Publicado em janeiro-fevereiro de 2025 - ano 66 - número 361 - pp. 49-52
26 de janeiro – 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
A manifestação do projeto do Deus da vida e a unidade do corpo de Cristo
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo convida-nos a refletir sobre a unidade e a missão da Igreja, destacando como cada membro do corpo de Cristo tem um papel vital a desempenhar. As leituras apresentam a importância da escuta da Palavra de Deus, a diversidade dos dons espirituais e a missão de Jesus proclamada no Evangelho. A unidade, a missão e a transformação são temas centrais que nos ajudam a compreender como podemos viver plenamente nossa fé na comunidade e no mundo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ne 8,2-4a.5-6.8-10)
Esse trecho do livro de Neemias narra um momento importante da história de Israel, durante a reconstrução de Jerusalém, após o exílio babilônico. Esdras, o sacerdote, lê a Lei de Deus para todo o povo reunido numa praça em Jerusalém. Essa liturgia é solenemente presidida em torno do livro da Lei de Deus, muito provavelmente o núcleo do atual Pentateuco, e nela a comunidade dos repatriados, o novo Israel, professa sua fé. É nesse contexto que surge o judaísmo, centrado na observância da Torá, pois é nela que se narra a caminhada do povo de Deus, incluindo normas religiosas e legais que irão orientar a vida social, religiosa e política da comunidade judaica, cujo núcleo central são os repatriados. Por isso, até os dias atuais, o judaísmo professa que a Palavra de Deus se fez livro.
A leitura é feita publicamente, como um ato de renovação da aliança entre Deus e seu povo. O texto evidencia a importância da escuta atenta da Palavra de Deus e a resposta do povo com alegria, pois este começa a compreender e interpretar as palavras lidas pelos levitas. Nesse sentido, ler, interpretar e aplicar a Palavra de Deus na vida cotidiana é o maior desafio para os seguidores do Deus da vida, tanto ontem quanto hoje.
2. II leitura (1Cor 12,12-30)
A comunidade de Corinto recebe uma carta de Paulo em um momento em que enfrenta várias divisões internas. O apóstolo adota uma abordagem didática, ao usar a metáfora do corpo para ilustrar que a comunidade cristã precisa começar a compreender na prática o que é viver a unidade na diversidade.
Assim como um corpo é composto de muitos membros, Paulo destaca que a Igreja também é formada por pessoas que possuem dons únicos, concedidos pelo Espírito Santo. A comunidade necessita entender que cada membro é importante para o funcionamento de todo o corpo.
Nesse sentido, é essencial valorizar a diversidade dos dons em prol do bem comum. Todos os membros do corpo estão interligados e são interdependentes, com o objetivo de colaborar para o bem-estar e desenvolvimento de toda a comunidade.
3. Evangelho (Lc 1,1-4; 4,14-21)
Lucas situa o início do ministério público de Jesus na Galileia logo após seu batismo, realizado por João, e a tentação no deserto. Escrevendo para um público grego, Lucas pretende apresentar uma narrativa ordena- da dos eventos da vida de Jesus (Lc 1,1-4). No capítulo 4, Jesus volta à Galileia “com a força do Espírito” (Lc 4,14), destacando a orientação divina em seu ministério. Ele retorna à sinagoga de Nazaré, onde lê o livro de Isaías, definindo assim a identidade de seu projeto e os rumos de sua missão.
O trecho de Lc 4,14-21 serve como uma espécie de declaração programática no início da vida pública de Jesus. Ele lê Isaías 61,1-2, um texto que fala sobre a unção do Espírito do Senhor para trazer boas-novas aos pobres, liberdade aos cativos, recuperação da vista aos cegos e libertação aos oprimidos. “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (v. 21) é o que Jesus declara após ler a passagem de Isaías. Ele deixa claro do que se trata e a quem se destina seu projeto.
A leitura que faz na sinagoga e a declaração de seu cumprimento geram grande impacto. É em Nazaré, uma cidade pequena e com pouca importância política e religiosa, que se inicia o projeto de Jesus. No século I, a espera de um Messias era comum, pois se ansiava por alguém que pudesse libertar o povo política e nacionalmente. Jesus propõe uma rota diferente e centra seu projeto na libertação social e espiritual mais ampla.
Os ouvintes de Jesus inicialmente recebem sua mensagem muito bem, mas rapidamente isso se transforma em rejeição e escândalo (Lc 4,22-30). Aqui se vê claramente a tensão entre o que os ouvintes esperam e o que de fato o projeto de Jesus propõe. Ele declara firmemente que a profecia se cumpre nele, desafiando a compreensão tradicional do Messias e apontando para nova compreensão do seu papel.
É interessante notar que Lucas provavelmente utilizou fontes comuns a Mateus e Marcos, com o objetivo de adaptar seu conteúdo para um público específico. Desde o início, Lucas apresenta Jesus como aquele que é guiado pelo Espírito, deixando claro que Jesus é a continuidade do projeto do Deus da vida.
É claro que o projeto de Jesus anuncia as boas-novas aos pobres, a libertação dos cativos, a recuperação da vista aos cegos e a libertação dos oprimidos. Sem dúvida, é uma nova era de justiça e restauração, introduzida pelo Reino do Deus da vida. As promessas proferidas pelos profetas se fazem presentes, e este é um tema importante para Lucas, que apresenta Jesus como o clímax da história salvífica de Israel.
Jesus é rejeitado em Nazaré e aceito pelos de fora de Israel (Lc 4,24-27). O Reino de Deus é inclusivo, e o Evangelho não é apenas para Israel, mas também para todos os povos, especialmente para os mais oprimidos e marginalizados. Portanto, a proclamação de Jesus desafia as expectativas de um Messias meramente político. Nesse sentido, seu projeto é redefinido para a inclusão de todos e uma transformação mais abrangente da humanidade e da sociedade como um todo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– O projeto de Jesus é para quem deseja segui-lo. A missão de Jesus é para quem deseja seguir seu projeto; é inclusiva, transformadora e libertadora. O convite é para que reconheçamos a graça de Deus em nossa vida e nos comprometamos com o projeto de Jesus, que nos traz boas-novas de libertação.
– Compromisso de renovação. O povo de Israel foi convidado humildemente a renovar sua aliança, sua Lei. Dessa forma, todos somos convidados a renovar nosso compromisso com a Palavra de Deus. É possível vivermos de tal forma que consigamos transformar nossa vida e nossas comunidades?
– Diversidade dos dons e unidade. Paulo nutre nas comunidades a valorização da diversidade na unidade do corpo de Cristo. Podemos usar nossos dons para promover a unidade e o bem comum em nossa comunidade?
– Convite ao compromisso. Vivemos em um momento em que a raiz cristã do amor está cada vez mais fora de moda. Percebemos que o amor se reduz apenas à utilidade, ao prazer e ao individualismo, com cada um buscando apenas os próprios interesses. Nunca é tarde para aprender a viver com maior profundidade. Jesus proclamou a Boa-nova em Nazaré e, com sua própria vida, ensinou todos os cristãos a viver com um amor mais pleno e comprometido.
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos bíblicos on-line.