Humilde e obediente até a morte, e morte de cruz
I. Introdução geral
As leituras de hoje destacam a humildade como fundamento da obediência. Ser humilde é despojar-se do orgulho. É tornar-se uma pessoa integrada, que sabe lidar com todas as coisas e situações de forma harmoniosa. O orgulho desarmoniza, faz pessoas, ideias, objetos e situações ocuparem o lugar de Deus na vida do ser humano, tornando-o escravo de um ídolo. A palavra “obediência”, nos idiomas mais antigos, significa “prestar atenção”, “dar ouvidos”. A obediência de Jesus ao Pai significa, antes de tudo, que Jesus levou ao cumprimento pleno o projeto de amor de Deus para com o ser humano. Nem mesmo nos momentos difíceis, ele voltou atrás no que ensinou e no que mostrou na própria vida a respeito de Deus e de seu reino de fraternidade universal. Nem mesmo a tortura da cruz o fez desistir de mostrar às pessoas quem é o Pai e qual a proposta dele ao ser humano. É nesse sentido que a cruz de Jesus é sinal de humildade e obediência.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. Evangelho (Lc 22,14−23,56): Não se faça a minha vontade, Pai, mas sim a tua
A Paixão de Jesus tem sua antecipação profética no relato da Ceia. Chegada a hora de sua saída para o Pai, Jesus põe-se a cear com seus discípulos. Essa última refeição que ele toma com os seus revela-se a prefiguração de sua entrega a Deus e da conclusão de sua missão. Por isso, ela é cheia de significados. A morte de Jesus não é um fracasso, um caminho sem saída, mas inauguração da paz e salvação plena na presença de Deus. É consequência de sua vida, de sua doação plena ao projeto de salvação operado por Deus na história humana. É a manifestação do reino de Deus, ou seja, da justiça e fidelidade. É o cume do anúncio do reino de Deus, proclamado desde a Galileia, o qual foi o programa de toda a sua atuação pública. Por isso, ao dizer “desejei ardentemente”, Jesus quis dar um significado à sua morte iminente. Ela é promessa de restauração da humanidade decaída. Nessa promessa, Jesus associa os discípulos a um gesto retomado do banquete judaico, inserindo os seus no mesmo destino: o destino de alguém que enfrenta a morte na firme esperança de antecipar a realeza de Deus no mundo e na história. Após a ceia, Jesus vai ao monte das Oliveiras e, como de costume, ora ao Pai, princípio e fonte de seu ministério. Ao vislumbrar o destino que o aguarda, Jesus recorre ao Pai. Na agonia, pede que lhe afaste o cálice do sofrimento. Mas mantém-se fiel à vontade de Deus. Não uma vontade desejosa da morte de seu Filho, mas a que revela o amor fontal e fiel de Jesus àquele de quem tudo recebe. Em nome desse amor, Jesus permanece firme até o fim. E, movido por esse amor, enfrenta os que o capturam. É com esse amor e fidelidade filial que Jesus enfrenta a traição de Judas, a negação de Pedro, a dor e a humilhação infligida a ele por aqueles a quem fora enviado: seu povo. No Sinédrio, Jesus é rejeitado de forma definitiva pelos líderes do seu povo. Diante do Sinédrio, o evangelista estabelece a posição e a identidade de Jesus em face da autoridade judaica. A identidade de Jesus é apresentada de forma progressiva: o Cristo (22,67), o Filho do homem, glorificado à direita de Deus (22,69), o Filho de Deus (22,70). Na expressão “Filho de Deus” está presente a profissão de fé cristã. O Filho do homem foi humilhado e menosprezado pela humanidade, mas agora está glorificado por Deus como um messias-rei (cf. Sl 110,1). Após ser rejeitado pela liderança religiosa, Jesus é submetido ao poder político, que, apesar de estar ciente de sua inocência, o condena. Acusado de rebeldia e subversão, Jesus é entregue à morte. Na obstinação dos sumos sacerdotes, dos magistrados e da multidão em condenar Jesus, transparece a total rejeição ao projeto de Deus realizado no homem de Nazaré. A morte de Jesus situa-se ao final de uma série de infidelidades e rebeliões obstinadas contra o projeto de Deus ao longo da história. No caminho da cruz, Jesus deixa entender que, na sua morte violenta, se decide o destino do povo de Deus e da humanidade. O julgamento histórico de Deus abater-se-á sobre a cidade de Jerusalém, símbolo da humanidade infiel e rebelde aos apelos dos profetas. Jesus é crucificado entre malfeitores. O que veio para buscar os perdidos encontra-se agora entre eles, partilhando da mesma sorte. E, aqui, revela-se o rosto salvador de Deus. O Libertador de Israel não tira o Messias da cruz nem o livra da vergonha e da violência, contudo permanece fiel ao amor também na situação mais extrema. A inocência de Jesus é reconhecida por um dos criminosos ao seu lado. E este proclama sua total confiança em Jesus. A resposta do Filho de Deus é uma afirmação solene da salvação já hoje, da salvação escatológica que começa no hoje da história humana. Então o pecador arrependido pode escutar a “boa-nova”, o evangelho da salvação, que consiste na comunhão com Jesus no Reino dos justos. É com este último gesto de solidariedade que Jesus dá a salvação a quem crê e se converte. Após sua morte, a ação de Deus é reconhecida pelo centurião, ao proclamar que Jesus era um homem justo. Mas a morte não é o fim e nos lança para o que acontecerá no amanhecer do primeiro dia da semana.
2. I leitura (Is 50,4-7): Não foi rebelde nem voltou atrás
O texto mostra que, apesar dos sofrimentos, o Servo está empenhado em obedecer à vontade divina. Ele está qualificado para a obra que Deus o destinou a realizar. Essa qualificação transparece em duas afirmações:
1) Ele tem uma língua hábil para instruir as pessoas de sua época cansadas e desanimadas. A “língua hábil” significa que as palavras são pronunciadas por alguém que é uma autoridade no que diz, em vez de ser um “blá-blá-blá” sem consistência. A habilidade para fazer isso vem de uma relação íntima com Deus.
2) Ele tem ouvido de discípulo e toda manhã recebe a instrução vinda de seu contato com Deus. É alguém que está alerta, atento, acordado; é isso que significa a expressão “cada manhã”. Enfim, ter a língua hábil e o ouvido atento constitui o missionário competente, que antes é discípulo dócil. Os versículos 5 e 6 mencionam o sofrimento que é fruto do desempenho do discípulo missionário. Os mesmos versículos asseguram que, apesar das muitas dificuldades, o Servo mantém uma constância destemida e leva a cabo a obra para a qual foi escolhido. O servo não se rebelou, isto é, não voltou atrás em sua missão quando a resposta às suas palavras de consolo aos desanimados foi a perseguição e a violência. Há uma descrição da dor e da vergonha que o Servo passou: foi açoitado, esbofeteado, teve a barba arrancada, foi insultado e cuspido. Naquela época, ter a barba arrancada era um dos maiores graus de dor e de vergonha para o homem oriental. Nenhuma dessas afrontas o fez desistir de sua missão. O texto deixa entrever que o Servo poderia ter evitado esse sofrimento se tivesse voltado atrás na sua missão (v. 5). Várias expressões mostram isso: apresentar as costas, oferecer o queixo, não desviar o rosto. Passar por todo esse sofrimento sem voltar atrás só foi possível porque o Senhor era aliado do Servo. Por causa dessa cumplicidade com o Senhor, o Servo não fracassou em sua missão (v. 7).
3. II leitura (Fl 2,6-11): Assumiu a forma de servo
Esse texto, um hino litúrgico inserido em um contexto missionário e pastoral, tem em vista a práxis cristã, e não abstrações sobre a essência de Deus. A primeira parte do hino (vv. 9-11) se refere à atitude de Jesus, a qual deve ser tomada como exemplo por todos os cristãos. Nesse texto bíblico encontramos um resumo da história da salvação. Jesus foi visto pela maioria dos seus contemporâneos apenas como um homem simples do povo. No entanto, ele pertencia também a outra esfera: era de condição divina (v. 6). Tornou-se humano, como tal viveu e morreu (vv. 7-8) e foi exaltado junto a Deus (vv. 9-11). A ideia central do texto é que Cristo não quis apoderar-se da divindade ou usurpá-la, mas, sendo de condição divina, estava disposto a renunciar aos privilégios inerentes a ela em favor do ser humano. É para essa atitude de desprendimento pela grandeza divina que Paulo chama a atenção de seus destinatários. Jesus se despojou dos privilégios específicos da natureza divina e adotou a postura de um servo. Essa atitude de serviço e obediência, até mesmo diante do tipo de morte mais vergonhosa em sua época, significa que Cristo não usou as prerrogativas divinas em favor de si mesmo. A disposição para o despojamento em favor do ser humano é o que Paulo está propondo como critério para a vida cristã. Esse Jesus que se humilhou até a morte na cruz, Deus o exaltou e submeteu a ele o universo em todas as suas dimensões. A menção de todos esses aspectos da história da salvação tem por objetivo fazer que os cristãos aprendam a viver com o mesmo desprendimento, consideração pelo ser humano e obediência a Deus que caracterizaram aquele a quem seguem: Jesus Cristo.
III. Pistas para reflexão
Evitar falar da Paixão de Cristo como se esta fizesse parte de um plano sádico de Deus Pai com o objetivo de lavar os pecados da humanidade. Deus é amor infinito e não teria sentido esse tipo de atitude para com seu próprio Filho. O plano de salvação de Deus na pessoa de Jesus foi a encarnação, e a elevação da humanidade por meio de toda a vida e ação de Jesus e porque assumiu muito bem esse plano e decidiu não arredar dele nem sob as piores ameaças e riscos, os poderes políticos, econômicos e religiosos contrários o crucificaram. Também evitar culpar grupos judaicos ou o império romano pelo acontecido a Jesus, pois todos eles estão no passado temporal. Ao contrário, ressaltar que, na condenação de Jesus, se manifesta o orgulho de todo ser humano e sua rebelião contra o projeto de amor e fraternidade do Pai.
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).