Roteiros homiléticos
A COMUNIDADE DIVINA: MODELO PARA A COMUNIDADE HUMANA
I. INTRODUÇÃO GERAL
A fé em Deus Trindade nos leva a reconhecer a beleza e a profundidade da realidade humana. Deus é UM em três pessoas, mistério de amor e comunhão, perfeita unidade na diversidade. A comunidade humana encontrará a sua verdadeira realização à medida que buscar conviver numa relação de igualdade entre todos os seus membros, respeitando as diferenças. Pela fé tivemos acesso a essa revelação. Pela fé conhecemos a Deus e entramos na sua intimidade. O caminho que nos conserva na comunhão com Deus e com os irmãos é o da sabedoria. Ela é a primeira de todas as obras divinas, a que orienta o destino de tudo e de todos (I leitura). Dessa relação íntima com Deus e com o próximo provém a paz, a perseverança nas tribulações e a firmeza no amor, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo (II leitura). Ele nos dá a conhecer toda a verdade revelada em Jesus Cristo (evangelho). Essa certeza nos faz assumir com convicção e destemor a missão de testemunhar, no meio deste mundo, o amor que torna possível a inclusão de todos os seres numa sociedade justa e fraterna, imagem e semelhança da Trindade santa.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. II leitura (Rm 5,1-5): A esperança não decepciona
Um dos temas prioritários que Paulo se dedica a aprofundar, especialmente na carta aos Romanos, é o da justificação pela fé. Para ele, não é o cumprimento das leis nem qualquer obra humana que nos tornam justos diante de Deus. Se assim fosse, a justificação teria por base os méritos pessoais. Paulo parte da premissa de que todos somos radicalmente pecadores e, portanto, necessitados da intervenção gratuita de Deus. Ela se deu em Jesus Cristo, o libertador de todos os pecados. Por meio dele, Deus realizou sua ação misericordiosa de salvação para todo o gênero humano.
Percebe-se que Paulo indica um processo de amadurecimento no caminho da fé, até que, de livre vontade e com consciência lúcida, aceitemos a Jesus como nosso salvador e vivamos, como ele nos ensinou, na vontade divina. Pelo seu sangue ele nos reconciliou com Deus e nos concede a paz em plenitude. A paz de que o texto nos fala carrega o sentido do termo hebraico shalom, o qual indica o estado de perfeita intimidade e harmonia entre os seres humanos, com a natureza e com Deus. Dele provêm todas as bênçãos que garantem uma vida de dignidade, de bem-estar e de profunda alegria.
A fé, portanto, não se reduz ao assentimento racional a um sistema doutrinário. Também não consiste apenas em momentos de oração. A fé é a atitude de entrega total e confiante a Deus, que nos salva mediante seu Filho, Jesus Cristo. Por meio dele, pela fé, temos acesso à graça da salvação, nos mantemos e nos alegramos nela.
Tudo isso nos motiva a nos gloriar em Deus mesmo nas tribulações, pois “a tribulação produz a perseverança, a perseverança produz a fidelidade comprovada e a fidelidade comprovada produz a esperança”. Trata-se da esperança militante, manifestada por meio do empenho cotidiano em acolher e fazer frutificar o amor de Deus derramado pelo Espírito Santo em nossos corações. Essa esperança “não engana”.
2. Evangelho (Jo 16,12-15): O Espírito da verdade
O texto faz parte do “livro da comunidade”, também conhecido como o “livro da glorificação” (Jo 13-17). Após o gesto do lava-pés, Jesus faz um longo discurso de despedida. De modo afetuoso, anuncia aos discípulos a sua partida iminente. É um discurso que possui caráter de testamento. De coração aberto, Jesus revela tudo o que recebera de seu Pai e demonstra a íntima relação entre ambos. Os discípulos, porém, demonstram incompreensão diante das palavras de Jesus. Apesar de conviverem com Jesus por um bom tempo, permanecem num estágio de imaturidade espiritual. São incapazes de apreender o sentido verdadeiro do testamento de Jesus. Necessitam de ajuda.
O texto faz, então, referência ao Espírito Santo, que dará prosseguimento à missão de Jesus. Ele instruirá os discípulos e os libertará das amarras que impedem o reconhecimento do Salvador. É o Espírito que conduz à verdade plena que é o próprio Jesus Cristo, Deus encarnado, conforme já havia anteriormente se revelado: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). A verdade é, pois, a própria realidade divina manifestada no amor de Jesus, que entrega sua própria vida em resgate da vida de todos. Jesus reza para que os discípulos sejam santificados na verdade (17,17.19) e possam viver na perfeita unidade, assim como ele e o Pai são UM (17,21-23).
A comunidade de João demonstra a sua caminhada de amadurecimento na fé em Jesus Cristo. As novas circunstâncias que emergem do contexto ao redor do final do século I exigem novas reflexões e novas posturas. Cresce a compreensão a respeito de Jesus, de sua íntima relação com o Pai e de sua missão de amor neste mundo. Ilumina-se, com maior profundidade, o sentido da morte e ressurreição de Jesus. Ele veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (10,10).
Os discípulos e discípulas são convidados a abrir-se às novas interpretações e exigências suscitadas pelo Espírito Santo no contexto histórico em que vivem. Prestar atenção no Espírito é assumir os desafios da história e viver, com novas expressões e novo ardor, o mesmo amor revelado em Jesus.
As três pessoas divinas são manifestamente citadas no texto. Entre elas há perfeita comunicação e perfeito entendimento. Essa realidade divina, em toda sua beleza e profundidade, é comunicada por Jesus aos seus discípulos. O Pai deu tudo ao Filho; assim também o Filho dá a conhecer tudo o que recebeu do Pai aos seus filhos e filhas. Podemos aqui trazer presente o que são Paulo escreve: “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. E vocês não receberam um espírito de escravos para recair no medo, mas receberam um Espírito de filhos adotivos, por meio do qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos e filhas de Deus. E, se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus, herdeiros junto com Cristo...” (Rm 8,16-17).
3. I leitura (Pr 8,22-31): A exaltação da sabedoria
O livro dos Provérbios apresenta a sabedoria como uma personagem. Ela já estava com Deus mesmo antes da criação do mundo. Ou melhor: ela é a primeira obra da criação e toma parte ativa em todas as outras coisas criadas por Deus, como se fosse mestre de obras ou arquiteto. Deus e a sabedoria, portanto, estão em íntima comunhão; Deus é a própria sabedoria personificada.
O texto quer ressaltar que todas as coisas têm sua fonte em Deus; cada ato criador é manifestação de sua sabedoria eterna e soberana; cada criatura é comunicação de seu próprio ser infinito. O livro da Sabedoria diz que ela “tudo atravessa e penetra”, é o próprio “hálito do poder de Deus e a pura emanação da glória do Onipotente” (Sb 7,24-25).
O último versículo desta 1ª leitura revela a imensa satisfação que a Sabedoria encontra na superfície da terra e o seu prazer de estar entre os seres humanos. A terra e seus habitantes são obras divinas. A relação íntima da Sabedoria com o Criador, desde toda a eternidade, ocorre agora com as criaturas. Da mesma maneira que esteve presente nos atos da criação de Deus, está presente para governar o universo, conservar a ordem e dirigir a vida dos habitantes da terra. Vemos que a Sabedoria guarda uma ligação muito estreita com a missão do Espírito Santo, conforme vai ser concebida no Segundo Testamento.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A festa da Santíssima Trindade é momento especial para refletir sobre nossa própria identidade e missão no mundo. Somos a família humana, formada por povos diversos e de culturas diferentes. Somos homens e mulheres chamados a nos acolher no respeito mútuo e na igualdade de direitos. Somos diferentes uns dos outros: na diferença nos completamos. Somos diversos: na diversidade nos unimos.
No texto da carta aos Romanos, ouvimos que o amor de Deus se revela com total benevolência e gratuidade. De nossa parte, resta-nos acolhê-lo com gratidão e perseverar na fidelidade a esse amor sem limites. A justificação pela fé não legitima atitudes de egoísmo e acomodação, mas nos incentiva a viver segundo o modo de Deus agir em nós: na doação plena e gratuita. É um caminhar na esperança militante que nos faz viver, aqui e agora, a vida plena que nos será dada por Deus, sabendo que a “esperança não decepciona”.
O livro dos Provérbios fala da Sabedoria que convive intimamente com Deus. Tudo o que ele faz é expressão de seu próprio ser; portanto, o universo, com tudo o que nele existe, é penetrado pelo espírito da sabedoria divina. Todas as coisas são revestidas de dignidade e devem ser respeitadas, conforme nos orienta a verdadeira sabedoria. De acordo com o modo pelo qual nos relacionamos entre nós e com todas as coisas criadas, colhemos frutos de bênção ou de maldição, de vida ou de morte...
No evangelho, Jesus nos promete o Espírito Santo para nos ajudar a viver conforme o modelo da Trindade santa, a perfeita comunidade. “O mistério da Trindade é a fonte, o modelo e a meta do mistério da Igreja... Uma autêntica proposta de encontro com Jesus Cristo deve estabelecer-se sobre o sólido fundamento da Trindade-Amor. A experiência de um Deus uno e trino, que é unidade e comunhão inseparável, permite-nos superar o egoísmo para nos encontrarmos plenamente no serviço para com o outro”. Neste sentido, as comunidades eclesiais de base caracterizam-se como “casas e escolas de comunhão” (DAp 155, 170 e 240).
► A celebração da festa da Santíssima Trindade é uma boa oportunidade de valorizar as diferentes manifestações do amor de Deus na comunidade e no mundo: os serviços e ministérios, as etnias, as denominações e tradições religiosas, os movimentos e organizações sociais, as iniciativas diversas em favor da vida, da ecologia etc.
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Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC).E-mail: [email protected]