No visível, vemos a invisível glória de Deus
Introdução geral
Jesus Cristo é o ponto máximo da revelação de Deus. Igual a Deus (2ª leitura), comunica-nos sua vida divina. É essa a melhor notícia que a humanidade poderia receber (1ª leitura) e pela qual, desde os seus primórdios, sempre esperou: o Verbo de Deus se encarna e nos dá o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Nós o acolhemos pela fé, que nos faz experimentar algo da glória de Deus (evangelho).
Comentário dos textos bíblicos
- Evangelho (Jo 1,1-18)
O prólogo do Evangelho de João fala da Palavra que, existindo em Deus, vem a este mundo. Um dos pontos fortes de sua mensagem encontra-se nos v. 10-13. Eles apresentam o contraste entre aqueles que aceitam e os que rejeitam a vinda da Palavra feita homem. A Palavra de Deus, no prólogo de são João, não é só aquela por meio da qual o cosmo e o habitat humano foram feitos (v. 3.10), mas aquela que é a vida e que a comunica à humanidade (v. 3). Ela veio ao mundo humano (“estava no mundo”, v. 10), mas – eis o paradoxo! – a humanidade, criada por meio dela e que dela tinha a vida, não a reconheceu (v. 10) em sua dignidade divina (v. 1) e em sua condescendência que a fez vir ao seu encontro (“ela veio”, v. 11a). Não se diz que sua obra ou sua mensagem não foram aceitas, mas sim que sua pessoa não foi aceita. Como é sério que a humanidade – uma parte dela – possa rejeitar Aquele que lhe vem ao encontro como fundamento da vida! Por que o fizeram? O texto não explica, apenas descreve o acontecimento, como se ele não precisasse de explicação ou, em outras palavras, como se ele fosse (considerado em si mesmo) inexplicável.
Esse mesmo pensamento volta no v. 11, mas de forma mais enfática, pois são precisamente os “seus” que não o aceitam. Também aqui se trata da humanidade inteira. Ela é “sua”, pertence à Palavra de Deus, pois foi criada por meio dela e dela recebeu a luz (v. 4.9). Mais tarde, o mesmo evangelho dirá que a humanidade é amada até o extremo do amor (Jo 13,1: “ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo”). Essa humanidade não recebeu em seu “mundo” o Verbo que é senhor do mundo e da humanidade.
Houve, no entanto, quem o recebesse (v. 12). Fica claro, assim, que Deus deixou uma possibilidade de opção. A história é o lugar da decisão humana. Aqueles que se encontravam nas trevas (v. 4) podiam acolher a luz. “Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo”, disse Jesus (Jo 9,5); e completou afirmando que essa presença da luz exige um discernimento entre aqueles que a recebem e os que a rejeitam (cf. Jo 9,39).
Fica claro igualmente que acolher a Palavra traz uma consequência maravilhosa: receber o poder de se tornar filho de Deus. A Palavra dá essa capacidade, como que transfere um poder que lhe é próprio (ele é o Filho unigênito do Pai: v. 14) aos que a acolhem. Isso acontece pela fé (v. 12: “os que creem em seu nome”), que é a atitude fundamental para a salvação: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou” (Jo 6,29); “Todo o que nele crer... tenha a vida eterna” (Jo 3,15); “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá... Crês nisso?” (Jo 11,25-26).
Essa fé, na prática da Igreja dos inícios, leva ao batismo, que é nascimento não segundo a natureza, mas nascimento “de Deus” (v. 13; cf. Jo 3,3: “nascer do alto”).
Num mundo que tantas vezes rejeita, teoricamente ou na prática, o Filho de Deus encarnado, é fundamental renovar nossa opção de fé, recebê-lo. Ele não veio de forma esplendorosa, impondo-se por uma presença cheia de poder. Mas, na simplicidade da vida humana que assumiu, tanto mais apela para que ultrapassemos o imediato e cheguemos a reconhecê-lo em sua realidade escondida. Na fé que nos torna filhos de Deus, podemos, na sua vida humana, “ver a sua glória”, a “glória que ele possui como Unigênito do Pai” (v. 14).
A celebração do Natal é apelo para renovar em nós a consciência de, no Filho unigênito, sermos filhos de Deus. E como o Verbo veio ao mundo revelar quem é Deus, quem é Deus para nós e quem somos nós para Deus, assim, cada um é chamado a entrar nessa dinâmica e levar a todos os que encontrarmos, à sociedade em suas estruturas, às culturas, a boa notícia de um Deus que se faz próximo e deseja ser recebido, para conduzir todos à plenitude da vida. Experimentando seu divino poder (sua glória), tornamo-nos testemunhas da Palavra que se fez carne e não só viveu neste mundo, mas ainda hoje vive (invisível, mas realmente) entre nós.
- I leitura (Is 52,7-10)
O texto de Isaías apresenta a grande exultação proveniente da boa notícia de que o povo pode finalmente retornar à sua terra, pois terminou o exílio na Babilônia. É alegre anúncio, que traz uma realidade nova. Não só os pés são belos, mas o que acontece, o anúncio da boa notícia. O mensageiro traz a notícia de algo que já aconteceu, que já está se realizando. E o centro de sua mensagem é: “Teu Deus reina”, ele é o Senhor.
À voz do mensageiro une-se então a voz das sentinelas. Elas gritam de alegria, pois veem Deus, que retorna a Sião. É um modo de falar da certeza e da realidade da vinda de Deus, que, concretamente, significa que os exilados retornarão e reconstruirão a cidade de Jerusalém, então semidestruída.
Por fim, levantam a voz as “ruínas de Jerusalém”. Não só o povo que ficou na terra, mas também os que foram para o exílio se rejubilam com a nova época que está começando. Deus consolou o seu povo, mudou sua situação (v. 9). Manifestou, assim, sua força aos estrangeiros (os babilônios e todos os que testemunharam a derrota da Babilônia e a volta dos exilados), que reconheceram então o poder de Deus que salva seu povo (v. 10).
No Novo Testamento, já não se trata de Deus que retorna a Sião, mas do Verbo que “sai” de sua transcendência e vem à humanidade, para revelar a todos a boa notícia. Natal não é um acontecimento intimista. Embora seja celebrado no coração, pessoalmente, no seio da comunidade eclesial, tem dimensões universais. Como tal, deve ser vivido, testemunhado, anunciado. Natal é apelo à missão, ao anúncio que porta alegria, que renova as ruínas deste mundo, transformando-as de trevas em luz, levando-as ao máximo do que a humanidade pode desejar: a comunhão com Deus – a transbordar para todas as realidades.
- II leitura (Hb 1,1-6)
Enquanto o prólogo de são João acentua o Verbo na sua preexistência e em sua vinda na história, o início da carta aos Hebreus põe em relevo a Palavra como ponto ômega da revelação de Deus, dirigida a nós (“falou-nos”) “nestes dias que são os últimos” (v. 1). Insiste na dignidade, superior a tudo, desta última e definitiva Palavra de Deus, Jesus:
– Tudo pertence a ele, ele é o herdeiro de tudo; por ele todo o universo foi criado (v. 2);
– Ele é a imagem pura e esplendorosa da glória, da transcendência e da beleza fascinante do Pai (v. 3), e, nisso, é igual ao Pai;
– Tendo realizado a salvação do gênero humano, está à direita do Pai, partilhando o mesmo poder (v. 3);
– Dá continuamente a todo o universo a possibilidade de existir (v. 3);
– É superior aos anjos (v. 4-6), pois é o próprio Deus.
Essa palavra, essa mensagem, fala diretamente a cada um, interpela pessoalmente (v. 2) e de cada um quer receber uma resposta.
No Natal, contemplamos a fraqueza de um recém-nascido. Deciframos na fé sua identidade divina, a beleza da glória do Pai que se visibiliza na sua vida humana. É-nos dado experimentar algo da sua glória (cf. Jo 1,14). Podemos, então, avaliar melhor a bondade que o fez assumir nossa indigência. E assim cremos que ele assume também toda a fragilidade de nossa existência, da vida, da história e, nela e através dela, é capaz de mostrar seu poder, pelo qual nós somos transformados (cf. Hb 2,10-11; 3,14; 6,19).
III. Pistas para reflexão
- Como a celebração do Natal pode nos ajudar a crescer na fé em Jesus, na nossa aceitação de sua Pessoa e de seu evangelho?
- “O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8,16). Estamos abertos a essa voz? Que consequências tem, na vida cotidiana, sabermos que somos filhos de Deus: no nosso modo de agir, de falar, de pensar... no nosso modo de tratar os irmãos...?
- Sabemos viver e anunciar o evangelho como anúncio que traz alegria, que é capaz de renovar as ruínas de nossa vida, de nossa convivência fraterna, de nossos ambientes de trabalho, enfim, de toda a sociedade?
Maria de Lourdes Corrêa Lima
Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia (Bíblica) pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das Virgens da Arquidiocese do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]