Publicado em setembro-outubro de 2020 - ano 61 - número 335 - pág.: 53-56
27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 4 de outubro
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Trabalhar na vinha do Senhor e produzir bons frutos
I. Introdução geral
A imagem da vinha, já utilizada pela liturgia nos dois últimos domingos, ganha neste uma evidência maior, pois aparece na primeira leitura e no Evangelho. Na Bíblia, a vinha é símbolo clássico de Israel, especialmente na literatura profética (Is 3,14; 27,2-5; Jr 2,21; 12,10; Ez 17,6; Os 10,1). É imagem privilegiada para descrever o amor e o cuidado de Deus para com seu povo e para denunciar as infidelidades e incoerências do povo em sua relação com Deus. A primeira leitura é boa demonstração disso. Por meio de belo poema, o profeta Isaías compara a relação de Deus com seu povo à história de um proprietário que plantou uma vinha e dela cuidou com esmero, porém não foi correspondido, pois, ao invés de uvas doces, colheu uvas azedas. No Evangelho, Jesus retoma o texto de Isaías e constrói uma parábola maior, direcionando a denúncia de infidelidade e incoerência às lideranças religiosas de Jerusalém, e não a todo o povo; também amplia o sentido da vinha: o que era privilégio de um único povo, Israel, se estende a toda a humanidade, chamada por Deus a compor a sua vinha e produzir bons frutos nela. Na segunda leitura, Paulo dá alguns conselhos práticos que correspondem ao trabalho na vinha do Senhor.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Is 5,1-7
Os primeiros 39 capítulos do grande livro de Isaías, chamado convencionalmente pelos estudiosos de “Primeiro Isaías” (Is 1-39), é obra do clássico profeta Isaías, que exerceu seu ministério em Jerusalém num período anterior ao exílio, provavelmente entre os anos 740-700 a.C. A primeira leitura é retirada dessa obra. Trata-se do famoso “cântico da vinha” – uma parábola em forma de poesia, composta pelo profeta, ainda no começo do seu ministério, para denunciar a falta de correspondência de Israel ao amor cuidadoso de Deus.
Inicialmente, o profeta “canta” a história, com muita criatividade, sem levantar nenhuma suspeita de que está falando da relação entre Deus e seu povo, talvez gerando suspense entre seus interlocutores. Ele se faz de amigo de um proprietário muito zeloso, apaixonado pela sua vinha, que faz todo o esforço possível para que ela tenha boa produção: prepara bem o terreno, planta videiras selecionadas, constrói uma torre para vigiar e um lagar para produzir o bom vinho ali mesmo (v. 2). O resultado, no entanto, é decepcionante: a vinha produziu somente uvas azedas ou selvagens, como está na versão litúrgica do texto. O proprietário faz um desabafo, expressando toda a sua decepção (vv. 3-4), e em seguida anuncia o destino da vinha: ela será devastada, já não receberá nenhum cuidado especial, pois não vale a pena; o muro de proteção será derrubado e ela será invadida por espinhos; até a água será tirada (vv. 5-6).
Na conclusão (v. 7), o profeta explica o significado do cântico: a vinha é Israel e Judá, as duas porções do único povo de Deus, e o proprietário é o Senhor dos exércitos. As uvas boas esperadas são justiça e obras de bondade em favor do próximo; as uvas azedas colhidas são as injustiças e iniquidades praticadas pelo seu povo. O suposto abandono da vinha pelo proprietário é apenas um apelo à conversão; a ameaça faz parte da pedagogia divina, sobretudo na literatura profética. A resposta de Deus ao seu povo, porém, será sempre o amor, mesmo que este não seja correspondido. Não obstante, Deus espera sempre uvas boas; e estas são produzidas quando a justiça e o amor ao próximo são praticados.
2. II leitura: Fl 4,6-9
Mais uma vez, a segunda leitura é tirada da carta aos Filipenses, considerada o mais afetuoso dos escritos de Paulo, parecendo uma correspondência entre bons amigos. O trecho lido neste dia está localizado na parte conclusiva da carta (Fl 4,2-23), marcada por exortações, agradecimentos e despedida. Faz parte da seção exortativa (vv. 2-9) e traz alguns conselhos práticos, importantes para a vida pessoal e comunitária.
Na primeira parte (vv. 6-7), os conselhos visam ao equilíbrio pessoal e à boa relação com Deus. Nesse sentido, o apóstolo recomenda que os cristãos não se deixem inquietar com as preocupações do cotidiano; ao contrário, devem rezar com súplicas e gratidão, pois a oração gera serenidade e alegria, mesmo em meio a angústias (v. 6). Quem segue esse percurso encontra a paz de Deus em sua vida e, assim, se mantém em comunhão com Cristo Jesus (v. 7). Na segunda parte (vv. 8-9), os conselhos têm uma perspectiva mais social e comunitária, culminando também com a comunhão com Deus. Paulo recomenda que os filipenses assimilem os principais valores éticos e morais da cultura greco-romana (v. 8) e os integrem ao que dele receberam, ou seja, ao Evangelho de Jesus Cristo (v. 9a). Essa passagem é extremamente iluminadora para o cristianismo de todos os tempos: aonde o Evangelho chegar, encontrará valores a serem considerados e integrados à fé em Jesus Cristo. Isso também revela a abertura de mentalidade de Paulo, o que nem sempre é reconhecido.
Na conclusão, Paulo mostra a consciência que tinha do seu próprio testemunho, ao exortar que os cristãos pratiquem tudo o que receberam dele: não apenas o que ouviram de sua pregação, mas também o que viram, ou seja, seu exemplo de vida (v. 9). Só pode fazer isso quem tem convicção de que testemunhou plenamente o Evangelho, ou seja, quem produziu bons frutos para Deus, como ele fez, transformando aquela comunidade em verdadeira porção da vinha do Senhor.
3. Evangelho: Mt 21,33-43
O Evangelho deste domingo corresponde à última das três parábolas que empregam a imagem da vinha no Evangelho de Mateus: a parábola dos vinhateiros homicidas. Ao contrário das duas primeiras, lidas nos dois últimos domingos, que são exclusivas de Mateus, a parábola desta liturgia consta também nos outros sinóticos (Mc 12,1-12; Lc 21,33-46). O contexto é o mesmo daquela do domingo passado, a dos dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na sua vinha (Mt 21,28-32), e os interlocutores também são os mesmos, os sacerdotes e anciãos. Jesus já se encontra em Jerusalém, vivendo a última etapa do seu ministério, marcada pelo confronto direto com as lideranças religiosas. Certo dia, enquanto ensinava no templo, os sacerdotes e anciãos do povo lhe questionaram por que estava fazendo aquilo (Mt 21,23); Jesus respondeu-lhes com uma série de parábolas, das quais a deste domingo é a segunda.
A composição dessa parábola foi inspirada no “cântico da vinha” de Isaías, lido na primeira leitura, embora tenha sofrido radical modificação, ganhando um sentido mais amplo. Enquanto, no texto de Isaías, é o próprio dono quem cuida da vinha, na parábola de Jesus a vinha é arrendada a vinhateiros (v. 33). É aí que começa a novidade. Não há queixas do dono quanto à qualidade dos frutos; o problema está na administração. Os vinhateiros são maus e não devolvem ao dono sua porção dos frutos. Espancam, apedrejam e matam os empregados enviados pelo proprietário para receber os frutos e terminam fazendo o mesmo com o filho do dono (vv. 34-39). Em vez de apenas trabalhar e administrar a vinha, aqueles vinhateiros tinham se apossado do que não lhes pertencia e ainda praticaram atos abomináveis de violência.
Concluída a parábola, Jesus questiona seus interlocutores a respeito da atitude que o dono da vinha irá tomar quando retornar (v. 40). Pela resposta, os sacerdotes e anciãos parecem ainda não entender a quem Jesus está se referindo com a parábola; imaginam que o dono da vinha irá castigar os vinhateiros com violência, externando o tipo de religião que praticavam (v. 41). Em momento algum Jesus fala de vingança do dono da vinha, pois esta não é uma característica do seu Deus, que é Pai; antes evidencia, com base na Escritura, que rejeitar a si é rejeitar ao próprio Deus (v. 42) e que a atitude do dono da vinha será destituir de poder os vinhateiros homicidas, entregando a administração da vinha a um novo povo (v. 43) que não apenas produza frutos, mas também devolva ao dono o que lhe pertence.
Os vinhateiros, portanto, eram os próprios interlocutores de Jesus, os sacerdotes e anciãos do povo, que não tinham escutado os profetas do Antigo Testamento e estavam rejeitando também a ele mesmo, o Filho de Deus e dono da vinha. A crítica, que no texto de Isaías era direcionada a todo o povo, no Evangelho é dirigida somente às lideranças religiosas, que tiveram participação decisiva na morte de Jesus. Mateus utiliza a parábola para advertir a comunidade: ela só faz parte da vinha do Senhor se produzir frutos.
III. Pistas para reflexão
A liturgia favorece profunda reflexão sobre a missão de cada cristão neste mundo; é recomendável explorar essa perspectiva, aproveitando o ensejo do início do mês missionário. A missão cristã consiste, essencialmente, em produzir frutos agradáveis para Deus: a justiça e o amor ao próximo. Relacionar as três leituras e recordar o testemunho de Paulo como exemplo de trabalhador da vinha do Senhor.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).