Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 61-64
27 de abril – 2º DOMINGO DA PÁSCOA DOMINGO DA DIVINA MISERICÓRDIA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Eterna é a sua misericórdia!”
I. INTRODUÇÃO GERAL
O Domingo da Misericórdia, instituído por São João Paulo II no ano 2000, só tem sentido se vivido e celebrado à luz da Páscoa da ressurreição do Senhor. Não há como celebrar misericórdia sem a vida nova que Cristo nos chama a assumir e viver. Só quem foi tocado pelo mistério pascal de Cristo é capaz de compadecer-se de seu próximo e do mundo à sua volta, a casa comum onde habitamos. Misericórdia, além de ser atributo divino, pode poeticamente dizer daquilo que nós podemos fazer: “colocar nosso coração à disposição de tudo e de todos”, buscando viver a miséria do coração que se doa para que outros tenham vida. Somos convidados a ver Jesus crucificado-ressuscitado no meio da comunidade. Não ser incrédulo como São Tomé, que no Evangelho duvida da presença do Ressuscitado, é perceber que ele está presente em sua Igreja hoje. Que saibamos, mesmo não o vendo fisicamente diante de nós, proclamar: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28). Que ouçamos o apelo do Senhor, que nos convida a saborear a paz que ele, o Ressuscitado, concede ao mundo e à sua Igreja. Na primeira leitura, Lucas, nos Atos dos Apóstolos, testemunha o crescimento da comunidade dos seguidores de Jesus, inspirados pelo testemunho apostólico. Os apóstolos testemunham Cristo por palavras e gestos, sobretudo curando os doentes em nome de Cristo. Na segunda leitura, o narrador do Apocalipse, por meio de uma visão, dá testemunho de Cristo. João, ainda, dá testemunho de sua perseverança nas tribulações e no exílio que vive em Patmos. O fio condutor de todas as leituras é a misericórdia de Deus, que alimentou e sustentou a vida dos apóstolos ontem e alimenta e sustenta a vida da Igreja nos dias de hoje.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (At 5,12-16)
Lucas dá testemunho da ação misteriosa que emana da Páscoa da ressurreição do Senhor: sinais e maravilhas operadas pelas mãos dos apóstolos, continuadores da missão de Jesus Cristo pela ação soteriológica e reanimadora do Espírito Santo, que age no coração dos fiéis (v. 12). O v. 13 mostra que ninguém ousava juntar-se aos apóstolos, mas o povo os estimava muito. Não há oposição à ação apostólica, mas também não há uma adesão formal de mais pessoas, pois os apóstolos estavam em uma experiência própria, luminosa e tocante, que os fazia diferentes, pela missão que receberam na ressurreição do Senhor. Contudo, havia uma adesão ao Senhor, e os fiéis aumentavam em número significativo. O v. 15 ressalta o poder dos apóstolos – a exousia – e a ação apostólica: Pedro, o apóstolo que precede e preside a comunidade dos fiéis ao Senhor, é aquele que realiza a dynameis, a ação de Cristo, vivo e presente, na comunidade. Vinham, de todos os lados, doentes e possuídos, e eram libertos de suas mazelas em nome de Cristo. O poder do nome do Senhor Jesus Cristo resiste e reside, de maneira viva e pulsante, na Igreja primitiva. Essa Igreja se sustenta com a força do Ressuscitado e por ele é capaz de curar a muitos.
Neste domingo pascal, cuja essência é a misericórdia, pode-se observar que os apóstolos são imbuídos pelo Espírito do Ressuscitado, que suscita transformações na vida dos fiéis: nos apóstolos, o medo, em razão da morte de Jesus, transforma-se em coração por causa do Ressuscitado, que age na comunidade; os que vão até os apóstolos, escravos de mazelas e doenças, passam à liberdade da cura, seja esta física, seja espiritual. Toda essa ação transformadora é fruto da misericórdia de Deus, a qual floresce da Páscoa de Jesus.
2. II leitura (Ap 1,9-11a.12-13.17-19)
Por meio de uma belíssima visão, o apóstolo João, testemunha qualificada que vislumbra a revelação final, percebe-se exilado em Patmos, na Ásia Menor, e dirige, em meio à tribulação e à perseguição, cartas a sete igrejas: de Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Essa testemunha é exortada pelo Senhor (o Ressuscitado) a escrever no livro o que vai ver (v. 10-11) – donde o nome Apocalipse, termo grego que significa revelação (“tirar o véu”) de uma realidade esperançosa e plenamente embebida pela força de Deus, em contraste à realidade triste e sofrida que vive o povo no final do século I, dominado pelo Império Romano, sob Domiciano.
No v. 13, a visão dos sete candelabros é a visão das sete igrejas às quais ele deverá dizer palavras de exortação e esperança, mas em tom fortemente profético. O v. 17 mostra a confiança que esse servo deverá ter, mesmo num contexto de perseguição e sofrimento. Muitas e incontáveis eram as vítimas do Império Romano, que fez incalculáveis vítimas cristãs pelo simples fato de crerem em Jesus Cristo naquele contexto tirânico. Quem o encoraja é o Senhor Jesus: “Eu sou o Primeiro e o Último, aquele que vive. Estive morto, mas agora estou vivo para sempre. Eu tenho a chave da morte e da região dos mortos”. O apóstolo é convidado, por último (v. 19), a escrever tudo o que acontece e acontecerá, pois o autor apocalíptico tem dois olhos, fitos em realidades distintas – no presente, ou no passado próximo, e no futuro –, mas não como pretensa visão, e sim como percepção de que toda causa no hoje traz consequências, inevitáveis, no amanhã.
3. Evangelho (Jo 20,19-31)
O texto é um retrato da travessia da incredulidade para a fé viva naquele que venceu a morte e nos abriu o caminho da salvação. Tomé é símbolo dessa busca incessante da fé. Ele se afastou, por medo ou dúvidas, da comunidade dos fiéis. Afastar-se da comunidade é fatidicamente um caminho sinuoso que conduz ao enfraquecimento da fé. Em contrapartida, estar junto à comunidade constitui condição de possibilidade para crer e tornar-se testemunha fiel da vida que vence a morte, nutrindo-se sempre mais da ressurreição.
O v. 19 denuncia que a situação vivida pelos discípulos de Jesus, recém-executado na cruz, é de medo e insegurança, por causa dos judeus. Em João, o termo “judeus” é um actancial, para distinguir uma ação executada por alguém ou grupo; não corresponde a uma nação inteira ou a um termo gentílico, e sim a um grupo específico de pessoas que agem, movidas por interesses, relacionados ao poder religioso ou político, para pôr fim à vida de Jesus. Esse grupo de poderosos está a perseguir os que seguem Jesus, por isso essa introdução dramática. O mesmo versículo apresenta uma reviravolta no ambiente de medo, que passa a abrigar a certeza da paz, o shalom, pois Jesus adentra o recinto, rompendo as algemas do medo e dizendo: “A paz esteja convosco”. Tal saudação muda o ambiente sombrio do medo em um lugar iluminado e de paz, simbolizando prolepticamente (antecipadamente) o que acontecerá no coração incrédulo de Tomé.
Depois da saudação, o shalom (v. 20), Jesus mostrou-lhes o lado e as mãos. Ele quer dizer com tal gesto que é o Crucificado e agora está em outra condição, de ressuscitado. Há uma continuidade na descontinuidade. O novo da ressurreição, da vida nova, traz as marcas da tortura, da dor e da morte, mas estas são ressignificadas pelo amor misericordioso e divino que fez Jesus vencer a morte. Os discípulos se alegram por verem o Senhor: Kyrios é aquele que domina, e o domínio de Deus é exercido especialmente sobre a mais natural realidade, a morte. Deus não permitiu que seu Filho permanecesse impotente na morte e refém dela, ele a vence, superando seus aguilhões (cf. 1Cor 15,55-58), como expressa a música composta por Antônio do Prado: “Ó morte, estás vencida pelo Senhor da Vida, pelo Senhor da Vida!”
Os v. 21-22 apresentam novamente Jesus dizendo: “A paz esteja convoco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Então, num gesto pneumatológico, ele sopra sobre os discípulos o Espírito Santo. É a terceira Pessoa trinitária que, proveniente do Pai e do Filho, vai animar a Igreja, como garantidor e defensor da comunidade, que adquire novo sentido pela presença daquele que a sustenta e fortalece. Essa comunidade é enviada (em grego, apostélo). Em João, a pneumatologia é expressiva na cruz (Jo 19,30) e garante que a comunidade apostólica se torne convocada (ekklesia). Esta tem a missão de ser lugar de reconciliação e vínculo da paz. O v. 23 ressalta a dimensão do perdão, do per-donum, como dom total dado pelo Espírito e compartilhado entre os membros, especialmente para aquele que lá não estava anteriormente.
Os v. 24-28 apresentam uma ação transformadora, desde a volta de Tomé, chamado Dídimo ou Gêmeo, que não estava com a comunidade. O testemunho dos apóstolos – “Vimos o Senhor” (v. 25) – não garante sua credulidade; para quem está cego, imerso na falta de fé, tal testemunho não significa nenhuma luz. Para os judeus, o testemunho de uma pessoa sozinha é duvidoso, mas o de uma comunidade inteira não poderia ser descartado. No entanto, o coração do apóstolo está fechado. Ele quer tocar as chagas do Crucificado, pôr a mão no seu lado aberto. Sua fé parece empírica, pois sua experiência exige concretude, elementos irrefutáveis. A verdadeira fé, para o povo judeu, vem, contudo, pelo testemunho, pela palavra, que agora estará de volta, no centro da comunidade, com a presença do Ressuscitado (v. 26). Jesus volta, oito dias depois, e aparece a Tomé e aos demais.
O v. 27 transfere o pedido do incrédulo Tomé para a boca do fidedigno Jesus. Tomé, por sua vez, exclama em confissão de fé (v. 28): “Meu Senhor e meu Deus” (em grego, hó Kyrios mou kai hó Theós mo; literalmente, “Senhor meu e Deus meu”). Talvez essa seja a mais bela e expressiva confissão de fé presente nas Escrituras. A transformação de Tomé é sinal de que Jesus age por sua presença, mas também por sua palavra. Abre-se para nós a possibilidade de perceber que, mesmo sem vê-lo hoje, podemos nele crer, por suas palavras gravadas na história. Para Jesus, é feliz quem crê sem ver (v. 29). O Quarto Evangelho termina com os v. 30-31, que podem ser considerados o escopo ou o alvo. Os “sinais” realizados por Jesus e narrados nesse Evangelho foram escritos para duas coisas fundamentais: para suscitar a fé em Jesus, o Cristo, e para que, tendo nele fé, tenhamos a vida eterna. Isto é, a intenção do Evangelho é também soteriológica.
Por fim, pode-se dizer que esse relato paradigmático ou exemplar deseja conferir à Igreja, comunidade apostólica, até os dias atuais, a fé no Ressuscitado, pois ele (Jesus Cristo) é o “rosto da misericórdia do Pai” (papa Francisco, na Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia – Misericordiae Vultus, n. 1).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Propor que a comunidade cristã, a Igreja, seja sempre um lugar acolhedor, renovado, cheio de alegria e esperança. Convidar a comunidade a experimentar momentos de reflexão acerca da misericórdia, uma prática às vezes difícil, por causa da indiferença, dos julgamentos precipitados e das posturas de fechamento. Chamar os que estão afastados da comunidade e acolhê-los com ternura e abertura, a fim de que encontrem o Ressuscitado presente em nossas palavras e atitudes.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]