O reinado da justiça, do amor e da paz
I. Introdução geral
No fim da Copa de 1958, ao receber os cumprimentos do rei da Suécia, Pelé colocou-lhe a mão no ombro. Os comentaristas esportivos, num primeiro momento, escandalizaram-se com a quebra do protocolo, pois ninguém podia tocar o rei. Logo em seguida, concluíram: “Não faz mal! Hoje o rei é ele!”. A partir de então, Pelé passou a ser chamado de rei do futebol. Algum tempo depois, a popularidade do cantor Roberto Carlos rendeu-lhe também o título de rei.
Hoje, os reis não governam, são apenas chefes de Estado, representam a nação. Quem governa é o primeiro-ministro ou o conselho de ministros. No passado, não era assim. O rei tinha todo o poder; a vontade ou até mesmo um capricho do rei eram lei.
O papa Pio XI instituiu a solenidade de Cristo Rei para incentivar os cristãos a fazer da presença de Cristo no mundo uma força de transformação. Por meio dos cristãos, Jesus deve governar o mundo. O objetivo não é dar brilho e poder à instituição eclesiástica, mas trazer ao mundo o reinado de Deus com os critérios de Jesus Cristo. Contrário à busca de brilho, fama e poder, critérios deste mundo, o reinado de Cristo se manifesta na vergonha e no fracasso da cruz.
A paz, tão sonhada hoje, é fruto da justiça e do amor, como diz o prefácio da oração eucarística desta solenidade. A busca da verdadeira justiça e a coerência do amor levam inúmeros cristãos ao martírio, à morte semelhante à de Cristo. É por esse caminho, e não pela participação nos poderes temporais, que seu reinado vai acontecer no mundo.
II. Comentários aos textos bíblicos
- I leitura: 2Sm 5,1-3
A primeira leitura narra como as tribos do Norte aceitaram o reinado de Davi. A unção de Davi como rei de Israel lembra hoje o reinado de Cristo.
Davi era o menor e o mais humilde de oito irmãos da aldeia de Belém. Quando Samuel, guiado por Deus, foi escolher um dos oito filhos de Jessé para ser o novo rei, apresentaram-se os sete maiores; o menino Davi foi deixado no campo, olhando as ovelhas. Mas foi a ele que Deus escolheu. É por meio dos fracos que Deus reina. Davi se tornará, depois, o modelo dos reis.
Suas façanhas (1Sm 17; 1Sm 18,20-36; 1Sm 24; 1Sm 26) já lhe tinham alcançado a aprovação por parte da sua tribo, Judá (2Sm 2,1-4a). O episódio narrado na leitura de hoje fala de sua aprovação pelas dez tribos do Norte. O reinado de Davi foi o reinado da união de Israel e Judá, de todo o povo de Deus; foi o reinado do consenso.
- II leitura: Cl 1,12-20
É na sua morte de cruz (sangue de cruz, na maneira bíblica de falar) que Jesus se torna rei do universo, centro de toda a criação, razão de ser de tudo o que existe.
Essa carta, ditada por Paulo ou, mais provavelmente, por um de seus discípulos, procura responder a uma questão surgida nas primeiras comunidades: uma confusão entre a mensagem de Jesus Cristo e as religiões cósmicas. Segundo essas antigas religiões, os astros é que governam o mundo. E são os anjos, em suas diversas categorias – Tronos, Dominações, Potestades etc. –, os condutores dos astros que governam o mundo. Não sobraria muito espaço para o Messias Jesus. O texto da carta, diferentemente do linguajar de Paulo, é carregado de semitismos, de maneiras semitas de falar. Assim, “o Filho do seu amor” quer dizer “o seu Filho amado” (v. 13); “o sangue de sua cruz” quer dizer “sua morte de cruz” (v. 20).
O mundo, governado pelos anjos e pelos astros, não muda, não admite mudança, porque o sol, a lua, as estrelas sempre fazem a mesma órbita, o mesmo giro. Tudo se repete e tudo está em ordem. Não há nada para mudar. Jesus vem fazer o que aí?
Se nada há para mudar, podemos nos deixar guiar cegamente pelos astros, anjos ou poderes deste mundo. Pode-se dizer que este é o reino das trevas, onde todos são cegos. O reino da luz, onde todos enxergam, é o reino de Jesus Cristo – por isso o batismo era chamado de iluminação. Os que antes seguiam as religiões cósmicas e se tornaram cristãos passaram do reino das trevas para o reino da luz.
Jesus torna visível o Deus invisível, existe antes dos anjos e de qualquer outra criatura de Deus. Por ele e para ele, Deus criou tudo; ele é a nossa cabeça, cabeça da Igreja, o primeiro renascido da morte; ele resume tudo, tudo só tem sentido nele. Isso não se dá, porém, em virtude de nenhum grandioso espetáculo. É por meio de sua morte de cruz que ele realiza a reconciliação, quer dizer, a reorganização de todo o universo material e imaterial, como os anjos. Jesus tudo governa, mas, antes de tudo, ele reina pela cruz.
- Evangelho: Lc 23,35-43
Na cruz vai morrer o Rei dos Judeus, a esperança de um salvador da nação judaica apenas. Na cruz podemos chamar Jesus de rei, não dos judeus, mas da humanidade inteira, a começar pelos criminosos crucificados com ele.
Jesus, na ocasião, é visto como um rei de palhaçada, é objeto do olhar curioso do povo, olhar de desinteresse e de desprezo. É também objeto de zombaria por parte das autoridades judaicas e dos soldados romanos.
A zombaria por parte dos dirigentes judeus é, em Lucas, mais discreta do que em Mateus e em Marcos, Evangelhos nos quais eles fazem alusão ao título de “rei de Israel” e desafiam Jesus a descer da cruz. “O Cristo”, “o Ungido”, de Lucas, contudo, também lembra a esperança de um Messias rei. Lucas acrescenta o título de “Eleito” ou Escolhido, o querido de Deus. Nem por isso o que dizem as autoridades dos judeus deixa de ter o caráter de zombaria e de tentativa de desmoralizar o “reinado” de Jesus.
Os soldados romanos, representando o império, os senhores deste mundo, caçoavam da placa que chamava Jesus de rei dos judeus, um rei incapaz, totalmente fracassado. Oferecem ao “rei” o vinagre ou vinho azedo dos soldados e dos escravos.
Entretanto, o vinagre que lhe oferecem lembra o Salmo 69,22, que diz: “para a minha sede deram vinagre”, fazendo eco ao v. 5 do mesmo salmo: “odiaram-me gratuitamente”. A resposta ao ódio gratuito é um amor mais gratuito ainda.
Vem, então, o outro lado, o verdadeiro reinado do Cristo. Seu trono é a cruz, as testemunhas de sua entronização são dois criminosos. Ele reina porque perdoa; seu poder se manifesta acima de tudo no perdão, jamais na crueldade, como era próprio da onipotência de César.
Um dos criminosos ou malfeitores com ele crucificados reproduz os insultos das autoridades judaicas e dos soldados romanos. O outro o recrimina e chama-lhe a atenção. Apela para o “temor de Deus”, expressão que, em toda a Bíblia, traz a conotação de respeito ao mais fraco. Eles estão sendo punidos por seus crimes; Jesus, não: ele é inocente.
Em seguida, esse malfeitor dirige-se a Jesus, pede-lhe que se lembre dele quando entrar em seu reino ou reinado. Na Ceia, Jesus havia dito aos apóstolos: “Assim como o Pai me confiou o reino, assim também eu vos confio o reino. Havereis de comer e beber em minha mesa no meu reino e de vos sentar em tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22,29-30). Agora, morrendo na cruz, ele toma posse do seu reino.
Assim é que ele responde ao criminoso: “Hoje estarás comigo no paraíso!”, hoje estarás comendo e bebendo comigo em meu reino. É o último “hoje”, tão presente nos lábios de Jesus em todo o Evangelho de Lucas (“hoje se cumpre essa palavra”, “hoje devo me hospedar na tua casa”, “hoje a salvação entrou nesta casa”). Hoje, morrendo na cruz, Jesus toma posse do seu reinado.
III. Pistas para reflexão
Na homilia (conversa) de uma missa em sua comunidade, dona Julieta disse: “Nem que vivesse mais duzentos anos a gente acabaria de entender o significado da morte de Jesus”. Não vamos acabar de entender, mas vamos procurar entender cada vez melhor.
“É rei pela sua cruz.” Essa ideia não cabe bem na nossa cabeça. Para nós, rei é o que está no topo do prestígio e do poder, não um pobre coitado de braços pregados numa peça de madeira, pendurado entre o céu e a terra e considerado pela Bíblia (Dt 21,23) um maldito de Deus.
Os caminhos do prestígio e do poder humanos jamais levarão o mundo a alguma mudança, só farão reafirmar o reinado do dinheiro e da arrogância. Outro mundo e outro reinado só poderão vir dos caminhos opostos, os caminhos da humildade e do serviço. A cruz significa o caminho novo que se abre.
Quem pensa que a festa de Cristo Rei deve motivar maior prestígio e poder para a instituição eclesiástica está redondamente enganado; está querendo levar a Igreja pelos caminhos do mundo, e não trazer o mundo para os caminhos de Jesus Cristo.
“É rei pela sua cruz.” Isso dificilmente entra na nossa cabeça. É preciso primeiro desarraigar da nossa mente as ideias de prestígio e de poder. O reinado de Cristo há de chegar ao nosso mundo por meio das pequenas coisas, escondidas, ignoradas, relegadas à humilhação do esquecimento, tal como a morte de cruz era a humilhação máxima.
No mundo governado pelo dinheiro, pela injustiça, pelo saber, aproveitar-se do outro é a ferramenta principal. Amor não existe; isso é considerado sentimentalismo tolo, que só leva a perder dinheiro. Paz é inércia, inatividade, é ficar parado; o que movimenta o mercado é a guerra, a competição. O reinado de Jesus Cristo é o reinado da justiça, do amor e da paz.
Pe. José Luiz Gonzaga do Prado
Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico. Autor dos livros A Bíblia e suas contradições: como resolvê-las e A missa: da última ceia até hoje, ambos publicados pela Paulus.