Publicado em novembro-dezembro de 2024 - ano 65 - número 360 - pp. 38-40
2 de novembro – TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS
Por Pe. Maicon André Malacarne*
Vida eterna, vida relacional!
O saudoso dom Luciano Mendes de Almeida, em certa reflexão sobre o dia de Finados, dizia: “Na verdade, não foram eles que já partiram, somos nós que ainda não chegamos”. Nosso destino é uma vida ressuscitada, uma vida “de pé”, que nunca se encerra em si mesma, mas encontra sentido nas relações e no estilo de viver cada dia. A eternidade não é a vida depois da morte, mas uma experiência de apostar no amor e comunicar o amor, não obstante as contradições e sofrimentos que nos assolam.
A teologia do profeta Isaías propõe a imagem do banquete como comemoração da salvação de Deus. Uma imagem do céu que não deixa de ser uma imagem do cotidiano, de relações fraternas saudáveis e hospitaleiras. São Paulo, na carta aos Romanos, não nos deixa esquecer a graça de sermos filhos de Deus e a responsabilidade de expandirmos a vida divina, o destino da ressurreição, como um relacionamento com toda a vida criada que passa pelas “dores de parto”. Da escola do Evangelho de Mateus, aprendemos que a vida cumpre seu verdadeiro sentido quando vivida e compartilhada na direção dos menores, dos mais sofridos: “foi a mim que o fizestes”.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. I leitura (Is 25,6a.7-9)
As palavras do profeta se tornam um refrão para repetir neste dia: “Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou; este é o Senhor, nele temos confiado: vamos alegrar-nos e exultar por nos ter salvo”. O Segundo Isaías, marcado pela ruína da Babilônia, desenhou a imagem de um banquete como forma de glorificar o Senhor.
De fato, esse trecho da primeira leitura está localizado no pós-exílio, um momento de reconstrução do povo de Israel (V e VI séculos a.C.). Trata-se de liturgia que sugere a imagem de um grande banquete real, com aclamações de festa, depois do sofrimento experimentado nas condições de exílio.
É interessante que o texto sugere a imagem de relações alegres, de comida e bebida, para a celebração de Finados. Por um lado, o banquete esteve sempre ligado à imagem do amor de Deus e à vida eterna, ao céu, ao paraíso; por outro, sem ser algo contraditório, a eternidade também é uma peregrinação que não pode ser pensada só depois da morte. Trata-se de trabalhar e construir vínculos fraternos e solidários aqui, agora e para sempre!
O cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério da Cultura e da Educação, refletiu sobre o que chamou de “paradigma do banquete” como anúncio dos tempos messiânicos:
[...] a presença implícita do Messias faz irromper, por entre naufrágios e dilacerações da história, a plenitude do encontro de salvação com Deus, como uma irreversível pacificação. Essa recriação messiânica da história é frequentemente representada na expansão universal de um banquete divino (A leitura infinita: a Bíblia e sua interpretação, São Paulo: Paulinas, 2015, p. 181).
2.II leitura (Rm 8,14-23)
A carta de Paulo aos Romanos recorda um primado fundamental: “O próprio Espírito se une ao nosso espírito, para nos atestar que somos filhos de Deus”. Antes de tudo, somos filhos, isto é, há uma graça, uma semente divina que habita nossa vida! Não se trata de viver pensando que basta o esforço pessoal, os méritos pelas capacidades, se não expandimos os canais do Espírito que circulam em nós.
“Viver no Espírito” é crescer nessa consciência e nessa abertura! A vida “na carne” conduz à autossuficiência e à autorreferencialidade, uma espécie de fechamento em torno do “eu” e do “sempre o mesmo”. Deixar-se conduzir pelo Espírito significa assumir uma vida relacional, criativa, comunicativa e comunitária, na qual os vínculos se tornam o elo por onde Deus fala e aponta caminhos.
O relacionamento entre Deus e a humanidade abraça toda vida criada. Nós não somos ilhas, mas sempre conexão, como ensina o papa Francisco. Se a natureza humana e a criação experimentam o sofrimento, a fragmentação, os “gemidos” de uma realidade de dor, elas, ao mesmo tempo, dividem o mesmo destino de redenção e de ressurreição. O corpo da criação inteira participa do corpo do Cristo, Filho de Deus, ressuscitado dos mortos! A vida ressuscitada, portanto, não é uma conquista, fruto de um esforço individual, mas a experiência da relação, da amizade, que significa, também, cuidar de toda a vida criada e preservá-la!
3. Evangelho (Mt 25,31-46)
A imagem do banquete do profeta Isaías e a da experiência da filiação no Espírito, da carta de Paulo aos Romanos, compõem um conjunto de muita harmonia com o convite que Jesus faz no Evangelho: “Todas as vezes que fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que o fizestes!” A aproximação com o Senhor é o equilíbrio entre o olhar para cima e o olhar para baixo, entre olhar para o céu e olhar a realidade, o paraíso e a vida diária.
“Fazer aos pequenos”, todavia, precisa ser bem compreendido, para evitar a exaltação pessoal: deve tornar-se um estilo de vida livre e espontâneo. Mais do que uma série de atividades, “fazer aos pequenos” é uma forma de viver, um jeito de comportar-se que busca não flertar com o egoísmo, mas viver de forma relacional: “Vós sois todos irmãos e irmãs”, lembrava a Campanha da Fraternidade deste ano.
“Fazer aos pequenos” tem forma bem concreta no texto de Mateus: “eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar”. Trata-se de abrir os olhos e alcançar as situações reais que estão próximas, viver o que é possível viver, fazer com verdade e liberdade.
Clarice Lispector chamou a atenção desse estilo cotidiano como “ato gratuito” em um dos seus textos mais geniais. Um trecho diz:
Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. “Que rua?”, perguntou ele. “O senhor não está entendendo”, expliquei-lhe, “não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro”. Não sei por que me olhou um instante com atenção. Deixei abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato de olhos entrefechados de felicidade. Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver (Ato gratuito).
III. Pistas para reflexão
Ao visitar nossos amados que já partiram, com o esforço de guardar suas memórias, também assumimos o compromisso de uma vida aberta à graça de Deus, gratuita, hospitaleira, relacional, atenta aos sinais de sofrimento e comunicadora de uma esperança que não tem fim: somos filhos e filhas e nosso destino é ressuscitar com Jesus! Sem negar a saudade, a revolta, a dor, a angústia, os traumas, este dia é para crescer na fé vivida dia após dia, que sempre é rodeada de fragilidades, mas também procura dar pequenos passos na direção de “uma mesa”, de “um banquete”, onde ninguém ficará de fora: “Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou!”
Pe. Maicon André Malacarne*
*é pároco da paróquia São Cristóvão, Erechim, diocese de Erexim-RS. Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma), onde cursa o doutorado. É especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje, Belo Horizonte-MG); formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe, Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). E-mail: [email protected]