Publicado em janeiro-fevereiro de 2025 - ano 66 - número 361 - pp. 61-64
23 de fevereiro – 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
Amor aos inimigos
I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras do 7º domingo do Tempo Comum nos convidam a acolher os ensinamentos éticos de Jesus, que desafiam as normas sociais e humanas com a lógica transformadora do Reino de Deus. É um convite ousado para ponderar sobre a misericórdia, o perdão e o amor ao próximo como ferramentas essenciais da vida cristã, frequentemente distorcidas para promover sistemas de poder, consumo e intolerância em nossas comunidades.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23)
Sabemos, com base na Bíblia, que Saul foi o primeiro rei de Israel, ungido por Samuel. No entanto, ele desagradou a Deus, porque não seguiu suas instruções. Davi foi ungido por Samuel como futuro rei de Israel, o que criou um conflito de legitimidade e poder entre Davi e Saul. Esse conflito é apresentado na literatura bíblica com nuances que revelam a complexidade das relações políticas e pessoais da época.
É importante considerar que, em muitos contextos, a literatura bíblica apresenta Davi de maneira idealizada, servindo a propósitos políticos e teológicos. Quando Davi se torna uma ameaça ao reinado de Saul, passa a ser alvo de várias tentativas de assassinato. Por isso, é importante compreender esse “jogo de gato e rato” no contexto das narrativas de rivalidade política e sobrevivência.
A cena no deserto de Zif, onde Davi e Abisai se aproximam sorrateiramente do acampamento de Saul durante a noite, é emblemática. Saul é encontrado dormindo desprotegido, e Abisai sugere matar Saul ali mesmo, interpretando a situação como um ato providencial de Deus. No entanto, Davi argumenta que não é correto matar o ungido do Senhor. Esse episódio mostra a ética de Davi ou se trata de uma construção narrativa que busca legitimá-lo como um líder justo e piedoso, em contraste com Saul?
A recusa de Davi em matar Saul, por um lado, pode ser interpretada como uma demonstração de consciência ética; por outro, pode ser compreendida como uma estratégia política. Ao poupar a vida de Saul, Davi mantém a própria integridade moral e evita alienar os seguidores do rei, que poderiam considerá-lo um usurpador violento. Além disso, a insistência na inviolabilidade do “ungido do Senhor” reforça a ideia de que a autoridade de Saul, apesar de seus erros, ainda tinha uma base divina que Davi não podia ignorar sem consequências.
Davi, sem dúvida, é retratado como um líder que tenta equilibrar poder e ética, mas essa imagem deve ser entendida no contexto das tensões e necessidades políticas da época. A narrativa desafia os leitores atuais a considerar a ética do perdão e da não violência, mas também nos recorda que as decisões de liderança muitas vezes envolvem complexas considerações estratégicas, tanto para o bem quanto para o mal. A leitura da cena no deserto de Zif nos oferece, portanto, uma janela para entender a ética pessoal de Davi, bem como as dinâmicas de poder e legitimidade que contribuíram para dar novos rumos à história de Israel.
2. II leitura (1Cor 15,45-49)
Paulo escreveu a primeira carta aos Coríntios provavelmente entre 53-54 d.C. A comunidade de Corinto era mista: judeus e gentios. Nesse ambiente, havia forte influência do pensamento helenístico e da cultura grega. As crenças sobre a vida após a morte variavam, e havia debates significativos sobre a ressurreição dos mortos. Alguns membros da comunidade questionavam a ressurreição, e Paulo estava intermediando esses conflitos.
O apóstolo utiliza a literatura do Antigo Testamento e traz a figura de Adão, o primeiro ser humano, como representante da humanidade caída e sujeita à morte, contrastando-o com Cristo, o segundo Adão, que traz a vida espiritual e a ressurreição.
“O primeiro homem, Adão, foi um ser vivo” (v. 45). Aqui, Paulo se refere a Gênesis 2,7, quando Deus forma Adão do pó da terra e sopra nele o fôlego de vida. Adão representa a humanidade em seu estado natural: mortal e sujeito ao pecado e à morte.
“O segundo Adão é um espírito vivificante” (v. 45). Cristo, ao contrário, é visto como aquele que, por meio de sua ressureição, traz vida espiritual. A ressurreição de Jesus é central para a fé cristã e para a argumentação de Paulo, que afirma que a vida eterna é possível por intermédio de Cristo.
“Veio primeiro não o homem espiritual, mas o homem natural” (v. 46). Paulo estabelece uma ordem: primeiro, a criação terrena de Adão; depois, a nova criação espiritual por meio de Cristo. Isso reflete uma visão escatológica, em que a plenitude da redenção é realizada no futuro.
“O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu” (v. 47). O apóstolo destaca a origem de ambos: Adão é da terra, Cristo é do céu. Essa dualidade reforça a distinção entre a vida terrena e a vida celestial prometida aos crentes.
“E como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste” (v. 49). Paulo está convidando os coríntios a refletir sobre sua transformação espiritual. Assim como os seres humanos compartilham a imagem de Adão, marcada pelo pecado e pela mortalidade, também serão transformados para compartilhar a imagem de Cristo, marcada pela vida e pela incorruptibilidade.
No fundo, Paulo está respondendo a questões e ceticismos sobre a ressurreição, usando uma argumentação teológica e metafórica que seus ouvintes pudessem assimilar. Ele insiste na importância de compreender profundamente a ressurreição de Cristo como o fundamento da fé cristã e da esperança na vida eterna.
A mensagem do apóstolo é um chamado para viver de acordo com essa nova realidade espiritual. Ele está desafiando a comunidade de Corinto a olhar além das preocupações terrenas, que são importantes, acreditando em algo que transcende a vida terrena e adotando uma perspectiva que valorize a transformação espiritual e a vida eterna.
3. Evangelho (Lc 6,27-38)
O Evangelho de Lucas, redigido no final do primeiro século, é uma das quatro narrativas canônicas sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Destinado a ou- vintes gregos e gentios, retrata Jesus como o Salvador universal, destacando temas de compaixão, inclusão e justiça social. O trecho deste domingo aborda a dimensão radical do projeto de Jesus, especialmente em relação ao amor aos inimigos, mensagem que desafia as normas sociais da época. Jesus redefine a interpretação da Lei e estabelece princípios éticos que confrontam o senso comum.
“A todos vocês que me ouvem, eu digo: amem seus inimigos e façam o bem aos que os odeiam” (v. 27). Como podemos, em nossa condição de crentes, responder a essas palavras de Jesus? Deveríamos remover essa instrução do Evangelho? Ignorá-la em nossa consciência? Adiá-la para um momento mais conveniente?
Independentemente das culturas, a atitude predominante das pessoas com relação aos inimigos – aqueles dos quais esperamos apenas o mal – não muda muito. Lísias, um ateniense do século V a.C., expressou a visão predominante na Grécia antiga, que ainda ecoa atualmente: “Acredito que alguém deve prejudicar seus inimigos e servir seus amigos”.
Assim, o mandamento evangélico de amar os inimigos assume uma importância revolucionária, sendo considerado pelos estudiosos como a expressão mais clara da mensagem cristã. Quando Jesus ensina sobre amar os inimigos, não está propondo um sentimento de afeto ou carinho, mas uma atitude de genuíno interesse pelo bem-estar deles. Jesus argumenta que a verdadeira humanidade é fundamentada no amor, e isso implica não excluir os inimigos. Ser verdadeiramente humano é respeitar a dignidade do inimigo, independentemente de quão distorcida ela possa parecer. Em vez de amaldiçoar, Jesus ensina a abençoar.
Esse amor abrangente, que busca o bem de todos sem exceção, representa a contribuição mais humanizadora que os seguidores do Evangelho de Jesus podem oferecer à sociedade. Em momentos em que parece impossível amar o inimigo, quando estamos profundamente feridos e precisamos de tempo para recuperar a paz, é crucial lembrar que também dependemos da paciência e do perdão de Deus. Por fim, o Evangelho de Lucas apresenta um conjunto de ensinamentos éticos revolucionários. Jesus desafia seus discípulos a amar os inimigos, perdoar, dar sem esperar retribuição e não julgar. Sem dúvida, esses ensinamentos representam a ética radical do Reino de Deus, que transcende as normas sociais contemporâneas. Jesus nos convoca a viver não pelo princípio da reciprocidade humana, mas pela generosidade divina, que alcança até mesmo aqueles que nos prejudicam. Trata-se de mensagem mais que provocante para os dias atuais!
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Liderança e ética política. A narrativa de Davi e Saul no deserto de Zif proporciona um olhar atento sobre as dinâmicas éticas e políticas tanto na esfera da liderança quanto em nossa vida pessoal. Como podemos aplicar os princípios da ética pessoal e da estratégia política em nossa atuação no mundo contemporâneo?
– Espiritualidade e ressurreição. A reflexão teológica de Paulo sobre a ressurreição e a transformação espiritual nos convida a considerar como nossas crenças fundamentais sobre a vida após a morte influenciam nossa conduta ética e nossa esperança no futuro.
– A ética do Reino e o amor aos inimigos. O ensinamento de Jesus é profundo e desafia as normas sociais ao propor o amor aos inimigos e a prática da generosidade sem esperar retribuição. Como podemos aplicar esses princípios no contexto das relações interpessoais e sociais atuais? Seria viável, ou é mais simples criar outras interpretações das instruções de Jesus?
– Convite ao compromisso. O 7º domingo do Tempo Comum nos convida a uma experiência reflexiva sobre a ética do Reino de Deus. Em meio às incertezas e desafios do mundo contemporâneo, somos provocados a viver segundo os princípios da misericórdia, do perdão e do amor incondicional, ensinados por Jesus. O perdão cristão não pode ser reduzido a um ato de justiça ou imposto como um dever social. Juridicamente, o perdão não tem lugar; o código penal não contempla o ato de perdoar. O gesto surpreendente e, muitas vezes, heroico do perdão surge do amor gratuito, sem depender de condições prévias. Não exige nem reivindica nada em troca. Quando perdoamos, é por amor genuíno. Estabelecer condições para o perdão é distorcer sua verdadeira essência. Que esses ensinamentos sejam mais do que reflexões teóricas, tornando-se o fundamento de uma vida comprometida com a construção de um mundo mais justo e compassivo, que reflita a imagem do Reino do Deus da vida.
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos bíblicos on-line.