Ser conhecido e reconhecido pelo Bom Pastor
I INTRODUÇÃO GERAL
Todos querem ser conhecidos e reconhecidos pelo Bom Pastor. Ser conhecido e reconhecido é condição vital para a construção de uma identidade sadia. O Bom Pastor é aquele que se relaciona pessoalmente com cada uma de suas ovelhas. Delas sabe o nome e com elas interage. Há sociabilidade, ou seja, não são estranhos um para com o outro. E para além disso, os textos insistem em registrar a unicidade do Bom Pastor, ou seja, ele é um só: existe somente uma pedra angular e em nenhum outro há salvação. Para Lucas, a salvação significa a libertação dos seres humanos do mal – seja ele físico, político, social, moral – e a restauração do humano a um estado de integridade.
II COMENTÁRIOS AOS TEXTOS BÍBLICOS
- I leitura: At 4,8-12
A declaração de Pedro na primeira leitura – “Jesus se converteu em pedra angular; nenhum outro pode salvar e, sob o céu, não foi dado nenhum outro nome que possa nos salvar” – recorda-nos que Deus, por meio de seu Filho, fala a todos os seres humanos. E para reforçar sua proclamação de caráter querigmático, Pedro introduz uma alusão ao Antigo Testamento (Salmo 118,22: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”), revelando o plano divino a que pertence tudo o que havia acontecido. Todavia, Pedro faz uma modificação no texto dos Salmos para aplicá-lo a Jesus. É necessário que os “outros” possam escutar a voz do único e verdadeiro pastor. Pedro não economiza palavras para afirmar que o nome de Jesus é a fonte de poder acerca da qual haviam perguntado.
Pedro fala inspirado pelo Espírito Santo e introduz o Espírito em sua função de inspirador da declaração profética em um momento crucial. O apóstolo dirige sua explicação não somente às autoridades religiosas de Jerusalém, mas também a todo Israel. Dessa forma, continua seu testemunho apostólico em Jerusalém, ao mesmo tempo que o transforma em um discurso missionário dirigido a todo Israel. Em seu discurso, Pedro repete a essência do querigma primitivo, isto é, crucificação-morte-ressurreição, e ressalta o contraste entre “vós” e “Deus”, entre a conduta humana culpável e a ação corretiva e curadora de Deus.
Conforme a mensagem de Jesus vai sendo anunciada e as pessoas vão mudando radicalmente de vida, as autoridades se sentem incomodadas. O texto da primeira leitura incomoda e revela a complexidade do ser humano revelada nas palavras de Pedro: “estamos sendo interrogados porque fizemos o bem”. Parece que a perplexidade de Pedro também é a nossa! Mas a mensagem de Jesus não pode ficar aprisionada. Trata-se de uma palavra para atingir diretamente o coração das pessoas. Por isso, Pedro discursa cheio do Espírito Santo. Ele não fala de si mesmo, e sim da perspectiva do reino. É corajoso ao denunciar as autoridades como responsáveis pela morte de Jesus. Pedro não teme as autoridades. Sua vida está completamente entregue e dedicada a Jesus.
- II leitura: 1Jo 3,1-2
Nossa posição relativamente a Deus é maravilhosa, ou seja, uma posição que nos permite ser chamados de filhos de Deus. Mas devemos notar que esse é um privilégio dado a cada um de nós. Uma posição outorgada por Deus. Por conta disso, não desenvolvemos a arrogância, como se a filiação divina fosse uma conquista nossa. O que somos não depende de nós, mas do Deus que em nós habita.
Nesse sentido, há um passivo teológico. A posição que adquirimos não é fruto de nossa inteligência, de algum conhecimento secreto, de nossos esforços ou ainda de alguma presumida integridade de vida. A ação que transforma vem de fora para dentro. Trata-se de ação divina e, por isso, tem em Deus tanto o princípio quanto o final de todas as coisas.
Nossa posição em Cristo nos faz conhecidos por ele e conhecedores dele. Mas também estabelece o contraste com o mundo. O mundo não nos conhece porque também não conheceu a Deus. Desde o início são enfatizados, portanto, dois estilos de vida: um marcado pelo amor e pela prática da justiça e outro fundamentado no ódio e na prática da injustiça.
- Evangelho: Jo 10,11-18
A terceira leitura nos propõe a figura do bom pastor. Nela se diz que o mercenário, para quem as ovelhas realmente não possuem nenhum valor, as abandona e foge ao menor sinal de perigo. Gregório Magno (540-604) faz uma belíssima aproximação dessa passagem: “Fora do caso de perigo, não parece tão fácil saber quem é pastor e quem é mercenário. Com efeito, se o tempo de calmaria fosse prolongado, tanto o mercenário quanto o pastor vigiariam o rebanho. Somente a chegada do lobo demonstra com que espírito cada um cumpre suas funções. O lobo se apodera das ovelhas quando um homem iníquo ou um bandido intenta oprimir aos crentes. Aquele que tinha apenas aparência de pastor, porém sem de fato o ser, abandona, portanto, as ovelhas e foge. Como teme pelo perigo, não tem coragem suficiente para se opor aos ataques injustos. E foge, não já no sentido de que abandone seu lugar, mas porque nega aos fiéis o apoio que esperavam. Foge porque, havendo comprovado a injustiça, se cala. Foge no sentido de que se fecha em uma absoluta solidão”.
A crítica formulada pelo Evangelho de João se refere a certos líderes do judaísmo e da Igreja primitiva. Trata-se de como servimos à comunidade com os nossos dons e capacidades. Estamos dispostos a entregar nossa capacidade, nosso tempo, nossas competências para o bem daqueles que lideramos? Ou de fato preferimos uma mentalidade de mercenários à solicitude do verdadeiro pastor? No Antigo Testamento, particularmente em Ezequiel 34, encontramos palavras que criticam os pastores (reis e governantes) que pastoreiam a si mesmos: “Ai dos pastores de Israel que são pastores de si mesmos [...]. Não é do rebanho que os pastores deveriam cuidar?” E, logo a seguir, Javé é descrito como o Bom Pastor: “Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas para cuidar delas [...]. Eu mesmo conduzirei minhas ovelhas para o pasto e as farei repousar” (Ez 34,15).
Em João 10,11-18, por duas vezes Jesus se expressa dizendo que é o Bom Pastor: “Eu sou o Bom Pastor” (vv. 11 e 14), enfatizando, possivelmente, o contraste e a diferença em seu modo de agir. Diferentemente dos mercenários, ele não busca os próprios interesses. O centro de sua preocupação é a vida plena da comunidade. Jesus se descentraliza e caminha em direção aos outros. Enquanto os mercenários se fecham em si mesmos e se utilizam dos outros para seu benefício pessoal, a relação de Jesus com as ovelhas é de plena identificação. Não há muros ou barreiras que causem obstáculos. Cria-se relacionamento interpessoal entre ambos: “Conheço minhas ovelhas e elas me conhecem”.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Há uma diferença muito grande e essencial entre o bom pastor e o mercenário: enquanto o primeiro protege e doa a própria vida para proteger a ovelha, o segundo pensa somente de acordo com os próprios interesses e benefícios; o primeiro sai de si para pensar no bem coletivo, e o segundo resume a vida a si mesmo e considera as pessoas como sujeitas ao seu serviço.
– Uma sociedade marcada por individualismo, egoísmo, violência, consumismo, intolerância e ódio há de se espantar com o estilo de vida do discípulo de Jesus. Todo discípulo deve se apresentar como sal da terra e luz do mundo. Nesse sentido, ser discípulo traz o significado profundo de causar diferença nos lugares por onde vive e passa. Fundamentalmente, o discípulo é um espelho que reflete a própria vida de Jesus. Assim, uma pergunta se torna essencial: em seus passos, que faria Jesus?
Luiz Alexandre Solano Rossi
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUCPR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]