Deus vem em nosso socorro e nos liberta
Introdução geral
As leituras bíblicas deste domingo nos introduzem no mistério do amor de Deus, que se solidariza com as pessoas que sofrem e oferece-lhes a libertação de todos os males. É o Deus sempre fiel à aliança que estabeleceu com o seu povo. Em qualquer situação histórica, ele se encontra muito próximo, ouve as súplicas, acolhe as dores e indica os caminhos de vida e de liberdade. O profeta Jeremias proclama uma palavra de coragem e de esperança aos aflitos e desanimados no exílio da Babilônia: “O Senhor salva o seu povo!” E Deus confirma que haverá de reunir o povo disperso, em meio ao qual “há cegos e aleijados, mulheres grávidas e que dão à luz, todos juntos”, porque ele é Pai de todos (I leitura). Seu amor se manifestou de modo pleno em seu Filho, Jesus Cristo, que veio para libertar o ser humano, sendo uma boa notícia para os excluídos – como foi para aquele cego à beira do caminho, Bartimeu, conforme narra o Evangelho de Marcos. Sua cegueira reflete a dos discípulos, que não conseguem entender que tipo de Messias é Jesus. Isso será compreendido somente após sua morte e ressurreição. Jesus é o Messias, Filho de Deus, que se entregou livremente para a vida do mundo. Ele é o sumo e eterno sacerdote, “capaz de ter compreensão por aqueles que o ignoram e erram” (II leitura). Em Jesus e com Jesus também nós assumimos o papel sacerdotal, oferecendo a nossa vida como dom para Deus e para os irmãos.
Comentário dos textos bíblicos
- I leitura (Jr 31,7-9): O Senhor salva o seu povo
Jeremias foi um profeta ativamente engajado na política de seu tempo. Sua atuação se dá em várias etapas, entre os anos de 630 e 580 a.C. O Reino do Norte (ou Efraim) fora invadido e destruído em 722 a.C. pelos assírios. Há muitos exilados na Assíria. Internamente, o povo sofre com a política centralizadora do rei Josias (cf. 2Rs 22-23). Além disso, Jeremias participou dos fatos que culminaram com a invasão do exército babilônico, a destruição do templo e da cidade de Jerusalém. Uma parte da população de Israel é deportada (cf. 2Rs 24-25). Devido à sua ação profética, Jeremias foi perseguido, preso e teve de fugir para o Egito, onde morreu.
O texto da liturgia deste domingo faz parte do chamado “livro da consolação” (Jr 30-31), em que, por ordem de Deus, Jeremias anuncia aos exilados um futuro de paz, de liberdade e de alegria na terra de Israel. Todos os exilados serão reunidos dos confins da terra e voltarão à sua pátria. Isso acontecerá por obra gratuita de Deus. É boa notícia que culminará com a celebração de uma nova aliança: “Então serei seu Deus e eles serão o meu povo... Todos me conhecerão, dos menores aos maiores, porque perdoarei sua culpa e não me lembrarei mais do seu pecado – oráculo do Senhor” (Jr 31,31-34).
A marca da sociedade que Jeremias sonha ver com a volta dos exilados não é a restauração da monarquia, mas a fidelidade à aliança com Deus. Ele liberta o seu povo da opressão do mais forte. Apresenta-se como “pai para Israel”, alguém que reúne os filhos dispersos e reconstitui sua família. Ninguém deverá ficar de fora. Os cegos, os aleijados e as mulheres grávidas são especialmente lembrados. Todas as pessoas fracas e indefesas recebem cuidado prioritário. As mulheres grávidas e que dão à luz prenunciam o futuro de vida e alegria para o povo.
A profecia cumpre a missão de animar a esperança militante no meio das pessoas vítimas da opressão e da violência dos grandes. Deus toma posição e vem salvar os seus filhos e filhas cuja vida está ameaçada. Uma terra de liberdade e vida para todos é vontade de Deus e tarefa nossa.
- Evangelho (Mc 10,46-52): Jesus liberta da cegueira
A cura do cego Bartimeu se dá na última parada de Jesus com seus discípulos antes da chegada a Jerusalém. Como já constatamos nos domingos anteriores, essa viagem, desde a Galileia, constitui um caminho pedagógico no qual Jesus se ocupa, de maneira especial, da formação dos seus discípulos. Percebe-se que, no esquema do Evangelho de Marcos, esse caminho está emoldurado entre duas narrativas de curas de cegos: a de Betsaida (8,22-26) e essa do cego à saída de Jericó. O primeiro cego recupera a vista após um processo gradual: Jesus o retira para fora da cidade, cospe-lhe nos olhos e, por duas vezes, impõe-lhe as mãos. Esse cego de Jericó, para recuperar a vista, Jesus não precisa nem mesmo tocá-lo. O cego de Betsaida é conduzido a Jesus por outras pessoas e não lhe é dado nome próprio; o da saída de Jericó tem iniciativa própria, grita por Jesus de Nazaré sem se deixar intimidar pelos que procuram calá-lo e possui um nome próprio. Podem-se perceber outros detalhes que revelam as diferenças e semelhanças entre os dois relatos.
Ambos os cegos são representativos dos discípulos no que diz respeito ao conhecimento que têm de Jesus. De fato, logo após a cura do cego de Betsaida, constatamos a confissão pública de Pedro, que fala em nome dos demais discípulos. Teoricamente, ele sabe que Jesus é o Messias, mas não admite que seja vulnerável ao sofrimento e à morte a ser impingida pelas autoridades religiosas e políticas de Jerusalém. Nos discípulos permanece a concepção de um messianismo de poder e glória. Seguir Jesus, para eles, é a oportunidade para realizar as suas ambições de fama e de domínio, o que provoca discussões internas a respeito de quem seria o maior. Eles estão em situação de cegueira. Compreenderão, pouco a pouco, quem é realmente Jesus e qual é sua missão no mundo, conforme o texto de domingo passado: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (10,45).
O cego Bartimeu representa o estágio conclusivo do processo de abertura dos olhos pelo qual os discípulos estão passando. Não é fácil desvencilhar-se das ideologias dominantes, representadas, nesses episódios, pelas cidades. O primeiro cego, Jesus o retirou de dentro de Betsaida para poder curá-lo. Bartimeu já está fora de Jericó e encontra-se à beira do caminho. Essa situação lembra o ensinamento de Jesus contido na parábola da semente: “Os que estão à beira do caminho onde a Palavra foi semeada são aqueles que ouvem, mas logo vem satanás e arrebata a Palavra que neles foi semeada” (Mc 4,15). De fato, inicialmente Bartimeu se dirige a Jesus e, por duas vezes, o chama de “Filho de Davi”. Em sua concepção, Jesus seria o Messias à moda de um rei triunfalista. Satanás (que se manifesta nas ideologias dos grandes e poderosos) ainda domina a consciência de Bartimeu, como aconteceu com Pedro quando tentou impedir que Jesus fosse a Jerusalém e seguisse o caminho de um servo sofredor. Jesus reagiu, dizendo: “Afasta-te de mim, satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” (8,33).
Jesus vence satanás, que cega as pessoas. É necessária, porém, a disposição de deixar-se curar e mudar de mentalidade. É o que fez Bartimeu. Para isso, teve de vencer os impedimentos daqueles que o mandavam calar-se. Jesus ouviu o seu grito, parou e mandou chamá-lo. Deus ouve o clamor dos oprimidos! Perguntou Jesus: “Que queres que eu te faça?” O cego já havia se desvencilhado de seu manto, que simboliza suas seguranças pessoais, sua dependência da mendicância, seu passado de atrelamento e submissão a um sistema excludente. Está pronto para acolher a verdade que liberta – Jesus e sua proposta. Então já não se dirige a Jesus com o apelativo “Filho de Davi”, e sim com a expressão reverente “Rabbuni”, que significa “meu mestre”. E manifesta seu profundo desejo, fruto de longa busca: “Que eu possa ver novamente”. É sinal de que ele um dia enxergava. O veneno de “satanás”, ou seja, os ideais que não são de Deus, cegaram-no. Bartimeu representa os discípulos que abrem os olhos com a graça de Jesus e o seguem no caminho da cruz. Bartimeu é cada um de nós: Jesus nos ajuda a abandonar o “manto” do egoísmo e da submissão às ideologias dominantes e tornar-nos conscientes da missão que temos de construir um mundo como casa de vida digna sem exclusão.
- II leitura (Hb 5,1-6): O sacerdócio de Jesus
A carta aos Hebreus apresenta Jesus como sumo e eterno sacerdote. Para que os ouvintes e leitores possam entender essa mensagem, os autores tomam como exemplo a função sacerdotal exercida na tradição judaica. O sumo sacerdote era investido da mais alta dignidade como mediador entre Deus e o povo. Sua função era oferecer dons e sacrifícios pelos pecados do povo e também pelos seus. Essa imensa honra só podia ser concedida a quem fosse chamado por Deus: por tradição de fé e legitimação legal, alguém da descendência de Aarão. A descrição do sumo sacerdote aqui é idealizada, pois sabemos que essa função no templo de Jerusalém foi, muitas vezes, conquistada por pessoas interesseiras, que faziam o jogo da política imperial. Também dificilmente um sumo sacerdote agia demonstrando consciência das próprias fraquezas e compreensão das fraquezas dos outros.
Portanto, a idealização da função sacerdotal visa a contemplar e acolher na fé o novo e definitivo sacerdócio de Jesus Cristo, totalmente superior ao antigo. Entregando-se como vítima expiatória pelos pecados de toda a humanidade, tornou-se o eterno sumo sacerdote. Ele não entrou na linhagem sacerdotal oficialmente concebida no sistema religioso judaico. Não foi por descendência de Aarão, e sim “segundo a ordem de Melquisedec”. Este personagem é de origem misteriosa. Ele aparece a Abraão (Gn 14,18-20) como “rei de Salém e sacerdote do Deus altíssimo”, concedendo a bênção ao pai do povo de Israel. Revela ser superior a Abraão. Com isso, relaciona-se com a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio de Aarão. O nome de Melquisedec significa “em primeiro lugar ‘Rei da Justiça’; e, depois, ‘Rei de Salém’, o que quer dizer ‘Rei da Paz’” (Hb 7,2). É figura da missão sacerdotal de Jesus Cristo, recebida diretamente de Deus Pai. Jesus assumiu a condição humana e é capaz de compreender as fraquezas do ser humano. Com plena humildade e obediência a Deus, ofereceu-se de uma vez por todas para a justiça, a paz e a salvação do mundo.
III. Pistas para reflexão
– O Senhor, nosso Deus, vem para nos salvar. Ele é nosso Pai misericordioso. O profeta Jeremias percebe a presença consoladora de Deus no meio do povo exilado. Anuncia a palavra de esperança e alegria, que é a reunião de todos os dispersos na terra onde reina a liberdade e a paz. Ninguém fica de fora: os cegos, os aleijados e as mulheres grávidas, que representam as pessoas frágeis e indefesas, recebem proteção e carinho especiais... É oportuno relacionar com o mês das missões...
– Jesus é Deus que se fez carne. Ele caminha com seu povo e ajuda os discípulos a reconhecê-lo como o Messias servidor, curando-os da cegueira das ideologias dominantes. Bartimeu representa todos os que buscam Jesus com sinceridade. Vence as barreiras dos que desejam impedi-lo. Jesus ouviu o grito de Bartimeu, parou, deu-lhe atenção e a visão foi recuperada. O que nos impede de conhecer e seguir verdadeiramente Jesus Cristo? Em que “cegueiras” podemos cair hoje? Como podemos nos libertar delas? Pode-se enfatizar a importância de participar do processo de iniciação à vida cristã, dos cursos de formação...
– Jesus é nosso mediador junto a Deus Pai. Ele nos conhece integralmente, pois se fez nosso irmão. Deu o exemplo de entrega da vida pela paz e justiça no mundo. Envia e abençoa os seus discípulos missionários para que continuem a sua obra...
Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC. E-mail: [email protected]