DEUS SE REVELA A TODOS OS POVOS
I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras deste domingo nos proporcionam a oportunidade de refletir quem é Deus, onde ele mora e qual o seu plano para a humanidade. O rei Salomão constrói um grandioso templo em Jerusalém como habitação para Deus. Nesse lugar, pelo que se percebe na oração de Salomão, todos os povos teriam oportunidade de conhecer o nome de Deus conforme revelado ao povo de Israel (I leitura). A abertura a todos os povos completa-se com a vinda de Jesus. Ele (e não mais o templo) é a fonte e o caminho de salvação universal. Jesus é “Deus-conosco”, independente do templo. Ele revela o verdadeiro nome de Deus, que não se circunscreve num recinto sagrado, mas comunica-se no lugar social das pessoas necessitadas, libertando-as (Evangelho). Deus não faz acepção de pessoas, ultrapassa barreiras culturais e manifesta-se a todos os povos, oferecendo-lhes gratuitamente a salvação em Jesus Cristo. Esse é o Evangelho assumido e pregado pelo apóstolo Paulo. Na defesa dessa boa notícia da salvação gratuita, Paulo enfrenta toda espécie de conflitos (II leitura). Para nós, hoje, como discípulos missionários de Jesus, é importante compreender, acolher e anunciar com ousadia o Evangelho da vida plena para todos, sem exclusão.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (1Rs 8,41-43): A grandeza do nome de Deus
Esta pequena oração de Salomão situa-se no contexto da festa da Dedicação do Templo de Jerusalém. Lendo todo o capítulo 8 de 1 Reis, percebe-se que a Arca da Aliança, que acompanhou o povo de Israel desde a sua saída da escravidão no Egito, é agora transportada para dentro do templo num cerimonial de grande pompa. Salomão, além de rei, exerce a função de sacerdote. Declara que edificou uma casa para residência eterna de Deus (8,13), cumprindo-se assim a promessa feita ao seu pai Davi. Em sua oração, o rei Salomão exalta o templo como o centro gravitacional de todos os povos. Apesar de confessar que nem “os céus dos céus podem conter Deus” (8,27), é para o templo de Jerusalém que os estrangeiros poderão acorrer para reconhecer “a grandeza do vosso nome, a força de vossa mão e o poder do vosso braço”, conforme expressa o texto deste domingo. Ainda mais, é a partir desse lugar que “todos os povos da terra conhecerão o vosso nome, vos temerão como o vosso povo de Israel e saberão que o vosso nome é invocado sobre esta casa que edifiquei”.
Sabe-se que a construção do templo e a centralização do culto em Jerusalém tiveram por objetivo legitimar o poder monárquico e, mais tarde, o sistema sacerdotal de pureza que excluiu a maioria das pessoas da pertença ao povo eleito. No entanto, a teologia do texto indica uma abertura universal. A experiência religiosa de Israel não pode ser exclusivista. Deve ser irradiada a todos os povos. O Deus da vida pode ser conhecido e invocado por judeus e estrangeiros. Afinal, todos são seus filhos e filhas.
2. Evangelho (Lc 7,1-10): Jesus e a fé de um estrangeiro
Deus encarnou-se em Jesus de Nazaré. Fez sua morada no meio da humanidade. Solidarizou-se com as vítimas do sistema religioso de pureza organizado pela casta sacerdotal do templo de Jerusalém. Em vez de promover a abertura universalista segundo a vocação que Deus dera a Israel, a elite religiosa fechou-se em suas concepções de pureza e impureza, mantendo o povo sob o jugo de um emaranhado de leis.
A prática de Jesus, porém, não corresponde à doutrina disseminada pelos doutores da lei. Enquanto estes consideram os pobres e estrangeiros como impuros e excluídos do povo santo de Deus, Jesus promove a vida sem exclusão, como se constata no relato evangélico deste domingo. Um centurião romano dirige-se a Jesus, cheio de confiança, para fazer-lhe um pedido a favor de um servo. Os centuriões normalmente não eram bem-vistos pelos judeus. Representavam a opressão que o império romano exercia sobre o povo. Aquele centurião, porém, sabia manter boas relações com a população de Cafarnaum e manifestava simpatia pela própria religião judaica. Não só construiu uma sinagoga, mas interessou-se pelo que diziam de Jesus.
Este centurião, segundo o Evangelho de Lucas, não vai pessoalmente ao encontro de Jesus. Envia anciãos judeus para fazer-lhe um pedido. Na versão de Marcos (8,5-13), é o próprio centurião que se dirige a Jesus. Temos a impressão de que Lucas enfatiza a consciência de “indignidade” manifestada pelo centurião diante da grandeza do nome de Jesus que ele ouvira falar.
O centurião representa aqui o povo gentio. A mediação dos anciãos judeus resgata a vocação de Israel de promover a inclusão também dos estrangeiros na graça libertadora de Deus. A missão de Jesus não se restringe ao povo de Israel. Ele veio para todos. Tem o coração aberto para acolher e valorizar o testemunho de amor, de humildade, de respeito e de fé dado por um estrangeiro. Testemunho de amor porque o centurião manifesta cuidado pela vida de um servo; de humildade porque se sente indigno de achegar-se a Jesus; de respeito porque sabe que um judeu ficaria impuro se entrasse na casa de um pagão; e finalmente o testemunho de fé porque, a partir de sua própria experiência de obedecer e de dar ordens, reconhece o poder das palavras. Pelo que ele ouviu falar de Jesus, tem certeza da eficácia de suas palavras. Jesus impressiona-se com a atitude daquele centurião. Volta-se para o povo e declara: “Em verdade vos digo: nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”.
O texto enfatiza a importância da Palavra de Jesus. As comunidades cristãs, organizadas após a morte e a ressurreição de Jesus, alimentam-se essencialmente da Palavra. “Dize somente uma palavra e meu servo será curado”. As comunidades de fé e de amor são o novo templo, o lugar da presença libertadora de Jesus. Nelas não pode haver discriminação de pessoas. Judeus e estrangeiros são igualmente portadores da boa notícia da vida em plenitude. É missão dos cristãos difundir o Evangelho pelo mundo afora. Lucas vai dedicar-se, no livro de Atos dos Apóstolos, a mostrar a trajetória da Palavra “de Jerusalém aos confins do mundo” (At 1,8). A Palavra que liberta não tem fronteiras. Não é um sistema religioso nem os laços de sangue que determinam a pertença ao Reino de Deus, e sim a prática da justiça, como vai expressar o apóstolo Pedro na casa de outro centurião, chamado Cornélio: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz discriminação entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).
3. II leitura (Gl 1,1-2.6-10): Não há dois Evangelhos
Paulo, após seu encontro com Jesus ressuscitado, entregou-se por inteiro à missão de evangelizar os povos. Entre os diversos problemas pelos quais ele passou, está o conflito com os chamados “judaizantes”, que pregavam a necessidade da circuncisão e do cumprimento de outras leis judaicas aos cristãos provindos do paganismo. Muitos se deixavam influenciar por esses judaizantes. A autoridade de Paulo, como apóstolo e fundador daquelas comunidades cristãs, estava sendo desprestigiada. Ao ser informado dessas coisas, Paulo fica muito indignado. A indignação é manifestada até mesmo no modo como escreve a carta: não começa com a costumeira ação de graças nem termina com a bênção. Ele escreve num tom de muita firmeza, gravidade e convicção. Já de início esclarece que seu apostolado não é por uma decisão humana, mas “por Jesus Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dos mortos”. Portanto, a carta aos Gálatas se reveste de uma profunda seriedade. Caracteriza-se como forte advertência com a intenção de fazer que aquelas comunidades cristãs retomem o caminho do único Evangelho.
A que Evangelho Paulo se refere? No conjunto da carta, constata-se que se refere ao “Evangelho da liberdade”, que se baseia na certeza de que a salvação é obra gratuita de Deus por Jesus Cristo. Já não tem sentido a obrigatoriedade da circuncisão nem do legalismo. Já não têm sentido as barreiras entre povos. Agora todos fazem parte do corpo de Cristo: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre pessoa escrava e livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (3,28). Cristo uniu a todos numa única família e concedeu a todos a verdadeira liberdade: “É para sermos livres que Cristo nos libertou. Portanto, fiquem firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão” (5,1).
Para Paulo, é fundamental compreender e assumir esse Evangelho, que torna as pessoas maduras, convictas, responsáveis e já não dependentes de normas externas. É uma vida pautada segundo o Espírito de Deus. Não há outro Evangelho. Caso contrário, coloca-se a perder o significado da vida, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Deus revelou-se na história do povo de Israel como aquele que liberta os oprimidos de todo tipo de escravidão. A aliança que fez com o seu povo visou abranger toda a humanidade. A vocação de Israel é irradiar o nome do Deus da vida e da libertação para todos os povos. Apesar das tentativas de centralização e de exclusividade da eleição do povo de Israel, Deus sempre manifestou, por meio dos movimentos proféticos e sapienciais, o seu plano de salvação universal. Enviou o seu Filho, Jesus Cristo, cuja proposta de Reino de Deus visa à inclusão de todos na vida em plenitude. O episódio do Evangelho deste domingo – Jesus e o centurião romano – caracteriza-se como um apelo a todos os discípulos de Jesus, no sentido de abrir-se ao “outro”, acolhendo e valorizando sua fé. Outro dado importante é a autoridade da Palavra de Jesus: o que ele diz acontece. A Palavra de Deus é viva e eficaz! Jesus rompe com as barreiras impostas pelo sistema do templo, supera o legalismo, ensina com autoridade e oferece seu amor e salvação a todos.
A salvação gratuita de Deus a todos os povos – ofertada por meio da vida, morte e ressurreição de Jesus – foi assumida pelo apóstolo Paulo como “único Evangelho”. O seu testemunho de total entrega por essa causa de inclusão de todos os povos no plano de salvação de Deus ilumina e fortalece a nossa missão hoje como discípulos missionários de Jesus.
► Pode-se ligar a Palavra de Deus da liturgia deste domingo com a Exortação Apostólica do papa Francisco Evangelii Gaudium, especialmente o n. 20, no qual o papa se refere à Igreja em constante estado de “saída”. Jesus envia seus discípulos e discípulas em missão, a se fazerem presentes em cenários e desafios sempre novos.
Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC).E-mail: [email protected]