Roteiros homiléticos

2 de abril – QUINTA-FEIRA SANTA (missa da Ceia do Senhor)

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

Discernir o corpo de Cristo

I INTRODUÇÃO GERAL

A pergunta de Jesus ressoa até hoje e nos desafia: “Vocês entendem o que lhes tenho feito?” Passados aproximadamente 2 mil anos, será que de fato entendemos o gesto de Jesus? Para responder, seria necessário olhar para a maneira pela qual vivemos em comunidade. Há comunhão ou divisão? Diálogo ou monólogo? Partilha ou ostentação? Serviço ou busca de privilégios?

II COMENTÁRIOS AOS TEXTOS BÍBLICOS

  1. I leitura: Ex 12,1-8.11-14

Os israelitas celebravam todos os anos o memorial do êxodo comendo o cordeiro pascal. Tratava-se de um memorial de libertação. Celebrava-se, antes de mais nada, a proteção da vida. Páscoa, nesse sentido, adquiria um sentido subversivo. Uma celebração que questionava a escravidão em todas as suas formas ao invocar a presença de um Deus libertador.

Toda Páscoa deveria levar à libertação e ao processo de libertação. Afinal, diz o texto: “Vocês o comerão como se estivessem preparados para caminhar, de sandálias nos pés e cajado na mão” (12,11). Páscoa não representa somente festa, mas também preparação para o que está adiante. Toda Páscoa, nesse caso, aponta para a frente, ou seja, para aquilo que ainda não existe, mas se deseja. Celebra-se, portanto, não somente a libertação da opressão cotidiana, mas também a libertação do futuro.

Páscoa como memorial é a subversão da esperança. Nenhum opressor pode dormir tranquilo quando o povo de Deus celebra a Páscoa. O faraó que o diga!

  1. II leitura: 1Cor 11,23-26

A segunda leitura nos oferece o relato mais antigo da instituição eucarística. Paulo afirma que aquilo que transmite foi recebido do próprio Senhor. Ele recorda aos coríntios que a fração do pão remonta ao próprio Jesus e se reveste, por consequência, de importância central na vida da Igreja. A eucaristia pode e deve ser compreendida como a celebração atual desse grande passo por meio do qual Jesus arrastou atrás de si aqueles que aceitaram o desafio do amor. Já não caminhamos separados de Jesus. Caminhamos, sim, iluminados por ele.

As palavras de Paulo se inserem num contexto bem específico da comunidade de Corinto. Nela haviam surgido inúmeras divisões que acabavam comprometendo a unidade do corpo de Cristo e, além disso, a celebração do memorial do Senhor havia se degenerado em um espetáculo escandaloso. Paulo relembra a instituição da eucaristia num ambiente fortemente marcado por divisões. Para ele, a eucaristia deveria ser pensada e vivida como memória da morte de Jesus e como dom de vida para a humanidade. A eucaristia, como dom de vida, deveria estar acima de qualquer divisão. Por meio dela, as barreiras seriam superadas e pontes criadas. Já não haveria distância para aqueles que se aproximavam da mesa do Senhor. Todos eles e elas seriam um só em comunhão com o Cristo.

Em outro capítulo (1Cor 1,10-16), Paulo já havia iniciado essa catequese, alertando a comunidade acerca dos perigos da divisão: “Vivam unidos em harmonia, sem divisões entre vocês. Sejam unidos no mesmo modo de pensar e no mesmo propósito. Estou me referindo ao que cada um de vocês anda dizendo: ‘Eu sou de Paulo’, ou ‘Eu sou de Apolo’, ou ‘Eu sou de Cefas’, ou ‘Eu sou de Cristo’. Será que Cristo está dividido?” As brigas ameaçavam dividir a comunidade e revelavam a imaturidade dos discípulos e discípulas. Esqueciam-se facilmente de olhar para Cristo e passavam a olhar uns para os outros como se fossem rivais numa competição. Uns queriam ser melhores do que os outros e, por conta disso, não havia espaço para o amor, a partilha e o serviço. O corpo de Cristo estava, pois, fragmentado. O Cristo que havia morrido e ressuscitado para que todos fossem um nele corria o risco de ser transformado num Cristo dividido por causa da imaturidade de muitos.

  1. Evangelho: Jo 13,1-15

Doação, amor e serviço poderiam ser o resumo da eucaristia. O núcleo fundamental do amor é o serviço. Para João, a verdadeira Páscoa é aquela que Jesus celebrará com a sua morte na cruz. Um percurso que Jesus fará livremente, não por imposição, abrindo caminho para que o Pai seja reconhecido pela humanidade. Tomar refeição juntos é sinal verdadeiro de comunhão e partilha. Não convidamos à mesa pessoas desconhecidas. Na mesa nos nutrimos do verdadeiro alimento da fraternidade. Jesus vive esse clima familiar com seus discípulos. O mestre ocupa o lugar de honra, como seria normal. No entanto, Jesus inova e causa reflexão. Ele se despoja de sua autoridade e pega o avental, a fim de se tornar servo. Para Jesus, amar é servir!

Pedro se escandaliza, porque quem deveria lavar os pés dos mestres seriam os escravos. Para Jesus, o serviço é sinal de encontro com Deus. Não é necessária a busca pelo primeiro lugar, quando é possível compreender que o corpo do outro é o mais verdadeiro e real altar que temos. Jesus assume a posição de servo para iluminar para nós o caminho do serviço desinteressado e solidário pelo próximo.

Mas Pedro não compreende o gesto de Jesus. Talvez ele vivesse um momento de conversão. Talvez estivesse acostumado e já não ligasse para as relações desiguais que sua sociedade apresentava. Já não se espantava com as desigualdades sociais. Afinal, sempre havia sido assim e, certamente, continuaria do mesmo modo. Não é dessa forma que a maioria de nós pensa? Para ele, mestre e discípulo eram funções que determinavam o maior e o menor, isto é, quem mandava e quem obedecia. Jesus atropela a cultura de dominação e propõe nova forma de relação social. Em Jesus, as pessoas se relacionam como iguais. Lavar os pés traz o símbolo da humildade do discípulo que se apresenta como o menor de todos e, por isso mesmo, é o escolhido de Deus.

“Vocês entendem o que lhes tenho feito?” é uma pergunta preciosa de Jesus aos discípulos de todos os tempos. Afinal, o gesto de Jesus possui forte valor simbólico e revolucionário. Ele inverte completamente a maneira de pensar as relações interindividuais. Por isso a pergunta é necessária. Ele está, na verdade, instituindo um paradigma, um modelo ou, se quisermos, precioso testamento. Então ele continua: “Pois bem, se eu lavei os pés de vocês, eu que sou o Senhor e o Mestre, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam do modo como eu fiz” (v. 14-15).

Na comunidade de Jesus não se pode reproduzir o mesmo estilo de vida existente na cultura greco-romana. O serviço é palavra de ordem e, por consequência, não há maiores e menores. Existe, sim, uma comunidade de iguais. A prática do serviço identifica o verdadeiro discípulo. O discípulo se despe da arrogância e se mune de uma toalha e de uma bacia. Não há nada mais belo do que um discípulo que se sabe e se reconhece como um servo entre todos. Jesus, nesse momento, chama-nos todos para sermos diáconos uns dos outros.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– Todos sabemos que a celebração eucarística é partilha. Temos clara compreensão de que Jesus doou sua vida para que ela se multiplicasse em nós. Mas temos dificuldades para entender que nossa aproximação da mesa do Senhor exige de nós a mesma partilha. Já pensamos que somos pequenas hóstias de Deus para o mundo?

– É preciso viver a Páscoa como um projeto de libertação que atinge não somente a pessoa, mas também a história, transformando tanto uma quanto outra. Dessa forma, o sentido da Páscoa atinge uma dimensão completa, isto é, o interior do ser humano e o mundo em que ele vive.

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUCPR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]