- Introdução geral
O Filho do homem está disposto a morrer não porque o sofrimento agrada a Deus, mas por amor à vida que é de todos. O sofrimento somente tem sentido quando é fecundo, quando é consequência de uma luta em prol do bem e contra o mal, pois é assim que o sofrer de um traz vida plena a outros. Um sofrimento que é compaixão pelos que sofrem, que é solidariedade com as vítimas do egoísmo e do pecado. É nisso que se traduz a entrega na cruz.
Cristo anuncia aos discípulos que vai dar a própria vida e o fará para que todos possam ter a vida em plenitude. Os seguidores de Jesus têm, portanto, que estar dispostos a iniciar um caminho de entrega generosa da vida, a exemplo de seu Mestre.
II - Comentários aos textos bíblicos
- Evangelho (Mt 16,21-27): “Renuncie a si mesmo” (Mt 16,24)
Jesus irá a Jerusalém para doar a própria vida, não para conquistá-la pelas armas nem para reinar em lugar do imperador romano, como pensavam os discípulos.
Em Jerusalém, os líderes religiosos da época consideravam Jesus perigoso e, em nome da lei e dos costumes, perseguiram-no até a morte. Jesus andará na contramão desses líderes religiosos, não revidará violência com violência; sua luta de combate ao mal será uma luta pacífica, pois usará a arma do amor.
Jesus não veio impor seu projeto pela força nem usar em seu favor as armas da violência e da guerra. Jesus não quer morrer na cruz, mas tem de estar disposto a morrer na cruz – é isso que deseja fazer os discípulos entender. Jesus sabe e declara aos discípulos, no momento central de sua vida, que será crucificado em Jerusalém. Ele mostra que aceita as consequências daquilo que praticou e ensinou. Está consciente do perigo pelo qual passa e não quer que os discípulos considerem sua morte uma fatalidade, um acidente inesperado, mas consequência do seu modo de viver.
Contudo, Pedro tenta corrigir Jesus a partir de sua própria noção de messianismo triunfante. Mas Jesus também corrige Pedro: se Deus está conosco, não significa que iremos nos dar bem em tudo que fizermos, mas, se Deus está conosco, temos de estar dispostos a dar a nossa vida pela causa de Deus. Pois somente quando superamos o egoísmo e o desejo de domínio e de violência, em atitude de entrega e abandono a Deus, pode acontecer a mais perfeita comunhão entre os seres humanos. Isto é o reino de Deus, este é o desígnio que Deus tem para nós.
As palavras de Jesus expressam o paradoxo fundamental da vida cristã: num mundo dominado pela lei da imposição de vontades dos violentos, aqueles que pretendem seguir Jesus devem servir os demais em total gratuidade, a ponto de estar dispostos a morrer por eles.
- I leitura (Jr 20,7-9): “Seduziste-me, Senhor!” (Jr 20,7)
Na primeira leitura, o profeta Jeremias, que havia chamado o povo à conversão, a um retorno para Deus, não teve sucesso em sua empreitada. O povo em geral e principalmente os líderes políticos e religiosos não acolheram a palavra de Deus proclamada por Jeremias.
O profeta viu amigos, familiares e conhecidos voltarem-lhe as costas e recebeu o desprezo, a maledicência, os insultos e as zombarias de seus adversários.
Jeremias conheceu o abandono e a solidão como consequência de sua fidelidade a Deus e à sua missão. Então, desiludido, o profeta resolveu parar de exercer a profecia. Mas naquele momento que decidiu parar de proclamar a palavra de Deus, Jeremias descobriu o quanto estava apaixonado pelo Senhor. O amor por Deus e por sua palavra era como um fogo no coração do profeta. Foi esse amor por Deus que o impulsionou a seguir em frente e a assumir todas as consequências de sua missão. A atitude de Jeremias, de estar disposto a entregar a própria vida por amor a Deus, ilumina a palavra de Jesus aos discípulos quando afirmou ser necessário tomar a cruz a cada dia e o seguir.
- II leitura (Rm 12,1-2): Oferecei-vos em sacrifício
Nessa leitura, Paulo nos esclarece a respeito de como deve viver aquele que se sente chamado à salvação. A adesão a Cristo e a acolhida da salvação não significam aderir a verdades teóricas e abstratas, mas exigem um caráter prático, um comportamento coerente com a vida do Mestre a quem seguimos.
Ser cristão não significa ganhar muito dinheiro, ter saúde, um bom casamento e ver tudo ir bem na vida. Ser cristão é oferecer inteiramente a vida a Deus, para a vida e para a morte que ele decidir. A oferta da própria vida no abandono nas mãos de Deus e no serviço ao próximo é o que Paulo chama de “hóstia viva”; em outras palavras, “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. O verdadeiro culto, a perfeita adoração, a autêntica liturgia é a entrega da totalidade da vida do ser humano a Deus no serviço ao próximo.
III. Pistas para reflexão
Pedro nos representa. Ele está disposto a seguir Jesus, a ser caridoso com os pobres, a ser compreensível com os pecadores, enfim, não quer fazer nem ver ninguém sofrer. Mas Pedro não quer aceitar a cruz por amor à causa de Jesus e do reino de Deus. Quer ser um cristão vencedor, quer que tudo dê certo na vida, sem sofrimento nenhum.
Jesus, o profeta Jeremias e o apóstolo Paulo sabem que não é possível fazer a vontade de Deus e não sofrer animosidades por causa do Reino proclamado e testemunhado. Eles sabem que somente se pode ajudar aos que sofrem quando se está disposto a morrer com eles e por eles, em Jerusalém e em Roma, no passado, ou em qualquer tempo e lugar, até que Cristo venha.
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj – graduada em Filosofia e em Teologia. Cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail:[email protected]