I. Introdução geral
Se quisermos permanecer sempre da mesma maneira, será necessário optarmos por uma vida em que Deus se faça ausente. Talvez pudéssemos dizer que o “sobrenome” de Deus seja “mudança”. Onde ele se apresenta, não somente as pessoas mudam, como também suas histórias são fortemente alteradas. A experiência do êxodo é modelar. Deus se apresentou na história dos escravos mantidos em cativeiro por um faraó que não desejava mudança alguma, mudou a condição deles de escravos para livres e propôs-lhes construir uma história em que eles mesmos seriam protagonistas. Andar com Deus significa, por conseguinte, rever completamente quem somos, o que fazemos e como fazemos. A partir do momento em que experimentamos Deus, não podemos mais ser e fazer do mesmo jeito. Nele a mediocridade é anulada para que possamos ir mais além. Medíocre, nesse sentido, é a pessoa que se acomodou àquilo que é e, além disso, se acostumou com o futuro como uma extensão do que vive no presente. Transformados pela experiência de Deus, somos chamados a viver de forma diferente numa sociedade marcada pela indiferença.
II. Comentários aos textos bíblicos
- I leitura: Is 62,1-5
Andar com Deus exige mudança radical de vida. É impossível caminhar com ele e continuar agindo da mesma maneira. Talvez até possamos dizer que, se quisermos continuar vivendo do mesmo jeito, deveremos, na verdade, afastar-nos de Deus. Relacionamento com Deus, portanto, exige transformação. Em Isaías, a transformação vem manifestada pela mudança de nome, o que, nesse caso, significa ter novo destino. A transformação radical pela qual passará Jerusalém pode ser vista na comparação dos nomes antigos com os nomes novos: de abandonada e desolada, Jerusalém será conhecida como minha delícia e desposada. Não se trata de uma repaginação para esconder o que está errado ou, em outras palavras, esconder a sujeira embaixo do tapete. Trata-se, sim, de radical transformação.
Quando Deus se ausenta, também o projeto de vida, liberdade e justiça desejado por ele se afasta. A ausência de Deus se manifesta por meio da instalação de um projeto de violência e de morte. Por isso o profeta Isaías havia dito que a cidade fiel se transformara em prostituta, que antes era cheia de direito e nela morava a justiça, mas, após o afastamento de Deus, estava cheia de criminosos (cf. Is 1,21). Nega-se a Deus e sua presença, nesse caso, quando se vira as costas para os mais frágeis da sociedade; ou seja, nas palavras do próprio Isaías, quando não se faz justiça ao órfão, e a causa da viúva não chega até os chefes do povo (cf. Is 1,23).
- II leitura: 1Cor 12,4-11
A segunda leitura nos mostra que a multiplicidade deve sempre ser vista como algo salutar. Não precisamos viver sob a ditadura do que é singular e absoluto. Somos plurais em nossas relações, e o apóstolo Paulo bem sabe disso. Dessa forma, ele ensina que dons, ministérios e atividades devem ser pensados como plurais, mas sob a tutela e a unificação do Espírito. O que vale, portanto, é a unidade do corpo, a qual resulta do exercício da pluralidade. O sentido e a razão de existirem dons, ministérios e atividades estão relacionados à forma pela qual tudo chega como serviço às pessoas. Todos três devem servir à finalidade comunitária.
O olhar de Paulo, sem dúvida, está sempre voltado para o comunitário em detrimento do individual. O apóstolo poderia muito bem fazer a seguinte pergunta: como os dons e ministérios que tenho ajudam a construir minha comunidade? Carisma e serviço, à luz dessa concepção, completam-se. Tudo o que somos e temos pertence à comunidade. Deus jamais concede algo para favorecer o império do individualismo. Na verdade, Deus pensa de forma comunitária e relacional. A criatividade teológica de Paulo é chave para entender que Deus, em sua infinita sabedoria, distribuiu dons, ministérios e serviços a diferentes pessoas a fim de que elas, ao se encontrarem, completassem umas às outras. Na lógica de Paulo, se vivemos separados, sucumbimos ao isolamento. Se, ao contrário, nos aproximarmos, complementaremos o que falta a fim de que o corpo cresça em unidade.
Não podemos, contudo, deixar de perceber a crítica sutil que Paulo faz àqueles que, na comunidade de Corinto, desejavam ser os proprietários do Espírito Santo. A ambição deles promovia a divisão da comunidade; orgulhavam-se de ter determinados dons e, portanto, achavam-se superiores. A esses Paulo afirmava, de forma categórica, que quem concedia os dons e fazia agir era o Espírito de Deus.
- Evangelho: Jo 2,1-11
O Evangelho de João retrata uma situação de carência. Maria é a discípula das discípulas. Ela assume o discipulado como estilo de vida, e assim seus gestos, suas palavras, seus sentimentos, seu jeito de ser-viver-fazer estão direcionados para o próprio Jesus. Maria é a mãe de Jesus, mas também se apresenta como discípula dele.
Maria vive para Jesus não apenas porque ele é seu filho, mas sobretudo porque é sabedora de que ele é o Filho de Deus e o salvador do mundo. Dessa forma, a primeira das discípulas dá o tom do que vem a ser o verdadeiro discipulado: fazer a vontade de Jesus.
Muitos cristãos desejam a vida de Cristo sem o discipulado. Querem tudo quanto Jesus pode dar, desde que não haja o seguimento e o compromisso. Na verdade, amamos Jesus e tudo quanto ele fez por nós, porém nos incomodamos com aquilo que ele nos manda fazer.
A fala de Maria (cf. v. 5) revela-nos uma verdade singular: Jesus sempre se apresenta na relação conosco como Senhor e, consequentemente, deveríamos fazer tudo quanto ele nos ordenar. Às vezes temos a tendência – e, em muitos casos, a pretensão – de inverter essa situação e, dessa forma, apresentar-nos como aqueles que determinam o que Jesus pode ou não fazer em relação a nós. Não raro, observando o comportamento de muitos cristãos, tem-se a vívida impressão de que Jesus foi transformado num servo requintado que está à disposição deles.
Queremos a plenitude de Jesus em nós, mas temos dificuldade de nos dedicar completamente a ele. A espiritualidade vivida por Maria segue em direção oposta à nossa e, por isso, indica o bom caminho pelo qual devemos viver o discipulado. Para ela, o discipulado é a marca que distingue o verdadeiro do falso discípulo. Nesse sentido, a obediência e o desejo de servir se apresentam nela como elementos que a tornam discípula por excelência. Obediência e serviço estavam impregnados na maneira como Maria vivia. Eram como irmãs gêmeas que indicavam a melhor maneira de ser e fazer-se discípulo.
Maria estabelece a esperança como padrão de comportamento. Talvez seja necessário olhar a realidade com olhos marianos. Ela vê uma realidade e não se atreve a negá-la. A realidade vivida não é, porém, ainda a definitiva. Falta a ação de Jesus, que virá como o vinho melhor. Em Maria se antecipa a esperança. Através dos olhos dela, podemos ver mais além e enxergar a completude daquilo que nos falta.
III. Pistas para reflexão
– Quando perdemos a referência do comunitário, acabamos nos envolvendo no emaranhado de linhas do individualismo. E não há nada mais contrário à vida cristã do que o individualismo, que nega o encontro e a vivência em comum. Uma das mais importantes descobertas na vida cristã é justamente a percepção de que somente existimos para os outros e no encontro com todos os outros é que nos completamos. Não por outra razão, o apóstolo Paulo afirma que os cristãos individualmente formam, todos eles, o único corpo de Cristo.
– Obediência e serviço são duas das palavras mais difíceis de praticar. Ambas se apresentam como verdadeiro peso que não gostaríamos de carregar. Quão difícil é obedecer a Jesus e fazer sua vontade. É muito mais fácil reconhecer que ele é o Filho de Deus do que segui-lo como discípulo. Seria possível ser discípulo e missionário de Jesus sem obedecer à sua vontade e sem nos pôr a serviço de todos aqueles que precisam?
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]