Roteiros homiléticos

Publicado em julho-agosto de 2024 - ano 65 - número 358 - pp.: 47-50

28 de julho – 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Marcus Mareano*

Unidos alimentando os famintos

I. INTRODUÇÃO GERAL

“Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?”, pergunta uma canção brasileira, exprimindo que o ser humano precisa de algo mais do que comida e bebida. Contudo, a liturgia deste domingo coloca nossos pés na realidade dura da existência de muitas pessoas ainda sem ter o que comer e o que beber, sem condições adequadas para a sobrevivência (saneamento, moradia, emprego etc.). A partilha dos pães nos lembra que nossos dons se multiplicam quando não os retemos.

A dinâmica do pouco oferecido e partilhado para muitos aparece na primeira leitura e se repete no Evangelho. O resultado é a formação de um povo abundantemente saciado por Deus, a ponto de sobrar mais do que havia na situação inicial. As pessoas alimentadas por Deus se unem, formando um corpo, o de Cristo, para viver a unidade na caridade do pão partilhado.

O que ouvimos e podemos imaginar desses textos da liturgia ocorre em nosso cotidiano, quando abrimos o coração e as mãos para a partilha fraterna. Essa percepção que temos seria muito melhor se as grandes economias mundiais pensassem nos mais pobres, se houvesse justiça social e se a fome ainda existente no mundo fosse resolvida.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (2Rs 4,42-44)

No segundo livro dos Reis, há algumas narrativas de milagres do profeta Eliseu, sucessor de Elias. O episódio que lemos na liturgia apresenta a distribuição de pães de maneira semelhante ao que teremos no Evangelho.

Um homem trouxe para o profeta um saco de pães das primícias, feitos de trigo novo, de acordo com a descrição de Lv 23,17. Eliseu, chamado de “homem de Deus” (v. 42), recebe daquele homem anônimo o que se destinava aos sacerdotes do templo (Lv 23,20). Ele não retém a oferta, mas pede que seja repartida entre todos.

O ajudante questiona a ordem do profeta, pois eram poucos pães para muitas pessoas. Eliseu insiste na distribuição dos pães, pois esperava, conforme a palavra do Senhor, que todos comeriam e se fartariam. Assim aconteceu, como cumprimento da Palavra de Deus dita pelo profeta.

O relato se assemelha com o que já conhecemos das narrativas dos Evangelhos: um bocado de pão oferecido, acolhido e distribuído a uma multidão. No fim, as sobras superam o que se tinha e percebe-se a superabundância da ação divina. O pouco ofertado, abençoado e partilhado se torna muito para satisfazer a todos profusamente.

2. II leitura (Ef 4,1-6)

Continuando a leitura de Efésios, acompanharemos, nos próximos domingos, a segunda parte da carta (Ef 4,1-6,20), que oferece orientações mais práticas à comunidade. No trecho deste domingo, lemos um convite à unidade por meio da boa vivência dos vínculos fraternos.

O início exorta os efésios a viver uma vida conforme o chamado recebido desde o princípio da fé em Cristo. A comunidade sofria com alguns dos seus membros, que rompiam a unidade, se entusiasmavam com heresias e, por conseguinte, possuíam uma moral dissoluta e distante dos ideais cristãos. As separações ocorriam por conta desses ensinamentos contrários à fé comum. Por isso, a carta chama os cristãos a praticar a humildade, a mansidão, a paciência e suportar uns aos outros em prol dessa unidade, ameaçada por discórdias.

Em seguida, o texto recorda a unidade do corpo que constitui a Igreja, comunidade de fé. Há uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, pois Deus é único e Pai de todos (v. 6; Cl 3,12-15). Não se trata de unidade de aparência, decorrente da falta de diversidade, e sim de unidade em construção, baseada na fé em Deus uno.

No contexto da primeira leitura e do Evangelho, podemos relacionar a unidade indicada pelo autor com os pães distribuídos. A Eucaristia celebrada unifica os fiéis em um só coração e uma só alma para viver o mistério do amor no mundo.

3. Evangelho (Jo 6,1-15)

Na liturgia dominical do Ano B, ano do Evangelho de Marcos, acompanhamos, por alguns domingos, o discurso do “pão da vida” em João 6. Trata-se de catequese eucarística ampliada da narrativa dos pães em Marcos.

Na sequência do Evangelho de João, Jesus conclui abruptamente o ensino a respeito do testemunho que ele dá do Pai (Jo 5,47). A partir de Jo 6,1, a cena se desloca de Jerusalém para o interior, a Galileia. Jesus se encontra à beira do lago de Tiberíades (ou de Genesaré) e o atravessa. Tal como em Mc 6,33-34, muita gente vai atrás dele, por ter visto os sinais que ele realizava.

Entretanto, Jesus sobe com seus discípulos aos montes que ladeiam o lago. O evangelista situa o evento na época da Páscoa, a comemoração do êxodo dos israelitas, quando Deus livrou seu povo da escravidão do Egito, o alimentou no deserto e o guiou à Terra Prometida. O leitor já se prepara para uma ação de Jesus semelhante à de Moisés diante do povo no deserto.

Jesus vê a multidão do alto da montanha e questiona Filipe, para experimentá-lo: “Onde vamos comprar pães para que estes possam comer?” (v. 5). Jesus sabe o que quer e como vai agir. Ele toma a iniciativa. Em João, a pergunta “de onde?” sempre evoca uma origem misteriosa, algo que possui origem divina (Jo 1,48; 2,9; 3,8; 4,11; 6,5; 7,27-28; 8,14; 9,29-30; 19,39).

Portanto, Jesus possui um conhecimento superior ao dos discípulos – por exemplo, ao de Filipe, que pensa em termos deste mundo e conclui que duzentos denários não bastam para que cada um receba um pouco de pão (cf. Mc 6,38 e paralelos; um denário parece ser a diária de um lavrador: Mt 20,2). Outro discípulo observa diferente: há um menino com cinco pães de cevada e dois peixinhos (v. 9). João apresenta esse personagem com pães e peixes para recordar Eliseu (2Rs 4,21-44).

Eles estão diante do impasse de alimentar numerosa multidão com tão pouco. Então, Jesus entra em ação e ordena aos discípulos que acomodem as cinco mil pessoas na grama daquele lugar ermo (v. 10). Em seguida, toma os pães e, dizendo a ação de graças (eucharistia), distribui-os aos que estão sentados. Faz do mesmo modo com os peixinhos. Os gestos e as palavras usados no Evangelho são os mesmos da celebração dos primeiros cristãos.

Os pães e os peixes se tornaram abundantes a ponto de alimentar a multidão que seguia Jesus. Quando terminaram de comer, Jesus mandou recolher o que havia sobrado. Foram doze cestos cheios das sobras dos cinco pães e dos dois peixinhos (v. 12-13). O número 12 representa as tribos do antigo povo de Israel e os apóstolos, o novo povo de Deus, a Igreja; logo, o novo povo de Deus alimentado no deserto, sinal do dom messiânico de Deus em Jesus, que age como novo Moisés.

O Evangelho de João fala de “sinais” realizados por Jesus. Prefere esse termo a milagres, pois os acontecimentos apontam para uma realidade além daquela apresentada imediatamente. Por isso, o povo reconhece Jesus como um profeta que deve vir ao mundo, a exemplo de Moisés, Elias e Eliseu (Dt 18,15; Ml 3,1.23); mas quer segurá-lo para proclamá-lo rei, um messias (rei) apenas político. Aquelas pessoas só pensavam na saciação da fome material.

Havia um sentido mais profundo naquele acontecimento. As pessoas comeram pão e peixe e não observaram que aquilo indicava a partilha do pão e do vinho na última ceia, a qual, por sua vez, prenunciava a entrega de Jesus na cruz, sua morte e ressurreição. Logo, o sinal dos pães convidava a pensar em um alimento superior, que era a vida de Cristo.

Por fim, Jesus se retira sozinho para o monte (v. 15) – atitude de quem precisa de orientação divina para seguir adiante e de quem se inspira para agir da melhor maneira com seus discípulos.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A cena da liturgia da Palavra nos convida à partilha. Há tantas pessoas famintas, sem vestuário, sem emprego digno, sem moradia adequada etc. Muitas realidades instigam nossa sensibilidade cristã para agirmos em favor dos mais vulneráveis da sociedade.

Ainda que não nos insiramos em algum projeto social perene, podemos agir de maneira mais solidária e fraterna nas relações mútuas. A Escritura nos convida a distribuir o pão que temos e que somos. Apesar de podermos partilhar um pouco dos bens que possuímos, cabe-nos oferecer também nossas qualidades, nosso tempo para ouvir, a sabedoria acumulada nos anos, as experiências de vida, histórias marcantes, testemunhos de fé etc. Olhando nossos cestos, podemos encontrar outros pães e peixes para outras necessidades. Sempre temos o que oferecer!

Seria grande tristeza ter nossos estoques interiores vazios; depois de alguns anos de vida, olhar para o passado e perceber que acumulamos quinquilharias, que nada temos para distribuir, para partilhar com quem está ao nosso lado. Olhando nossa vida e o que podemos oferecer, respondamos: a quem daremos os pães? Que pães daremos? Como daremos esses pães?

Pe. Marcus Mareano*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte, doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) e pela Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven). Professor de Bíblia em alguns seminários. No momento, desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven).