O que temos é tão pouco, mas Deus é rico em misericórdia
I. Introdução geral
Na primeira leitura, o milagre de Eliseu é uma prefiguração do sinal realizado por Jesus, a multiplicação dos pães. E esse sinal, por sua vez, aponta para uma realidade maior, a eucaristia, fonte e ápice da comunhão entre os seguidores do Messias. Nutridos por um só pão, o Corpo do Senhor, os fiéis formam um só corpo místico de Cristo. Essa realidade é o fundamento da comunhão e da práxis cristã mencionada na epístola aos Efésios, quando se exorta os fiéis a “conservar a unidade do espírito no vínculo da paz”. Essa comunhão é ação de Deus em nós e se traduz em serviço que ultrapassa as fronteiras da Igreja como instituição. Estamos a serviço da construção do mundo fraterno, não importa quão pequenos sejamos ou com quão pouco tenhamos a contribuir. Cada um deve fazer a sua parte e esperar que Deus faça a dele.
II. Comentário dos textos bíblicos
- Evangelho (Jo 6,1-15): Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os entre eles
No Evangelho de João, Jesus realiza muitos sinais que apontam para a ação de Deus exercida por meio da missão messiânica. No texto de hoje, Jesus realiza o sinal do pão, muito significativo para a compreensão de sua identidade e de sua missão. O ambiente em que a cena se desenrola é importante para a compreensão da importância e do alcance da mensagem veiculada por esse sinal.
A Páscoa estava próxima, Jesus subiu à montanha e sentou-se. Estes três elementos nos mostram Jesus como o Mestre. A montanha é o lugar da revelação divina, onde Moisés recebeu a Lei, a instrução para o povo. O sentar-se é atitude própria do mestre quando vai ensinar seus discípulos. E, por último, a menção à Páscoa nos indica qual ensinamento Jesus quer transmitir: é um ensinamento novo realizado por meio do sinal do pão.
Antes do sinal, há uma instrução aos discípulos por meio da pergunta sobre como se pode resolver o problema de alimentar a multidão. Esse tipo de pergunta é própria do mestre para chamar a atenção do discípulo para o ensinamento que quer transmitir. E, primeiramente, o que Jesus quer ressaltar é o reconhecimento do que é ofertado: é pouco, mas há docilidade para a oferta. O ofertante é anônimo, o que pressupõe que qualquer pessoa pode ofertar algo a Deus e, por meio de uma oferta simples, mediar a ação de Deus em prol da salvação do mundo.
O sinal aqui apresentado é a eucaristia, retratada nas palavras da tradição: “tomou os pães e, depois de ter dado graças, os distribuiu” (v. 11) e em outro texto (Jo 6,23), quando se diz que há um único pão.
A distribuição do pão feita pelos discípulos significa que eles devem difundir o que receberam do Senhor: o batismo, representado pelo “peixe”, e a eucaristia, “os pães”. Essas realidades sacramentais são a fonte da pertença à comunidade e da vida cristã.
Após se fartarem, os discípulos juntaram 12 cestos, o suficiente para alimentar todo o Israel, a quem deveria ser primeiramente anunciado o evangelho. A menção de que nada deve se perder alude a Jo 6,39, que afirma que a vontade de Deus é que não se perca nenhum daqueles que pertencem a Jesus.
As pessoas ficaram admiradas, mas não foram capazes de entender o sinal do pão. O reconhecimento de Jesus como o profeta que devia vir ao mundo refere-se à esperança de um messias semelhante a Moisés, alguém que os libertaria do poder político do império romano, da mesma forma que Moisés havia libertado o povo da opressão do faraó do Egito.
Como no passado, ainda hoje se faz necessário entender esse sinal para compreender a vida e missão de Jesus. Jesus condensou a sua vida no sinal do pão. Como o trigo é triturado para fazer o pão, Jesus é o trigo triturado que gera vida plena. Sua oferta de vida, sua entrega plena na cruz, é sinal do amor de Deus pela humanidade. Por isso, batismo e eucaristia são oferecidos a todos como caminho para a salvação. Por eles, somos inseridos no mistério da vida, morte e ressurreição de Jesus. Somos feitos participantes dessa vida de entrega por amor que gera vida plena.
A opção por Jesus, por sua vida, requer que cada cristão saia do comodismo, pois a menor de nossas atitudes, por mais irrisória que seja diante dos desafios, é aceita como oferta generosa em favor da realização do bem maior, o amor pleno de Deus que gera salvação para o mundo.
Jesus triturou sua vida, ofertando-a no pão; somos chamados, pela nossa participação na mesa eucarística, a fazer o mesmo que ele: ofertar nossa vida para que ninguém se perca, mas todos ressuscitem no último dia.
- I leitura (2Rs 4,42-44): Comeram e ainda sobrou, conforme a palavra do Senhor
Os pães que o homem trouxe para Eliseu eram uma oferenda a Deus a ser entregue pelas mãos do profeta. Eram pães feitos com as primícias, isto é, com os primeiros e melhores grãos da colheita. O texto menciona um homem, uma pessoa anônima, cujo nome não importa saber, pois, se essa narrativa chegou até nossos dias, isso se deve ao gesto dele de partilha e à ação de Deus em resposta àquele gesto.
Há uma ordem do profeta para que o ofertante distribua os pães ao povo. É uma ordem estranha, porque o homem reconhece que tem tão pouco para ofertar e há tanta gente para alimentar. O profeta reitera a ordem, agora assegurando, por meio de uma profecia, que Deus fará com que todos sejam saciados e ainda sobrará. A palavra dita pelo profeta foi finalmente cumprida quando o ofertante mudou o foco dos próprios pensamentos, deixou de centralizar-se na consideração do pouco que tinha e passou a confiar na ação de Deus.
Durante séculos, os sábios de Israel viram nessa passagem bíblica não apenas a providência de Deus, mas a importância da participação humana – apesar de ter pouco a oferecer – na obra conjunta com Deus. A partilha é a efetivação da vocação humana à comunhão fraterna. Todo gesto de partilha não passará sem uma resposta de Deus.
- II leitura (Ef 4,1-6): Num só corpo
Com o capítulo 4, a carta aos Efésios começa grande exortação sobre o que vem a ser a vida cristã na prática. No texto de hoje, os cristãos devem levar uma vida digna da vocação que receberam: serem outro Cristo. A vida cristã é regida por valores totalmente diferentes daqueles que orientam a sociedade de ontem e de hoje.
“Suportai-vos uns aos outros no amor” (v. 2) significa que o amor de cada um ao seu próximo deve ser o suporte, para que ninguém venha a cair. “Pelo vínculo da paz” quer dizer que o Shalom é o elo que nos mantém unidos no mesmo espírito. O Shalom não significa concordar sempre com as ideias dos outros ou nunca haver atritos entre nós. Significa que o outro pode contar comigo sempre, embora pensemos bem diferente um do outro.
Somos distintos, mas formamos um só corpo. Estamos conectados existencialmente, pois o Pai está “no meio de nós e em cada um de nós” (v. 6). Não é possível seguir Jesus a não ser entrando nessa comunhão. “Há um só corpo”: o egoísmo sequestra a dignidade da vocação à comunhão, que se efetiva em gestos concretos no dia a dia.
III. Pistas para reflexão
- Todo aquele que faz autêntica experiência com Deus torna-se mais preocupado com o ser humano e mais dócil à ação divina. Quem tem verdadeiro encontro com Deus põe-se a seu serviço em favor do próximo. A mesquinharia, o egoísmo e o indiferentismo são sinais de que a pessoa está longe de ser religiosa no sentido exato da palavra, ou seja, de estar ligada a Deus. Em vez de servir a Deus servindo o próximo, muitas pessoas são, de fato, usurpadoras do sagrado, ou seja, usam a religião em benefício dos próprios interesses.
- É louvável que a homilia incentive cada um a fazer sua parte, a não ser indiferente às necessidades das pessoas nem à vontade de Deus. Ainda há muitos necessitados em nosso meio, o que é sinal de que há muito ainda a ser feito para que possamos dizer, com toda a certeza, que vivemos em comunhão. Aproximar-se da mesa eucarística com um coração indiferente às necessidades alheias é uma ofensa à misericórdia de Deus.
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]