteressados, como Jesus fez e espera que também o façam seus seguidores. Por isso, o quarto cântico do servo é o que melhor prefigura a vida e a missão de Jesus.
2. II leitura (Hb 4,14-16) A segunda leitura continua a ser tirada da carta aos Hebreus. O breve trecho corresponde ao início da segunda parte da obra (Hb 4,14-10,31), cujo tema central é o sacerdócio de Jesus Cristo. Saliente-se que a carta aos Hebreus é o único livro do Novo Testamento que apresenta explicitamente Jesus como sumo sacerdote, e a passagem lida neste domingo pode ser considerada uma síntese de toda a obra.
O texto começa com uma afirmação, seguida de uma exortação: Jesus, o Filho de Deus, é o sumo sacerdote que entrou no céu (v. 14a). Ora, no culto da Antiga Aliança, o espaço máximo onde o sacerdote podia entrar era o Santo dos Santos, considerado a morada de Deus na terra e, por isso, o espaço mais sagrado do templo; entrava-se nele apenas uma vez por ano. Está clara, portanto, a perfeição da mediação do sacerdócio de Jesus, pois ele está definitivamente no mundo de Deus, e não apenas ocasionalmente. A exortação à perseverança na profissão de fé (v. 14b) indica o contexto de crise e perseguição nas comunidades destinatárias, com a consequente tendência ao desânimo.
A pertença de Jesus ao mundo de Deus, no entanto, não significa desconhecimento nem distância dos problemas que afligem a humanidade, pois, tendo assumido a condição humana em plenitude, ele passou pelo sofrimento e pela morte; foi provado como nós em tudo, exceto no pecado (v. 15). Isso faz dele o exemplo máximo de serviço e doação. Por conseguinte, devemos nos aproximar de Jesus com toda a confiança, na certeza de que nele encontramos misericórdia e compaixão (v. 16).
3. Evangelho (Mc 10,35-45) O Evangelho continua ambientado no contexto do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Mais do que mero deslocamento físico, esse caminho é um itinerário teológico e catequético, no qual Jesus instrui seus discípulos, com maior clareza, sobre sua identidade e sobre as exigências que seu seguimento comporta. Paradoxalmente, é no caminho que os discípulos demonstram maior incompreensão e resistência ao que Jesus ensina.
O texto é a sequência imediata do terceiro anúncio da paixão (Mc 10,32-34). Trata-se do absurdo pedido dos discípulos irmãos, Tiago e João, para ocuparem os primeiros lugares na glória: um à direita e outro à esquerda de Jesus, numa demonstração clara de ambição e sede de poder (v. 35-37). Esse é um episódio bastante polêmico e comprometedor para a imagem dos primeiros discípulos, registrado dessa maneira somente por um evangelista tão realista como Marcos. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo, e Mateus o modificou, apresentando a mãe dos discípulos como a autora do pedido (Mt 20,20-23). Chamados de “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao seu comportamento intolerante e ambicioso, Tiago e João, junto com Pedro, são os discípulos mais evidenciados nos Evangelhos sinóticos, não pelos méritos, mas pelas contradições. Além da ambição, o pedido revela a visão equivocada da messianidade de Jesus. Os discípulos não aceitavam um Messias sofredor; continuavam a alimentar as expectativas por um Messias glorioso e potente, conforme as tradições de Israel.
Diante da incompreensão dos discípulos, Jesus aprofunda a catequese. Primeiro, denuncia a ignorância deles (v. 38a); em seguida, provoca-os sobre a disposição de compartilhar a vida, sintetizada pelas imagens do cálice e do batismo (v. 38bc): o batismo alude ao início da missão (Mc 1,8-11), enquanto o cálice antecipa a paixão (Mc 14,23.36). Isso quer dizer que ser discípulo(a) de Jesus exige conformar-se à sua vida em tudo, incluindo a capacidade de dar a vida. A resposta dos discípulos é positiva, mas não suficiente para garantir o que desejam (v. 39-40). A disposição para abraçar o seguimento de Jesus e assumir suas consequências não pode estar atrelada à obtenção de recompensas. O arranjo dos lugares na glória futura é um dom gratuito do Pai, e não conquista pessoal.
A ambição gera rivalidades, causando a divisão da comunidade (v. 41). Na medida em que os projetos individuais são evidenciados, a unidade é quebrada. Por isso, Jesus convoca uma reunião para mostrar seu projeto com maior clareza ainda, procurando deixar claro o quanto este é diferente de qualquer projeto humano de poder (v. 42). Tendo negligenciado os três anúncios da paixão, os discípulos tinham como parâmetro os modelos vigentes de poder, marcados pelo domínio e pela tirania, o que é incompatível com o seguimento de Jesus. Por isso, ele apresenta o modelo a ser seguido pela comunidade dos seus seguidores: o serviço. É necessário passar de um modelo baseado na imposição para novo paradigma, baseado no serviço, tendo em vista a igualdade e o bem de todos (v. 43-44).
Portanto, o referencial para a comunidade cristã não pode ser outro senão o próprio Jesus, o Filho do Homem, que veio para servir e dar a vida em resgate de muitos (v. 45). Ele próprio é o exemplo de que a autoridade autêntica deve ser exercida por meio do serviço incondicional, contemplando a capacidade de dar a própria vida. Qualquer tentativa ou experiência na comunidade que tenham como parâmetro “os reinos deste mundo” fazem essa comunidade deixar de ser cristã.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Refletir sobre as três leituras, apresentando a relação temática entre elas. Enfatizar o serviço como o mais eficaz sinal de identificação com o projeto de Jesus. Provocar uma reflexão crítica na comunidade, especialmente nos movimentos e serviços, sobre a maneira de exercer a liderança, mostrando o quanto a ambição, o espírito de competição, as rivalidades e o autoritarismo desviam a comunidade do Evangelho de Jesus.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]