Roteiros homiléticos

Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 45-48

29 de setembro – 26º Domingo do Tempo Comum

Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

Quem não é contra nós é a nosso favor

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia deste domingo destaca a ação profética de Deus compartilhada com seu povo, de modo especial em Jesus, profeta que vai sofrer muito por causa de sua fidelidade à Palavra de Deus. Na primeira leitura, Moisés não compartilha do ciúme de Josué em relação aos dois homens que profetizam no acampamento por terem recebido o espírito do Senhor. Eles estão a favor de Deus, e não contra Moisés ou Josué. Da mesma maneira, no Evangelho, Jesus é consultado pelo apóstolo João, que havia proibido alguém de expulsar um demônio em nome do Mestre simplesmente por não fazer parte de seu discipulado oficial. Para Jesus, quem não está contra nós está a nosso favor. Jesus amplia seu discipulado para além daqueles que o seguem, os quais nem sempre o compreendem de verdade. Na segunda leitura, Tiago condena os ricos que exploram os pobres e acumulam para si um fruto de injustiça e escravidão exploratória. Toda riqueza incapaz de ser dada para o bem comum não constrói uma sociedade justa e cristã.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Nm 11,25-29)

A primeira leitura deste domingo, do livro dos Números, convida-nos a compreender a vontade divina. Nela vemos Moisés compartilhando com setenta anciãos um pouco do espírito recebido de Deus. Essa experiência nos faz pensar que Deus deseja ampliar o poder profético de seu povo, a fim de que sua Palavra encontre outros ouvidos e corações e venha a salvar a todos. Quanto mais pessoas participarem desse processo, muito melhor para a economia salvífica de Deus.

Contudo, dois dos anciãos, Eldad e Medad, que estavam no acampamento, e não na tenda da reunião junto com Moisés, também receberam o espírito e profetizavam (v. 26). Josué, o filho de Nun, foi avisar o profeta Moisés daquilo que havia acontecido com esses dois homens (v. 27), dizendo: “Moisés, meu senhor, manda que eles se calem!” Moisés respondeu: “Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor lhe concedesse seu espírito” (v. 28-29). Moisés aprova o profetismo de ambos e critica o ciúme “bairrista” de Josué, que parece ser mais um alfandegário de Deus, querendo tudo apenas para si próprio.

Para Moisés, que traduz uma concepção inclusiva de profetismo, é possível que outros possam também profetizar, pois ser profeta não é privilégio, mas dever e missão, que deveria ser assumida por todo o povo de Deus. A concepção de Josué, ao contrário, é excludente, pois ele pensa que só os escolhidos podem profetizar e falar em nome de Deus.

Essa passagem amplia o horizonte da missão profética do povo de Deus e ensina que o profetismo não é atividade exclusiva de alguns iluminados e escolhidos. Deus constantemente faz surgir profetas do meio de seu povo, para que possam levar sua Palavra para outras pessoas, além de Israel. Para tanto, faz-se mister ter um coração aberto e dócil ao Senhor, a fim de ouvir seus apelos e ir para onde quer que ele possa enviar, mesmo que para o estrangeiro, como fará o profeta Elias (1Rs 17).

2. II leitura (Tg 5,1-6)

Em tom enfático, Tiago admoesta os que fazem de suas riquezas causa de separação, e não de amizade e partilha generosa. A perspectiva é ainda escatológica: as calamidades que atingem os ricos situam-se no horizonte do julgamento, trata-se dos “últimos tempos” (v. 3). Tiago chama a atenção dos ricos (v. 1), pois grande desgraça está para cair sobre eles. Suas riquezas estão apodrecendo e suas vestes, carcomidas de traças (v. 2). Tudo é corruptível: Tiago quer alertar aqueles que se fiam em coisas, depositando sua fé e confiança no dinheiro ou no poder. A imagem é do dinheiro enferrujado, que servirá de testemunho contra eles mesmos (v. 3). O salário daqueles que trabalharam em seus campos está gritando no montante acumulado, na sonegação fiscal e na atitude injusta de não pagar o salário. O Senhor, por sua vez, ouve o clamor dos pequenos, dos injustiçados e vilipendiados pelos grandes patrões injustos (v. 4). O v. 5 condena essa opulência, trazendo a imagem dos corações cevados para o dia da matança, uma alusão às violências com que os ricos oprimiam os justos (Sl 44,23; Sb 2,10-20; Jr 12,1-3). A opressão, segundo Tiago, é verdadeiro escárnio, fruto da ganância. O empobrecimento de alguns gera o enriquecimento de outros. O versículo final (v. 6) fala em assassinato e condenação dos justos por parte dos ricos, tirando-lhes a esperança e a resistência.

Tiago fala hoje da nossa sociedade injusta, que explora a mão de obra barata, cria o serviço escravo, gera riquezas sobre a pobreza de muitos, abre abismos de diferenças sociais, uma massa de pobres e um grupo seleto de ricos. Parece que os retratos do passado e do presente se fundem num mesmo horizonte de opressão e falta de caridade.

3. Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48)

No Evangelho deste domingo, João, discípulo de Jesus, age de modo semelhante ao discípulo de Moisés, Josué, na primeira leitura: diz ao Mestre que viu alguém expulsar um demônio em seu nome e o proibiu (v. 38). Jesus, por sua vez, afirma ao discípulo: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim” (v. 39). E continua: “Quem não é contra nós é a nosso favor” (v. 40). Jesus, tal como Moisés, não pensa de modo exclusivista, descartando aqueles que não são de seu grupo de discípulos. Ao contrário, há muitos discípulos que não estão incluídos de forma ordinária, mas sim extraordinária.

A partir do v. 40, Jesus inicia uma série de ditos sapienciais com base na atitude do discípulo João, que pensa estruturalmente o interior da comunidade discipular e não é capaz de ver além. O v. 41 trata da generosidade de quem nos der de beber um copo de água porque somos de Cristo – essa pessoa não ficará sem recompensa. No v. 42, Jesus admoesta seus discípulos a não escandalizar nenhum dos menores, pois seria melhor a quem age assim ser jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço. Os v. 43.45-47 formam um tríptico de casos de pecado que porventura o discípulo venha a cometer: com as mãos, com os pés e com os olhos. Para o Senhor, seria melhor arrancá-los. Evidentemente, Jesus está falando em sentido metafórico, a fim de que seu discípulo arranque a raiz do pecado, aquilo que o leva para o mal. Isso não significa arrancar os órgãos ou membros do corpo, mas o que os leva a pecar. Jesus quer que o discípulo arranque a causa do pecado, seja a ganância, seja o pôr-se no caminho errado ou o olhar de cobiça ou de desejo perverso. Desse modo, para sermos bons e verdadeiros discípulos de Jesus, capazes de anunciar sua Palavra, somos convidados a romper com as estruturas injustas e perversas que nos conduzem ao pecado.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Perceber que Deus não limita sua ação salvífica. Muitos que estão fora da comunhão eclesial podem viver mais plenamente o amor e nos converter ao amor verdadeiro. Refletir com a comunidade sobre o que fazemos com o uso do dinheiro. Não podemos deixar que a ganância nos cegue, levando-nos ao egoísmo. Ricos podem compartilhar com os pobres e construir uma sociedade mais fraterna. Compreender que Deus chama seu povo para ser seu sinal no mundo, o que não significa privilégio, mas serviço.

Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected].