Roteiros homiléticos

Publicado em julho-agosto de 2022 - ano 63 - número 346 - pág.: 57-60

20º domingo do Tempo Comum – 14 de agosto

Por Izabel Patuzzo*

Acender o fogo do Reino de Deus

I. INTRODUÇÃO GERAL

A Palavra de Deus para este domingo nos leva a refletir sobre como assumir a missão que o Senhor nos confia. Os profetas quase sempre passam por muitas provações para levar adiante sua missão, como nos relata a leitura de Jeremias. Isso ocorre porque eles tendem a perturbar a falsa paz que esconde as injustiças e contradições de seu tempo. Jeremias recebe de Deus a missão de denunciar as injustiças da classe dominante, mas tal atitude atrai a ira e a desconfiança do povo de Jerusalém. O profeta percebe que as ações do rei de Judá estão levando o reino à destruição. Ele assume de forma radical sua missão, embora tenha consciência de que será duramente rejeitado. Sabe que exercer seu ministério profético não irá trazer popularidade, mas aceita o chamado divino para testemunhar a verdade. Jeremias foi coerente com o projeto de Deus para seu povo.

A segunda leitura fala da importância de levar uma vida digna depois do encontro com o Senhor Jesus. O cristão, a exemplo de um atleta, deve correr em direção à vida plena, sem medir esforços, exercitando-se a cada dia para chegar à vitória, que consiste em assemelhar-se a Cristo. Jesus nunca buscou o caminho mais fácil ou mais agradável para realizar sua missão. Enfrentou a morte, e morte de cruz, para levar à plenitude a missão que o Pai lhe havia confiado. Ele é o modelo mais perfeito que um discípulo tem à sua frente para orientar sua caminhada de fé.

O Evangelho nos leva a refletir sobre as implicações da missão no seguimento do discipulado. Jesus define sua missão como a de lançar fogo sobre a terra, isto é, eliminar todas as formas de escravidão, egoísmo, vícios e pecados para que possa surgir um mundo renovado. As exigências para os seus discípulos são radicais e poderão provocar oposições, críticas e rejeições da parte de muitos.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Jr 38,4-6.8-10)

Jeremias exerceu sua missão profética no tempo em que o Reino de Judá estava em decadência, próximo da queda de Jerusalém (586 a.C.). Ele foi contemporâneo da tomada de Jerusalém pelo exército da Babilônia e viu a devastação de seu país depois da guerra. Trata-se de período muito complicado para Israel, e o profeta tenta alertar o povo sobre a iminente catástrofe. É nesse contexto que devemos interpretar suas profecias. O rei de Judá e sua corte tentam esconder os graves problemas políticos, as alianças com poderes estrangeiros que não contribuíram para a autonomia do Estado, e por isso perseguem o profeta Jeremias, que denuncia a real situação.

A leitura proposta para a liturgia deste domingo relata os acontecimentos do final do reinado de Sedecias, por volta de 586 a.C. O rei adotou a política de fazer aliança com o Egito, atraindo a ira da Babilônia, um dos impérios mais potentes da época. O profeta percebeu que essa aliança seria um fracasso e levaria o povo à ruína. Infelizmente não foi ouvido, e, com a invasão da Babilônia, parte dos israelitas foi levada para o exílio. A difícil missão de Jeremias foi conscientizar o povo sobre essa dura realidade. Em sua visão, tudo aconteceu por causa da infidelidade a Deus, da corrupção e idolatria das lideranças de Israel.

Apesar de toda essa situação de sofrimento, Jeremias foi fiel à sua vocação profética. A parte final do texto relata que Deus cumpre sua promessa. Encoraja o profeta a não ter medo, pois não o abandonará. Jeremias foi chamado a profetizar sobre o sentido da justiça e enfrentar com coragem o exílio, como escravo estrangeiro. O Senhor, porém, veio em seu socorro, salvando-lhe a vida. Esse texto nos mostra que Deus sempre está do lado daqueles que anunciam fielmente sua Palavra.

2. II leitura (Hb 12,1-4)

O autor da carta aos Hebreus se dirige a uma comunidade cristã marcada pela influência judaico-cristã. Os cristãos enfrentavam dupla hostilidade: por parte dos judeus, haviam sido expulsos das sinagogas, por serem considerados uma seita dissidente do judaísmo; por parte dos pagãos, eram apenas uma pequena minoria insignificante e estranha. Por isso, os cristãos estão cansados, desanimados e começam a perder o entusiasmo.

Diante dessa realidade, o autor convida os membros da comunidade a ter um olhar retrospectivo sobre a história de Israel. Ele recorda que figuras como Abraão e Moisés também foram desafiadas na sua fé. São exemplos a serem imitados, pois superaram as provações pelas quais passaram. Dessa forma, exorta os fiéis a perseverar na fé, pois o cristão é convidado a não perder de vista o exemplo de Cristo. Apesar das adversidades, das rejeições que sofreu, Jesus nunca escolheu o caminho mais fácil, não procurou o que era mais cômodo ou mais agradável. Para ele, o critério fundamental era realizar a vontade do Pai; e o caminho para o Pai passava pelo amor radical, pela doação total e pela entrega na cruz.

3. Evangelho (Lc 12,49-53)

Ao prosseguir sua caminhada para Jerusalém, Jesus, a esta altura, introduz novos temas. No texto proposto para a liturgia deste domingo, ele, em primeiro lugar, expressa seu desejo de ver toda a terra abrasada, consumida pelo fogo que sua vinda veio trazer ao mundo. O objetivo fundamental de seu ministério, o centro da proclamação de sua Boa Notícia e de sua atividade podem ser prefigurados com o símbolo do fogo.

Na perspectiva de Jesus, seu ministério propõe um batismo não com água, mas com o fogo do Espírito Santo. É o próprio Jesus quem batiza com o fogo. Ele está ansioso para que essa realidade chegue ao pleno cumprimento. O fogo possui um significado muito complexo: no Antigo Testamento, é sinal que precede a manifestação divina; na linguagem profética, purifica e transforma o pecador numa pessoa melhor; na linguagem apocalíptica, está relacionado com o juízo escatológico no fim dos tempos.

Jesus descreve os efeitos de sua atividade como discórdia. Isso, à primeira vista, parece ser a consequência contraditória de um batismo de fogo, pois, no Evangelho segundo Lucas, Jesus nasce como o príncipe da paz, e agora o que ele anuncia parecem ser sinais de ruína e oposições. A atuação de Jesus certamente não tem como objetivo provocar divisões e contradições, mas sua ação libertadora evidencia os conflitos ocultos. Ele veio revelar ao ser humano a santidade de Deus; sua proposta destina-se a destruir toda forma de egoísmo, injustiça, opressão, maldade e violência que impedem o Reino de Deus de se desenvolver na sua plenitude. O batismo no Espírito Santo, que acontecerá após sua ressurreição, será como fogo transformador e purificador que impulsionará os discípulos a levar seu amor até os confins da terra.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O Evangelho nos mostra que, em seu ministério, Jesus não desejava conservar intacta a realidade de seu tempo, nem mesmo os ensinamentos dos mestres de Israel. Ele não compactuou com a falsa paz que não questionava o mal, a injustiça e a exclusão dos pobres, doentes, mulheres e toda sorte de pessoas consideradas impuras. Para instaurar o Reino de Deus, estava disposto a incendiar a terra, pondo em causa tudo aquilo que escraviza o ser humano e a vida. Suas palavras nos questionam: como nos situamos em face de tudo aquilo que contradiz o projeto de Deus? Como nos posicionamos diante da injustiça, da mentira, das fake news, das ameaças, da exploração dos vulneráveis? Com que coragem nos dispomos a ser profetas que assumem a missão de construir o novo céu e a nova terra?

A proposta de Jesus não é a manutenção de uma paz aparente. O fogo que ele veio atear é o fogo purificador e transformador que atinge o coração das pessoas e muda sua vida; é o fogo que faz que cada batizado seja protagonista na instauração do Reino de Deus. Animados pelo Espírito Santo, fomos ungidos para renunciar a toda forma de egoísmo, de indiferença aos necessitados e sofredores e assumir o compromisso com o projeto de Deus.

Izabel Patuzzo*

*pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]