Roteiros homiléticos

Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 58-61

20 de outubro – 29º Domingo do Tempo Comum

Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

“Quem quiser ser grande seja vosso servo”

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia deste domingo nos ajuda a vislumbrar em Jesus Cristo o Servo de Deus por excelência. Ele é quem tira do mundo o pecado (Jo 1,29). Na primeira leitura, Isaías faz-nos encontrar com esse Servo de Adonai, que oferece sua vida para ser macerada. Essa personagem cumpre fidedignamente a vontade de Deus; por isso, faz justiça à dignidade daqueles pelos quais entrega sua vida. Em Hebreus, na segunda leitura, o autor nos faz entender que Jesus é o sumo sacerdote eminente, que, em seu trono de glória, faz brotar a misericórdia e a justiça de Deus. No Evangelho, o Senhor ensina a seus discípulos a difícil tarefa de servir. Ele não quer que seus discípulos se percam na satisfação aparente que o poder pode lhes conceder, mas os chama a servir a todos, como servos simples e humildes.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 53,10-11)

O profeta Isaías, no conjunto dos cânticos do Servo sofredor – Ebed Adonai, em hebraico –, retrata a vida do povo no exílio da Babilônia, em um tempo de sofrimento e de duras provações. Isaías destaca que esse personagem corporativo deve cumprir a vontade do Senhor. Para tal, Deus oferece a vida do Servo em sofrimento e maceração. Ele terá uma existência duradoura, cumprindo com êxito a vontade do Senhor (v. 10). Esse Servo é obediente e fiel, uma vez que acolhe os desígnios de Deus. Na verdade, a vida do povo é vista à luz de sua relação com o Senhor. Ele os destinou à salvação, desde o momento da criação; depois, no desenrolar da história da salvação, quis atraí-los para si, levando-os para uma terra onde corria leite e mel. Deus os livrou das mãos dos egípcios e agora os acompanha no exílio. Israel, de sua parte, é infiel a Deus e por isso pagará as consequências de suas desobediências e idolatrias. Por ter caído na infidelidade, Israel sofrerá.

No v. 11, o profeta diz que, por sua vida de sofrimento, o Servo que sofre encontrará a luz e uma ciência perfeita. O Servo, o justo, fará justiça a todos, carregando sobre si suas culpas. Esse Servo de Adonai, o Ebed, traz sobre si os pecados de toda a humanidade. Desse modo, incorpora a remissão de todos. Particularmente, traz sobre si os pecados de Israel infiel, que, guiado por suas lideranças, deixou de obedecer a Deus; invocando falsos ídolos, deixou de agir eticamente, segundo a vontade daquele que o criou. Deus é bom a todo tempo, mas seu povo nem sempre o é: deixou-se corromper pelo pecado da idolatria; ao adorar ídolos, deixou-se corromper em suas formas de viver, sem levar em consideração o direito e a justiça.

2. II leitura (Hb 4,14-16)

O autor de Hebreus evoca a imagem do “sumo sacerdote eminente”. O v. 14 é a única passagem no texto em que Jesus é designado dessa forma – geralmente o autor o trata como sumo sacerdote ou simplesmente como sacerdote. A intenção é enfatizar a superioridade de Jesus sobre a instituição do “sumo sacerdote judaico”, com o qual ele é comparado com certa frequência. Assim, Hebreus nos convida à convicção de fé em Cristo, à firmeza naquilo que professamos. Jesus é compreendido pelo autor dessa bela homilia como aquele que firma nossa fé, que confirma nossa salvação. Podemos fazer um paralelo com o Servo da primeira leitura, que oferece sua vida para salvar a de outros.

O v. 15 atesta a compaixão que podemos experimentar em Jesus Cristo, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, exceto no pecado. Cristo e os cristãos são tentados a todo tempo. A diferença real entre o Senhor e seus seguidores é que o Filho de Deus jamais sucumbiu a tais tentações. Por essa vida de santidade, ele nos garante a salvação que esperamos e em que confiamos. No v. 16, de forma parenética, exortando-nos à confiança da fé, o autor faz o convite a que nos aproximemos do trono de Deus (Hb 8,1; 12,2). O reinado de Jesus exaltado é um tema frequente em Hebreus, utilizando o Salmo 110,1 e evidenciando, assim, o trono de Jesus. Ele é o verdadeiro sumo sacerdote, trono de Deus que se tornou trono da graça. Nele alcançamos a misericórdia e a graça do auxílio no momento oportuno. Hebreus nos apresenta, portanto, bela cristologia que incorpora a imagem tanto do Servo do Senhor como do sacerdote e mediador da salvação, aquele que nos garante a vida eterna.

3. Evangelho (Mc 10,35-45)

Na segunda metade do Evangelho de Marcos, logo após a confissão de fé feita por Pedro em Cesareia de Filipe (8,27-30), encontramos verdadeiro descompasso entre o que Jesus se considera e aquilo que os discípulos compreendem a seu respeito. O Cristo é o novo Servo de Adonai, que vem para resgatar o mundo do pecado (v. 45) – essa mensagem é o clímax do Evangelho deste domingo. Os discípulos, por sua vez, da mesma maneira que Simão Pedro, não compreendem ao certo quem é Jesus. Estão seguindo o Senhor, mas acreditam ser ele um homem que se mobilizará para tomar o poder político na cidade de Jerusalém. Jesus, contrariamente, põe-se na posição de servo; não vem para ser servido, mas para servir e dar sua vida para a salvação de muitos.

Os discípulos, como se estivessem surdos aos ensinamentos de Jesus, produzem um incidente que lança maior luz sobre a obtusidade deles a respeito do sentido do seguimento que estão vivenciando. Trata-se da solicitação de Tiago e João (v. 37) de que um se sente à direita e outro à esquerda de Jesus. O Senhor, de sua parte, apresenta três breves respostas: 1) um lugar no Reino exige sofrimento (equiparado aos sofrimentos que serão vividos por ele, pois é um texto pós-pascal – v. 38-39); 2) não é sua a prerrogativa de determinar o status no Reino que vem (v. 40); 3) liderança, na comunidade messiânica de Jesus, significa serviço humilde (v. 41-45).

Tiago e João, juntamente com Pedro, formavam o círculo mais próximo de Jesus, um círculo de amizade, que acompanhou o Mestre até mesmo em sua transfiguração na alta montanha (Mc 9,2-13). Eles, porém, não compreendendo o destino de Jesus logo após esse evento, pedem ao Senhor que tenham um lugar ao seu lado em sua glória. Em Mateus 20,29, é a mãe dos apóstolos que faz a solicitação, o que corresponde à tentativa mateana de abrandar o tom negativo dessa situação – a qual foi tratada com muita naturalidade por Marcos. Vale esclarecer que Marcos compreende bem o desencontro entre o convite de Jesus para o seguimento e a incompreensão por parte dos discípulos. Estes estão sempre aquém do convite de Jesus.

O v. 37 relaciona o lugar direito e esquerdo com a glória do Reino vindouro ou que esperavam que Jesus instaurasse. Talvez a imagem se relacione também com a entronização de Jesus como juiz escatológico ou, mais provavelmente, como aquele que preside ao banquete messiânico. O v. 38 elabora a imagem do cálice e do batismo, dizendo respeito ao sofrimento e à morte (Is 51,17-22; Sl 69,2-3). O cálice também evoca a Eucaristia, memorial celebrado por Jesus na paixão (Mc 14,23.36). No v. 39 se destaca o protesto confiante dos discípulos – registro repleto de ironia, à luz de sua covardia durante a paixão. Vale ressaltar que, nos Evangelhos sinóticos, os discípulos desaparecem após a tripla negação de Pedro; somente permanecem em cena as mulheres, que vão ao Gólgota assistir à crucificação de Jesus, depois embalsamam seu corpo e, no terceiro dia, o testemunham ressuscitado, encontrando o sepulcro vazio.

No v. 40, encontramos a expressão “não cabe a mim” – apontando para uma prerrogativa do Pai. Esse dito implica uma subordinação de Jesus ao Pai, constituindo um texto muito explorado pelos arianos nos debates cristológicos antigos. Para quem esses lugares estão preparados, não fica bem claro. O v. 41 traduz a indignação dos dez discípulos. Jesus começa a ensiná-los, e a ironia marca profundamente esses ensinamentos. Por exemplo: “aqueles que governam as nações” – governar e dominar representa o modus operandi daqueles que tiranizam. O v. 43 marca o modo de ser dos que se propõem seguir Jesus: “aquele que dentre vós quiser ser o grande, seja vosso servo”.

O termo-chave em Mc 9,35 é diakonos, que literalmente significa “aquele que serve à mesa”, servo de todos. Aqui, no v. 44, usa-se doulos, termo com uma carga ainda maior de humildade do que diakonos. Por fim, Jesus conclui com aquilo que pode fazer conexão intrínseca com a primeira leitura: o Servo sofredor. Ele utiliza a imagem do Filho do Homem, que retrata sua própria humanidade: “não veio para ser servido, mas para servir”. Trata-se de dizer que Jesus é o novo Servo de Adonai, que toma sobre si as dores da humanidade e a salva, redimindo o ser humano de sua condição de pecador. “Dar a sua vida em resgate de muitos” refere-se ao martírio (Mc 2,50; 6,44). Lytron, “resgate”, transmite a ideia de libertação por compra em favor de alguém em cativeiro, de um escravo ou ainda de um criminoso. “Por muitos” faz ecoar Isaías 53,11-12, a figura do Servo sofredor que traz sobre si as misérias e chagas de seu povo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Convidar a comunidade cristã a reconhecer em Jesus o Servo de Deus por excelência, redescobrindo nele o verdadeiro sentido de seguimento. Não seguimos pessoas e pastores, mas a Cristo, Filho de Deus. Oferecer equilibrada compreensão do discipulado em nossas comunidades: os maiores entre todos são aqueles que servem com humildade e mansidão. Aprofundar a ideia de que o sacerdócio de Jesus completou toda a salvação e nosso sacerdócio pelo batismo nos associa a ele, que por nós morreu e ressuscitou.

Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected].