Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 45-48
23 de março – 3º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Eu Sou aquele que Sou!”
A liturgia deste domingo nos apresenta Jesus, o novo profeta de Deus. Ele é a síntese do novo mandamento de Deus, pois é o seu Filho (como ouvimos no domingo passado), o amor encarnado no meio de nós. À luz da imagem de Moisés, que, na primeira leitura, se encontra com o nome de Deus (Shem), Jesus, no Evangelho, destaca-se como aquele que tem uma palavra de Deus, convidando-nos a todos a viver o arrependimento e a conversão, como formas fundamentais de assumirmos nossa existência. Na segunda leitura, Paulo deseja que seus ouvintes não se esqueçam dos fatos importantes realizados por Deus no passado: a travessia do povo pelo deserto sob a nuvem, a passagem pelo mar e o maná concedido ao povo. Toda essa realidade prefigurativa é entendida agora em Cristo, a figura absoluta que consuma o AT.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Ex 3,1-8a.13-15)Depois de Deus, Moisés é o destaque dessa narrativa. Pastor do rebanho de seu sogro, Jetro, ele vai pelo deserto, caminho que o povo de Deus percorreu, e chega até o monte Horeb, o Sinai (v. 1). O v. 2 destaca, por sua vez, a presença de Deus por meio de seu mensageiro, o anjo, que aparece em meio à chama da sarça que arde, mas não se consome. A sarça ardente (em hebraico seneh, um jogo de palavras com Sinai) medeia a voz de Deus. O fogo sempre foi, na Bíblia, um símbolo teofânico, da manifestação de Deus. O narrador, no v. 3, coloca-se no íntimo do pensamento de Moisés, que fala consigo mesmo: “Vou me aproximar desta visão extraordinária...”. De sua parte, vendo Moisés se aproximar, Deus o chama: “Moisés, Moisés”. O v. 4 é forjado como relato vocacional, assim como encontrado no primeiro livro de Samuel (1Sm 3,4) e em Atos, com Saulo (At 9,4), chamado ao apostolado de Jesus. A resposta de Moisés é pronta: “Aqui estou”. O v. 5 é assertivo: Deus diz a Moisés que tire a sandália, por ser santa a terra sobre a qual pisa. Moisés reconhece a santidade do local, ouve seu nome e conhece o Deus dos patriarcas. O v. 6 destaca o modo de Moisés, temendo a Deus, cobrir os olhos. Ainda hoje, os judeus colocam as mãos no rosto para orar, em respeito à face de Deus, a quem se dirigem. Os v. 7-12 são provenientes de uma fonte javista, duplicata de uma fonte eloísta, referindo-se à ação mesma de Deus: ver e ouvir o clamor de seu povo (cf. 2,23-25). O teólogo javista demonstra as atitudes antropomórficas de Deus, que é representado com características próprias dos seres humanos, como ciumento ou compadecido.
O Deus de Abraão, Isaac e Jacó – portanto, de Moisés – é um Deus preocupado com seu povo. Por isso, ele desce até a realidade dos seus. É compassivo e sofre as dores de sua gente, concedendo-lhe forças para lutar e resistir. Desce às trincheiras da história, entremeado a esse povo, não como um titã que luta usando armas, mas o sustentando para não deixá-lo sucumbir, desanimar e desistir. Deus, assim, desce para incutir em seu povo a necessidade de libertação (pessach – passagem – Páscoa v. 8a). Deus desce para fazê-lo sair (em passagem).
Moisés é disponível (v. 13): ele irá aos filhos de Israel para dizer que Deus o enviou e dirá: “O Deus de vossos pais enviou-me a vós”. A questão que Moisés apresenta a Deus é somente uma: “Qual é o seu nome?” O nome é a essência. Em hebraico, Shem é palavra que define. A teologia do nome é essencial para compreender quem é esse Deus, o libertador. No v. 14, Deus lhe responde: “Eu sou aquele que sou” (“Eu sou aquele que é” – Bíblia de Jerusalém). Deus é aquele sem um nome, mas ao mesmo tempo está presente. Trata-se do nome hebraico Iahweh (Gn 4,26), depois identificado pelo “tetragrama divino”: IHWH. Ele se revela Deus pela primeira vez em primeira pessoa. A etimologia do nome Iahweh é questionada; consiste certamente numa forma do verbo “ser” (hayâ) na forma causal: “faz ser, criar, causa da existência de tudo”. Cross e Childs, na obra Exodus, sugerem uma possível tradução para Iahweh: “(Deus que) cria (o exército celestial)”. Assim, para concluir, Deus revela seus planos a Moisés (v. 12-15), sintetizados em “enviou-me a vós” e “este é o meu nome (lembrado) para sempre” – pois tal nome marcou para a eternidade a vida de seu povo, libertando-o do cativeiro. Moisés torna-se, dessa maneira, porta-voz, profeta de Deus.
2. II leitura (1Cor 10,1-6.10.12)Paulo vê, nos eventos do passado, sinais cristológicos, ou seja, da presença de Cristo. Essa leitura é chamada de tipológica, pois o typos, a figura, é Cristo, que pode ser compreendido desde o passado, na passagem pelo mar, no qual o povo sob a nuvem era protegido por Deus. Foi sob a nuvem e na passagem do mar que Moisés “batizou” (fez mergulhar) seu povo, que do mar saiu com pé enxuto (Ex 14,27), tudo isso à luz da fé, como diz Hb 11,29. O povo comeu o maná, comida espiritual, fazendo recordar a Eucaristia oferecida por Cristo aos seus e a nós hoje (1Cor 10,16; Mt 26,26-28). A bebida espiritual que emanou da rocha, a água, prefigura o sangue de Cristo, de cujo coração jorrou sangue e água (Jo 19,34), após o soldado lhe perfurar o lado. O rochedo que outrora saciava a sede era Cristo (v. 4).
Paulo, contudo, afirma que a maioria deles desagradou a Deus e ficou no deserto (v. 5). O deserto é símbolo da purificação. Assim, o apóstolo pondera que tudo o que ocorreu no passado serve para nós hoje no presente, assim como diz Jesus no Evangelho (Lc 13,4-5). É necessário, diz Paulo, que não desejemos coisas más, como fizeram outrora no deserto (v. 6). Sobretudo, não murmuremos, como outrora alguns do povo fizeram (v.10) e por isso foram mortos pelo anjo exterminador. Em tom parenético, exortativo, Paulo conclui, no v. 12: “Portanto, quem julga estar de pé tome cuidado para não cair”, o que pode ser a síntese da seção inteira de 1Cor 10. “Os coríntios, dentre os quais alguns se consideravam espiritualmente superiores, falharam nas provações que geralmente acometem a humanidade. Mas poderiam ter resistido” (Jerome Murphy-O’Connor, novo comentário bíblico São Jerônimo, Paulus).
3. Evangelho (Lc 13,1-9)A passagem do Evangelho deste domingo situa-se no final da primeira parte da viagem de Jesus a Jerusalém, no conjunto de Lc 9,52-13,21. A segunda parte da viagem compreende Lc 13,22-17,10. No trecho em análise, Jesus, fazendo uso do estilo e da linguagem dos antigos profetas, vê e interpreta, com base em dois acontecimentos do dia a dia, sinais admoestadores (convidativos) de Deus. Trata-se de convite urgente e real à conversão – metanoia –, na busca de realizar a genuína vontade de Deus. Na passagem anterior a essa, em Lc 12,54-59, o evangelista põe na boca de Jesus ensinamentos que nos chamam a discernir os sinais do tempo presente, que é um tempo salvífico. Com efeito, para Deus, o dia da salvação é o nosso hoje, pois o passado e o futuro não nos pertencem. O que temos, literalmente, é o presente, o dom deste dia, a fim de que nele sejamos colaboradores/as na construção do Reino vindouro. Os sinais aos quais Jesus se refere devem ser procurados também nos dias de hoje.
O v. 1 conta o fato ocorrido com os galileus que Pilatos tinha mandado matar, misturando o sangue deles com o de seus sacrifícios. Jesus comenta: “Acreditais que esses galileus fossem mais pecadores do que todos os galileus por terem sofrido tal sorte (injustiça)?” Não, diz Jesus, “mas, se não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo” (v. 2). Tal cena de repressão e violência tem como marco a brutalidade e o menosprezo do governador romano na Judeia, Pôncio Pilatos, suscitando o horror e a indignação nos habitantes de Jerusalém. Os soldados de ocupação mataram violentamente um grupo de romeiros galileus, enquanto se preparavam para sacrificar seus cordeiros ou outras vítimas, talvez por ocasião da Páscoa. Possivelmente, consistiam em simpatizantes zelotes, grupo reacionário de resistência surgido no ano 6 d.C., que propagava a luta armada contra a ocupação romana em solo judaico. Profanar o sangue é, para um judeu, um crime ofensivo à Lei (Lv 21,11; Nm 19,11).
Os que relatam tais fatos a Jesus querem, sem dúvida, provocar o juízo e a tomada de decisão de sua parte, saber o que ele achava, se seriam autorizados a pagar o mal com o mal, ou descobrir o que ele pensava do grupo dos galileus. Jesus dá uma resposta que aparentemente ignora tais problemas (v. 3). Ele contesta o pensamento farisaico e o pensamento de causa e consequência, de crime e castigo, como se os galileus merecessem tal fim por serem pecadores. O que Jesus deseja é a conversão de todos hoje, tanto dos que fazem o mal como dos que o sofrem. Para reforçar tal convite dirigido a todos, ele conta a parábola da figueira infértil, enxertando aí essa imagem profética (v. 6-9). Todo Israel é uma figueira que deve produzir frutos bons e saborosos dentro da vinha, mas, se não produzir, deverá ser cortada no tempo oportuno (v. 7).
O viticultor, que também cuidará da figueira, tem paciência, resiliência, e pede a Deus que espere o tempo oportuno para que, depois de cuidada e adubada, a figueira possa frutificar. Somente então, se não der frutos, ele poderá cortá-la, por conta de sua inutilidade (v. 8). Assim, todos nós somos convidados à conversão hoje, mesmo que nos consideremos, a exemplo dos fariseus, imunes ao pecado. Convertamo-nos enquanto é tempo e enquanto o senhor pode ser achado por nós, para que geremos frutos bons para esta sociedade adoecida pelo ódio.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Hoje, a comunidade pode propor-se um exame de consciência, analisando seus frutos de justiça para o mundo. Aquele que preside a celebração pode levar todos à análise de suas atitudes: são frutos de justiça e solidariedade? Buscar ver os acontecimentos do presente – por exemplo, o discurso de ódio disseminado entre os cristãos – como dados a serem transformados, em vista de nossa conversão comunitária. Propor à assembleia que a Eucaristia seja o encontro com aquele que é o Senhor de nossa vida, que nos transforma em novas criaturas, pois as coisas antigas já se passaram.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]